quinta-feira, maio 31, 2007

Antologia Improvável #230 - Adolfo Casais Monteiro

TERRA MORTA

Um canto áspero, sem perfume,
Pela noite fora vem.
Vozes neutras e sem lume,
Nem amor têm.

Um canto álgido e soturno,
Canto de morte,
Vem como um vento contra as janelas,
Vento de noite de tempestade
Contra as janelas da nossa vida.

Como asas longas de morcegos
Lá fora a noite perpassa
Grande mãos frias sobre as coisas...


Noite Aberta aos Quatro Ventos / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

O Vale do Riff - Pete Seeger & Arlo Guthrie, «Union Maid»

quarta-feira, maio 30, 2007

Yslaire, Sambre -- Teremos que Morrer Juntos?

ser solidário

Eu gostava de ser solidário com a Venezuela e mandar-lhe, de bom grado, os nossos dois canais latino-americanos.

Viva Belmiro!

Uma olhadela pelas manchetes dos jornais de informação geral de hoje. Só temos um decente: o Público. O resto é lixo, ou para lá caminha a passos largos.

O Vale do Riff - The Boomtown Rats, «I Don't Like Mondays»

terça-feira, maio 29, 2007

Figuras de estilo - M. Teixeira-Gomes

Já repararam que na hora da separação o que há de mais doloroso e patético, não são as lágrimas silenciosas, nem tão pouco os soluços abafados, nem os longos abraços apertados; são esses gestos desvairados das mãos que procuram o rosto, que o procuram mesmo em plena luz, quando a vista se embriagou já das feições da pessoa amada, e os dedos correm todo o rosto, e acariciam as faces, e contornam a boca, e passam levemente pela testa e por fim põem nos olhos dois pensos de amor, tépidos e castos...
Eles significam o sacrifício voluntário, a consciente renúncia, e são muitas vezes o viático indispensável para as viagens trágicas...


«De longe...» / Inventário de Junho

O Vale do Riff - Otis Redding, «(I Can't Get No) Satisfaction»

segunda-feira, maio 28, 2007

Antologia Improvável #229 - Edmundo de Bettencourt

PAISAGEM VERDADEIRA

O verde tenro e vivo, de folhagem,
Presépio dos meus olhos, em menino,
Pôs-se de luto a par com meu destino,
Cego-me a vê-lo imagem de miragem...

Quando, iludido, o busco na ramagem,
Já com seus tons mais brandos não atino;
E nesta escuridão, só me ilumino
Vendo-o compor-me interior paisagem:

Paisagem de ouro verde, que de mim
Sai alongada em foco para a terra
A procurar vencer-lhe a cerração,

E aonde num crepúsculo sem fim
Tonta, a esperança, esvoaçando, erra
Sobre torres de encanto e de traição!


O Momento e a Legenda / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

O Vale do Riff - Duke Ellington, «La Plus Belle Africaine»

domingo, maio 27, 2007

Natal para quem quiser

natal dos hospitais
natal das prisões
natal dos orfanatos
natal dos asilos
natal dos leprosos
natal dos sidosos
natal dos cancerosos
natal dos tuberculosos
natal dos alienados
natal dos sem-abrigo
natal dos realojados
natal dos desalojados
natal dos endividados
natal dos feios
natal dos porcos
natal dos maus
natal dos bufos
natal dos pides
natal dos fascistas
natal dos nazis
natal dos racistas
natal dos terroristas
natal dos integristas
natal dos universitários
natal dos funcionários
natal dos patetas
natal dos poetas
natal dos poetisos
natal do balsemão
natal do moniz
natal do oliveira e do 24 Horas com faqueiro de prata

Natal 2006

Esta semana n'O Vale do Riff






sábado, maio 26, 2007

estampa CIX

António Pedro, Rapto na Paisagem Povoada
Centro de Arte Moderna, FCG, Lisboa

Os mortos sabem-no. / A sabedoria é inútil. / A poesia também.
Manuel de Freitas

sexta-feira, maio 25, 2007

Caracteres móveis -Joseph Conrad

Havia nela uma falta de reserva total, um desprezo por toda a compostura, essa fealdade da verdade que só por uma preocupação constante com as aparências pode ser mantida fora da vida quotidiana.


«O regresso», Histórias Inquietas
(tradução de Carlos Leite)

O vale do Riff - Charlie Parker & Dizzy Gillespie, «Hot House»

quinta-feira, maio 24, 2007

Antologia Improvável #228 - Sá de Miranda

TROVA À MANEIRA ANTIGA

Comigo me desavim,
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse;
Agora já fugiria
De mim se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?


In Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo Ler
(edição de José Régio)

O Vale do Riff - Artie Shaw, «Oh, Lady Be Good!»

quarta-feira, maio 23, 2007

Caracteres móveis - Demócrito

O sábio pode andar por toda a terra; pois a pátria de uma alma boa é o mundo inteiro.


In Maria Helena da Rocha Pereira, Helade -- Antologia da Cultura Grega

O Vale do Riff - Blood, Sweat & Tears, «And When I Die»

Tintin: pura aventura


Este foi o meu primeiro Tintin, ainda publicado pela editora brasileira Flamboyant. Deu-mo o meu Pai, aí por 1970/71. A sorte que tive! Hergé na posse do seu mais requintado humor, massacrando aqui os pobres Dupondt. Fiquei a conhecer o grande Oliveira da Figueira, o insuportável Abdalah e o pai desta peste, o risível emir Mohammed Ben Kalish Ezab. Müller (!) é um vilão à altura, sem, contudo, possuir o carisma do infame Rastapopoulos. E vi pela primeira vez o inconcebível Capitão Haddock, cuja destreza vernacular o guindaria a personagem canónica...
Pura aventura, com o nobre Tintin e o fiel Milu. Até hoje.

capismo

uma capa de José de Lemos para O Papagaio

terça-feira, maio 22, 2007

Hergé na prisão

O colaboracionismo de Hergé tem sido motivo de sucessivas abordagens, principalmente desde a sua morte. Embora não tenha feito leituras exaustivas sobre o assunto, parece-me que esse «colaboracionismo» foi mais de circunstância, de sobrevivência ou comodidade. Conservador católico, certamente, desde o Vingtième Siècle, jornal da Igreja. Anticomunista aos 22 anos, sem dúvida. O facto de nunca ter refeito o Tintin no País dos Sovietes é também sinal de que Hergé não se revia naquela caricatura -- que, oh ironia, estava muito mais próxima da realidade do que ele supunha: só se pode falar em estado socialista (o termo já é em si contraditório) a propósito da URSS, como caricatura. Na ocupação, o caso foi diferente. Hergé encolheu-se, acomodou-se, continuou a publicar Tintin no Le Soir, dirigido pelos ocupante nazis. Isso valeu-lhe uma curtíssima estada na prisão. (Na vinheta de Stanislas, Hergé, à esquerda, e um companheiro de cela ouvem a execução dum colaboracionista). A minha convicção de que o comportamento de Hergé não foi muito gravoso sustenta-se no facto de Raymond Leblanc, um homem da resistência ao ocupante, ainda vivo, ter convidado o autor para juntos iniciarem um semanário de BD. O Tintin, hebdomadário dos jovens dos 7 aos 77 anos surgiria em 1946, com O Templo do Sol.

Stanislas, Bocquet e Fromental (argumento)

As Aventuras de Hergé

Homenagem a Adolfo Simões Müller

Uma prancha de Tintin na América,
publicada no Cavaleiro Andante, n.º 268,
de 16-II-1957, dirigido por Adolfo Simões Müller

Os portugueses de Hergé

Oliveira de Figueira, a personagem.
O sábio de Coimbra n'A Estrela Misteriosa.
O homem do DL, no Tintim no Congo.

Uma homenagem de Uderzo

nos 50 anos de Tintin (1979)

O Vale do Riff - Genesis, «Los Endos»

segunda-feira, maio 21, 2007

Munuera e Morvan (argumento)
Spirou e Fantásio em Tóquio

Antologia Improvável #227 - Campos de Figueiredo

AUTOCRÍTICA

Senhor! nunca me vi nem conheci
Dentro do negro abismo onde se esconde
O meu segredo humano, nem sei onde
Começa e acaba o que provém de ti!

Sei que errei o caminho e me perdi!
Agora, embora chame e grite e sonde,
No meu longo deserto, só responde
Ao longe, a voz do mar que nunca vi.

Em vão chamo por mim, em vão procuro
A luz que me pertence e que cintila
No fundo inquieto deste abismo escuro;

-- Fio de água sumido nas areias, --
Vejo estátuas dramáticas de argila
Com dedadas fatais de mãos alheias!

Poemas de Sempre / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

O Vale do Riff - Buffy Sainte- Marie, «Little Wheel Spin And Spin»

domingo, maio 20, 2007

Caracteres móveis - Émile Zola

Espantado, Pedro examinava aquele horroroso rosto, o que cinquenta anos de trabalho e de miséria, de injustiça social haviam feito de um homem. Acabara por distinguir a cabeça branca, gasta, deprimida, deformada. Toda a derrocada do trabalho sem esperança sobre uma face humana. A barba inculta, ensilvando-lhe as feições, o ar de um cavalo velho que já se não tosquia, com as maxilas de través, depois de terem caído os dentes. Olhos vítreos, um nariz que quase tapava a boca. E principalmente aquele aspecto de animal arqueado pelas fadigas do ofício, escangalhado, abatido, bom unicamente para a matança.


Paris
(tradução de Pandemónio)

Esta semana n'O Vale do Riff






capismo - Luiz Duran

Capa de Eusébio Macário, de Camilo Castelo Branco
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses


sábado, maio 19, 2007

Bonus Tracks - Enter Shikari, «Sorry You're Not A Winner»

Encontrado n' A Coluna Vertebral. Irresistível.

uriinscriptio

O mundo é uma soda. (Fócrates)

Antologia Improvável #226 - Moreira das Neves

SÓ TU

Nas noites longas, em que a lua passa
No céu, como uma Ofélia opalescente,
Enchendo a terra de fulgor e graça
E arrebatando a alma a toda a gente;

Nessas noites de luz dorida e baça,
Noites de placidez e mágoa algente,
Uma rede de sonhos me embaraça
E eu tenho que sonhar, forçosamente.

Eu tenho que sonhar!... Mas em que sonho?
-- No teu aspecto angélico e risonho,
No teu pranto e tua voz, ó minha Mãe!

Só a tua boca, em sonhos, me sorri.
É em ti que eu sonho... E, não sonhando em ti,
Também não sonho em nunca mais ninguém!


Sonho Azul / Líricas Portuguesas. 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

quinta-feira, maio 17, 2007

estampa CVIII

Paul Gauguin, Natureza Morta com Três Cachorros
MoMA, Nova Iorque

Sou uma paisagem arrancada de velha à parede
José Emílio-Nelson

O Vale do Riff - Robert Plant & Jimmy Page, «Rock And Roll»

Terapwho

Cheguei ao concerto com três músicas de atraso.
Quase a morrer com uma quebra de tensão, enfio-me pelo parque de estacionamento abaixo, sem me lembrar que tinha a bagageira posta em cima do tejadilho. À beira da síncope, tenho de tirar o carro em marcha-atrás num percurso «em caracol»... Valeram-me os guardas brasileiros do parque, excelentes praças.
«Who Are You?», era o que estavam a tocar. Espanto-me com a voz ainda potente do Roger Daltrey. O Pete Townshend, velho e bom, óptimo. Saltos pequeninos, e só ao princípio, mas aquele braço direito continua a rodar como há quarenta anos (vai na quinta década de Who...), e como ele toca bem! Clássicos da banda, um medley do último álbum, que não sei porque razão ainda o não comprei. Comovi-me quando chegou «The Kids Are Allright». O Zack Starkey, filho do Ringo, foi uma boa revelação à bateria. Muito público de quarentas, algum de vintes e sessentas, abundância de trintas e cinquentas.
Quando acabou, eu já me sentia melhor.
O Pete Townshend não partiu nenhuma guitarra.

5 décadas de Pete Townshend

terça-feira, maio 15, 2007

Antologia Improvável #225 - Artur do Cruzeiro Seixas (2)

Há torpedos?
Há torpedos.
E há feras enjauladas.
E há o meu dia-a-dia
-- de que não vos falo --
e há fetos
e fetos
e a perna que se ergue e dança até despedaçar a luz
e desfolhar os lagos pétala a pétala
para descobrir que a morte é virgem.
E sobre estas visões
pressentem-se amigos como moedas falsas
líquidos que se infiltram nos poros da falésia
e que oferecem esta matéria fundida
onde ahbito.
Nesse tempo vestia-me eu de mapas
porque os países distantes valorizavam as minhas formas
e seguia pelas estradas
como uma corça ferida.
O poder das coisas intocáveis
nada sabe do que é tão natural quanto metafísico
como A VIDA.
África 65


Obra Poética III
foto: Agulha

O Vale do Riff - June Christy, feat. Nat King Cole & Mel Tormé «How High The Moon»

segunda-feira, maio 14, 2007

Caracteres móveis - Ramón del Valle-Inclán

Era verdade que eu fora o seu mestre em tudo. Aquela rapariga casada com um velho tinha a cândida inépcia das virgens. Há tálamos frios como sepulcros e maridos que dormem como estátuas jacentes de granito. Pobre Concha! Sobre os seus lábios perfumados pelas orações, os meus lábios foram os primeiros a cantar o triunfo do amor e a sua gloriosa exaltação: verso a verso, todo o rosário de sonetos de Pietro Aretino.


Sonata de Outono

(tradução de Rafael Gomes Filipe)

O Vale do Riff - Thelonious Monk, «Epistrophy»

domingo, maio 13, 2007

Acordes nocturnos


Música para ar condicionado e mamas

Desagrada-me a apropriação da música pelas empresas de publicidade. Aborrece-me que a memória me imponha inevitavelmente um aparelho de ar condicionado sempre que oiço as primeiras notas da Primavera de Vivaldi, sem que o padre vermelho tenha disso a mínima culpa. O mesmo se passa com um número interminável de outros compositores; mas, ainda assim, estalo os dedos... e adiante.
Agora o que não tolero é um certo tipo de pastiche, a produção de fancaria que toma conta de uma qualquer composição e a macula. Li algures um protesto veemente do afável Pat Metheny, insurgindo-se contra uma colagem abusiva que um espertalhão chamado Kenny G. fez, com um registo de Louis Armstrong, já não recordo qual. Qualquer coisa como se o Marco Paulo ou a Ágata se pussem a cantar por cima dos Verdes Anos...
Há associações espúrias. A menor delas não foi com certeza o do maravilhoso Bolero ao lixo de um indivíduo denomimado John Derek e a sua grotesca Bo. Esta excrescência lepidolática acabou, contra todas as nossas forças, por enodoar a música em nós -- já que a obra de Maurice Ravel basta-se em si, saindo indemne desta e doutras malfeitorias. Mas nós, contemporâneos desse flato abaixo de hollywood, mesmo que nunca o tenhamos visto -- como sucede comigo, que nem sei o título da coisa, mas era um rapaz novo e provavelmente impressionável pelas mamas postiças de Bo --, mesmo que nunca o tenhamos visionado, foi tal o bru-á-á em torno daquilo, que eu e outros da minha geração estamos condenados à companhia da nódoa até à morte. É como uma fuga radioactiva, que está lá, a envenenar, até ao fim.

Esta semana n'O Vale do Riff






Acordes diurnos


sábado, maio 12, 2007

Antologia Improvável #224 - Sérgio Godinho

CANTIGA DO FOGO E DA GUERRA

Há um fogo enorme no jardim da guerra
E os homens semeiam fagulhas na terra
Os homens passeiam co'os pés no carvão
que os deuses acendem luzindo um tição

Pra apagar o fogo vêm embaixadores
trazendo no peito água e extintores
Extinguem as vidas dos que caiem na rede
e dão água aos mortos que já não têm sede

Ao circo da guerra chegam piromagos
abrem grande a boca quando são bem pagos
Soltam labaredas pela boca cariada
fogo que não arde nem queima nem nada

Senhores importantes fazem piqueniques
churrascam o frango no ardor dos despiques
Engolem sangria dos sangues fanados
e enxugam os beiços na pele dos queimados

É guerra de trapos, do pulmão que cessa
do óleo cansado que arde depressa
Os homens maciços cavam-se por dentro
e o fogo penetra, vai direito ao centro



In José Mário Branco, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

sexta-feira, maio 11, 2007

Caracteres móveis - Graham Greene

Ela disse a si própria, mesmo naquela altura: não sou eu. As outras pessoas é que são assassinadas. Eu não. A vontade de viver que não a deixara acreditar que aquilo podia ser o fim de tudo, para ela, para o eu que amava e apreciava as coisas, confortou-a mesmo quando a almofada estava já sobre a sua boca, não deixando que ela chegasse a perceber o horror completo enquanto se debatia sob as mãos dele, fortes, macias e pegajosas do açúcar em pó.


Assassino a Soldo
(tradução de Fátima St. Aubyn)

Outros tons - Mafalda Arnauth & Corvos, «Hortelã Mourisca»

quinta-feira, maio 10, 2007

Um Casablanca negro

Soderbergh quis fazer um Casablanca negro e conseguiu-o
até porque O Bom Alemão é uma daquelas obras que são clássicas logo que se estreiam

Roseta

Helena Roseta não foi uma grande presidente da Câmara de Cascais. Os que lhe sucederam revelaram-se, porém, muito piores, catastroficamente piores. Lembro-me de vê-la a andar de bicicleta na Marginal e a pedalar pela Avenida Valbom acima, o que era interessante e mesmo inusitado num presidente de câmara daquela época. Se vivesse em Lisboa, era capaz de votar nela.