quinta-feira, maio 31, 2018

criador & criatura

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Johnny Hart e B. C.

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«Debalde muitos homens de génio revestidos da autoridade suprema tentaram evitar a ruína que viam no futuro; debalde o clero espanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquelas eras tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

«Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto como um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas.» Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário (1879)

«O pastor, dado que a ovelha não fosse do seu rebanho, defendeu-a dos lobos, arcabuzando-os donosamente.» Camilo Castelo Branco, O Retrato de Ricardina (1868)

terça-feira, maio 29, 2018

estampa CCCXV - Camille Pissarro


Cabelo de Jovem de Perfil (dita A Rosa) (1896)

«Bela! como um perdão ao pé do cadafalso, / Bela como o luzir do orvalho nas searas, / Nevada como um pé, curto, branco, descalço / Fugitivo através das grandes ervas claras.» Gomes Leal, «Nevrose nocturna» Edoi Lelia Doura -- Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa, edição de Herberto Hélder (1985)


«Era tudo tão pequeno / Que o meu coração sereno / Era o meu cais outonal.» Fernando de Paços, «Poesia» As Folhas de Poesia Távola Redonda, edição de António Manuel Couto Viana (1988)


«Empregados públicos virginais / Deslumbrados com o jazz dos automóveis.» Mário de Andrade, «Rondó do tempo presente» Poesias Completas (1976) / Poezz -- Jazz na Poesia em Língua Portuguesa, edição de José Duarte e Ricardo António Alves (2004) 

eutanásia: há reservas respeitáveis e conversa fiada de catequista

Ao contrário do que escreveu uma moralista de serviço, o PCP não se juntou ao CDS contra os projectos para a despenalização da eutanásia; ao contrário, os dois partidos distinguem-se muito bem.
Apesar de discordar da posição do PCP, que, como é seu timbre, secundariza (para dizer o mínimo) a liberdade individual, percebe-se que há ali um receio sério pelas consequências que, para os mais desprotegidos, adviria da legalização daquela prática; receio que só tem razão de ser  no caso de incompetência do legislador (não seria a primeira vez) ou duma permissividade que não passará pela cabeça da maioria dos proponentes. As reservas do PCP são, no entanto, respeitáveis, quando a ética social chafurda na lama do mercantilismo do quotidiano.
Já o CDS, tal como sucedeu no caso dos colégio privados, não passa do berloque da quinquilharia religiosa que pretende impor aos cidadãos o atraso de vida das suas estúpidas crendices.

domingo, maio 27, 2018

criador e criaturas



F. Ibañez e Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón)


«O velho Marley estava mais morto do que um prego de porta!» Charles Dickens, O Natal do Sr. Scrooge [A Christmas Carol] (1843) (tradução de Lucília Filipe)

«Eu não sabia o que procurava o frade Guilherme, e, para dizer a verdade, ainda hoje o não sei, e presumo que nem sequer ele o soubesse, movido como era pelo único desejo da verdade e pela suspeita -- que sempre lhe vi nutrir -- de que a verdade não era aquela que lhe aparecia no tempo presente.» Umberto Eco, O Nome da Rosa (1980) (tradução de Maria Celeste Pinto)

«Somos os homens mais bem informados sobre tudo o que de mentiras se imprime pelo mundo.» Raymond Abellio, Os Olhos de Ezequiel Estão Abertos (1949) (tradução de Rafael Gomes Filipe)

«Cirice»

sábado, maio 26, 2018

«Euskal Herrian Euskaraz»

«Papai, quando vinha da fábrica. me fazia sentar sobre os seus joelhos e me ensinava o abc com a sua bela voz.» Jorge Amado, Cacau (1933)

«Nunca fora querido das devotas: arrotava no confessionário, e tendo sempre vivido em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera, por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875)

«Mas não era necessário ler o papel que o polícia trazia no bolso: Januário de Sousa, filho de Ana Maria e de pai incógnito, etc.; bastava deitar o rabo do olho à sua pele morena, lisa e macia, que nem a água passada a ferro na popa dos barcos, para se ver que ele não tinha mais de vinte anos, apesar de os seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do mundo.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)


sexta-feira, maio 25, 2018

estou a ler


«Tão pequenas / a infância, a terra.» Carlos de Oliveira, «Infância», Turismo (1942) / Trabalho Poético (1978)

«E o luar, o luar magnífico e sereno, / Só ele compreende a minha dor / Porque me beija o rosto nazareno;» Duarte de Viveiros. «Parada dos ângulos agudos» Obra Poética (1960, póstumo)

«Nós, meninos, paralisados de medo / e espanto.» Rui Knopfli, «O monhé das cobras», O Monhé das Cobras (1997)  

quinta-feira, maio 24, 2018

Descobrimentos Portugueses: o #metoo da historiografia

«Museu das Descobertas». A designação é obviamente simplória. Não pelas razões que aduzem aqueles que sacrificam ao politicamente correcto, como pela pobreza do conceito para caracterizar um complexo movimento político, social, económico, cultural, religioso, científico por detrás da expansão e dos descobrimentos portugueses. A ideia, aliás, inscrita em programa eleitoral, tem todos os contornos dum típico coelho tirado da cartola da politquice barata, para efeitos de pirotecnia de campanha, sem cuidar do como e do porquê.

Costumo dizer que graças aos Descobrimentos e à Expansão, os portugueses  garantiram a sua presença na história da Humanidade; somos uma espécie de fenícios dos tempos modernos, quando poderíamos ficar-nos pela dimensão duns quaisquer túrdulos da cultura castreja... Não vou, porém, falar da pertinência ou da oportunidade da criação de uma grande museu dos descobrimentos, quando o património cultural do país está na miséria que se sabe. Para já, interessa-me a questão levantada em torno do nome.

A discussão e o debate de ideias é sempre excelente, porém, quando, a coberto duma cientificidade de analfabetos se pretende distorcer a História, não me apetece ter grande contemplações para um texto  indigente, assinado por algumas figuras estimáveis. Felizmente, não tenho vocação de discípulo nem gosto de rebanhos. E, nessa perspectiva, também não me deixarei condicionar pelos arremedos autoritários, para não escrever 'totalitários', que lançam o labéu de fascistas ou fascizantes àqueles que deploram um embuste e um esquema mental que dá origem a idiotices como esta.

Em primeiro lugar, a haver um museu com esta temática, o seu interesse para a comunidade só se justifica se partir duma perspectiva portuguesa; caso contrário, é melhor tratar do merchadising com os americanos e pô-los a fazer uma espécie de Disneylândia inspirada nos tempos do Gama e do Albuquerque. Por que diabo um museu português não deveria ter uma perspectiva portuguesa, integrando numa visão planetária, essa mesma que contribuíram decisivamente para alcançar, gostemos ou não? Claro que uma abordagem objectiva e sem patriotinheirices, sem escamotear o horror, a pilhagem, o domínio, o tráfico de escravos -- actividade que nos distinguiu durante demasiado tempo. De resto, como é que depois de Vitorino Magalhães Godinho, de Luís de Albuquerque, de tantos historiadores, portugueses e estrangeiros, que se debruçaram sobre aqueles séculos de história portuguesa, se admite que doutra forma pudesse ser? Falamos de museu ou dum evento, entre os jogos-sem-fronteiras e o festival-da-canção?...

Ao contrário dos que escrevem os guardiões do moralismo anacrónico, a palavra não "cristaliza uma incorrecção histórica", pelo contrário. Houve, de facto, descoberta de territórios desabitados, desconhecidos de toda a Humanidade; tal como aconteceu o desvendar de rotas nunca por outros singradas; e o evidente descobrimento de um mundo mais amplo que rompia com uma percepção que remontava à Antiguidade. Se isto não é descobrimento é o quê, então? E não deve este pioneirismo ser conhecido da comunidade portuguesa, sem a basófia antihistórica dos manuais da República e do Estado Novo? 

É verdade que os outros povos não foram "descobertos", por isso se recorre, com razão, ao acoplamento da palavra "Expansão". Ao contrário dos "Descobrimentos",  que remontam à Idade Média (as "Navegações", em bom rigor, recuam ao Neolítico...), o movimento expansionista e imperial português tem uma data delimitada e uma ocorrência definida: 1415, ano da conquista de Ceuta (e mesmo assim com algumas raízes político-económicas que não há espaço para abordar). A partir daqui Expansão e Descobrimentos são duas faces duma mesma moeda. E nela está inscrita o colonialismo português, particularmente vil, cuja libertação se deveu aos povos colonizados e aos seus movimentos de libertação: PAIGC, MPLA, FRELIMO, movimentos tão de libertação que até contribuíram decisivamente para libertar os portugueses.

Obliterar a noção de descoberta não é só uma parvoíce, como a tentativa, de resto inglória, de rasurar da História um processo que nos identifica como comunidade, com um lastro cultural avassalador (como se lê e vê e sente nestes versos da Sophia de Mello Breyner Andresen e do António Pedro) ; uma espécie de #metoo da historiografia, em nome dos bons sentimentos. Ora, se a exclusividade dos bons sentimentos em arte borram a pintura, na historiografia ainda fazem pior, chama-se vigarice.
«Toda a gente foi domingo / alguma vez.» A. M. Pires Cabral, «Degradação», Arado (2009)*

«Têm as mão brancas de sal / E os ombro vermelhos de sol.» Sophia de Mello Breyner Andresen, «Os navegadores», Mar Novo (1958)**

«Nas ondas sozinhas / Nem um navegante / Nem aves marinhas...» António Pedro, «Canção dum mar ao largo», Ledo Encanto (1927)***

* Resumo -- A Poesia em 2009 (edição de José Alberto oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, 2010)
** Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa (ed. Ana Hatherly, 1960)
*** No Reino de Caliban I (ed. Manuel Ferreira, 1977)

terça-feira, maio 22, 2018

estampa CCCXIV - Júlio Pomar


Ferreira de Castro (1974)

estou a ler


«Seu colo tem do lírio a rígida firmeza, / Seu amor é um céu católico e distante...» Gomes Leal, «O visionário ou Som e cor», Claridades do Sul (1875) *

«A filha do usineiro de Campos / Olha com repugnância / Para a crioula imoral.» Manuel Bandeira, «Não sei dançar» Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira (1984)**


* Edoi Lelia Doura -- Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa (ed. Herberto Hélder, 1985)
** Poezz -- Jazz na Poesia em Língua Portuguesa (ed. José Duarte e Ricardo António Alves, 2004)

segunda-feira, maio 21, 2018

«No princípio de Julho, por um tempo extraordinariamente quente, ao anoitecer, saiu um rapaz do quarto modesto que ocupava na Rua de S...» Féodor Dostoievski, Crime e Castigo (1866) (trad. Maria Franco)

«Na minha opinião, não se podem criar personagens senão depois de ter estudado muito os homens, assim como não se pode falar uma língua senão depois de a ter aprendido a fundo.» Alexandre Dumas, Filho, A Dama das Camélias (1848) (trad. Sampaio Marinho)

«Isto só podia acontecer na Inglaterra, onde mar e homens se misturam, digamos -- onde o mar entra pela vida da maior parte dos homens e os homens sabem qualquer coisa ou tudo sobre o mar através do seu lazer, das viagens ou do pão de cada dia.»  Joseph Conrad, Mocidade -- Uma Narrativa  (1902) (trad. Aníbal Fernandes)

um verso de António Arnaut

«Só a linha recta ousa o infinito!» Nobre Arquitectura (2003)
«Estendido onde a sombra lhe parecera mais agradável, Manuel da Bouça seguia o trabalho da ave e recordava o tempo da infância, já distante, em que vasculhava veigas e montes à busca de ninhos, só pelo prazer de os descobrir e disso se vangloriar ante o rapazio do lugarejo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

Ao longe, por detrás do segundo barco, mostravam-se as Desertas, negras na manhã radiosa, mas pousadas em mar tão manso que, mais do que ilhas atlânticas, dir-se-iam contrafortes dum lago.» Ferreira de Castro, Eternidade (1933)

«Porém, como quer que o pai lhe falecesse, e a mãe contrariasse a projectada formatura, em razão de ficar sozinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou à carreira das letras, deu-se ao governo do casal algum tanto, e muito à leitura de copiosa livraria, parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em cânones, cónegos desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela ilustríssima de sua mãe.» Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo (1865)

domingo, maio 20, 2018

os dramáticos gritos das fêmeas

São várias as mulheres, não se vêem. Já uma vez tinha ouvido estes gritos lancinantes, quando, há uns anos, foram detidos uma série de indivíduos, no Porto, creio que no caso da máfia da noite, ou coisa que o valha. Então como agora, à porta do tribunal do Barreiro, os mesmos gritos, dramáticos, quase guturais. Gritos que não sei interpretar: se de desespero ou de conforto, se juras de fidelidade na adversidade ou ritual colectivo de raiva contra o mundo.

estampa CCCXIII - Léon Bakst


Modelo (1905)

sábado, maio 19, 2018

estou a ler


«Entre feridas brumas, um muro branco branco escorre do sol.» Vergílio Alberto Vieira, Coágulos (2002)

«Sem esta terra funda e fundo rio, / Que ergue as asas e sobe, em claro voo; / Sem estes ermos montes e arvoredos, / Eu não era o que sou.» Teixeira de Pascoais, As Sombras (1907)*

«-- Eu faço versos como quem morre.» Manuel Bandeira, «Desencanto», A Cinza das Horas (1917)**

* Antologia Poética, ed. Ilídio Sardoeira [1977]
** Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira, ed. Francisco de Assis Barbosa (1984; 4.ª ed, 1986)


quanto tempo resiste um populista?

O caso Bruno de Carvalho (estreia absoluta neste blogue) deve ser um regalo para os sociólogos, politólogos e outros observadores. Sem fazer grandes juízos de valor sobre tudo o que se passa no espaço público -- a não ser que este país é extraordinariamente cansativo pela boçalidade que se estende do bom povo às más elites --, neste momento só uma coisa me suscita interesse: ver como resiste o populista Bruno de Carvalho (emprego o termo 'populista' da forma mais neutral possível), ao ataque do mundo dos futebóis, da imprensa, da política e, eventualmente, do judicial. Por quanto tempo? À partida, diria que está por um fio; ninguém tem tanta força para arrostar com alguns dos sectores mais fortes da sociedade; mas quantos dos tais 3,5 milhões estão com ele?; e quem e quantos, do submundo da finança, continuam a sustentá-lo? A questão que prende o país nos próximos dias. 

«Going Places»

«o teu retrato transita de solidão em solidão» m. parissy, «canção do mar» Cafurnas (2002)

«A luz do mundo nestas margens irreais do rio triste / Nas águas brilha é um rumor é um clamor metal intenso» Luís de Miranda Rocha, Os Arredores do Mar, os Subúrbios da Noite (1993)

«Passei pela minha vida / Um astro doido a sonhar.» Mário de Sá-Carneiro, «Dispersão», Dispersão (1914)

quinta-feira, maio 17, 2018

50 discos: 26. SONGS FROM THE WOOD (1977) - #6 «Velvet Green»



«Por vezes as cartas geográficas representam / uma aldeia marítima entre rochas / muros brancos / onde uma criança desenha um barco esconde / o mar.» João Miguel Fernandes Jorge, Alguns Círculos (1975)

«Depois, / com valados, elevações e planuras, e mais rios // entrecortando a savana, e árvores e caminhos, / aldeias, vilas e cidades com homens dentro, / a paisagem estendia-se a perder de vista / até ao capricho de uma linha imaginária.» Rui Knopfli, «Pátria», O Escriba Acocorado (1978)

«Quantos há que passaram entre as turbas, / Os felizes do mundo, as alegrias, / E ninguém os viu rir!» Gomes Leal, «Trevas», Antologia Poética (s.d.) (ed. Cecília Barreira)
«O local não era desagradável, era mesmo perfeito, desde que não se encarasse como uma decepção, mas sim como um sonho.» G. K. Chesterton, O Homem que Era 5.ª Feira (1908) (tradução de Domingos Arouca)


«Tinha uma voz profunda, sonora, e os seus modos revelavam uma espécie de afirmação obstinada de si mesmo em que não havia agressividade.» Joseph ConradLord Jim (1900) (tradução de Cármen González)


«Tudo nele se  caracterizava pela ênfase: o modo autoritário, a voz decidida, inflexível, os cabelos eriçados em torno de uma brilhante careca.» Charles Dickens, Tempos Difíceis (1854) (tradução de Domingos Arouca)

quarta-feira, maio 16, 2018

contentamentos de pai


«Perfeito o horizonte se descerra / tecnicamente pela mão de Deus» António Barahona, Noite do Meu Inverno (2001)

«Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo... / E o meu corpo ondulante de sereia / Dorme em teus braços másculos de vândalo... » Florbela Espanca, Juvenília (1931, póst.)

«Um sentido clamor, como suspiro / De amargurado tom, vem da amurada / Do alteroso galeão.» Almeida Garrett, Camões (1825)

terça-feira, maio 15, 2018

Israel compromete o seu direito à existência

Fui um admirador do estado de Israel, pelo menos até à reiterada confiança que o seu eleitorado tem dado a um tipo pouco recomendável, chefe de governos que albergam organizações ultranacionalistas e religiosas.
Até agora, fui um defensor da existência de Israel; mas quando vejo um estado abater como gado gente que se manifesta contra a ocupação da terra que lhe foi roubada e da qual foi expulsa (não precisam de ser mulheres, crianças e velhos) --, não só não me apetece continuar a defendê-lo, como estou a um passo de considerar a sua existência nociva.
«Era o pino do inverno / e a cidade atravessava uma idade glacial // do coração.» Rui Pires Cabral, «"Em algumas das fotos aparecíamos juntos."», Oráculos de Cabeceira (2009)

«E quando páro e faço a propaganda / dos lugares mais comuns da poesia / há um terror quase obsceno / nos seus olhos maternais» Alexandre O'Neill,, «Em pleno azul», Tempo de Fantasmas (1951)

«Na noite da consciência / versos só podem ser pragas.» José Fernandes Fafe, «Sonetilho velho e actual», A Vigília e o Sonho (1951)

segunda-feira, maio 14, 2018

criadores & criatura

 

Uderzo, Goscinny e Humpá-pá, o Pele-Vermelha
imagem


«O sol descia rápido, já perto / De seu diurno termo, começava / A distinguir no verde-mar das águas / A açafroada cor de que se adorna / No ocaso derradeiro.» Almeida Garrett, Camões (1825)

«Se ao meu ouvido / Chega o rugido / Do teu vestido / Indo a roçar, / Que som me vibra / Não sei que fibra, / Que me equilibra / A mim no ar?» João de Deus, «Casto lírio», Campo de Flores (1893)

«Um caminho de areia conduzindo a parte nenhuma.» Rui Knopfli, «Pátria», O Escriba Acocorado (1978)

«Take The 'A' Train»

quinta-feira, maio 10, 2018

lido


«Era a terra calada como um monge...» Florbela Espanca, «Idílio», Antologia Poética (2002)

«O som do mundo é irreal sobre a cidade de Lisboa» Luís de Miranda Rocha, Os Arredores do Mar, os Subúrbios da Noite (1993)

«os cigarros são fumados com a promessa / de que o fumo não acabe» m. parissy, «viagem de comboio com poemas do zé petinga», Cafurnas (2002)
«Na cabeça calva, faces lívidas, queixo recuado, os olhos guardavam um terror de demência, dilatados de espanto pelo próprio grito que lhe escancarava a boca.» Manuel da Fonseca, Cerromaior (1943)

«Nas costas da Cantábria o paquete encontrou tão rijos mares que a sr.ª D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometeu ao Senhor dos Passos de Alcântara uma coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póstumo, 1901)

«Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, como o de um corpo em decomposição.» José Eduardo Agualusa, Nação Crioula (1997)

quarta-feira, maio 09, 2018

Dia da Europa

O LIVRE elaborou várias bandeiras alusivas ao Dia da Europa ou Dia da União Europeia, e partilhou-as com os seus amigos. Porque a ideia é demasiado boa (a das bandeiras também, mas refiro-me à de união europeia), e porque não podemos permitir-nos deitar fora o bebé com a água do banho, continuo a ser fortemente por uma Europa, dos povos, claro e não das corporações. Várias das bandeiras são particularmente bem esgalhadas, mas como o desafio é para escolher uma, vai a óbvia, que em si acolhe todas as outras.
«O meu destino é outro -- é alto e é raro.» Mário de Sá-Carneiro, «Partida», Dispersão (1914)

«Venho de longe, no verbo latino, no axioma / grego, fui escravo no Egipto, homens / morreram a meu lado e vendo-lhe os olhos / agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto.» Rui Knopfli, «Proposição», O Escriba Acocorado (1978)

«Ontem choveu sem descanso / e fizemos tudo mal.» Rui Pires Cabral, «"We are flint and steel to each other."» Oráculos de Cabeceira (2009)

terça-feira, maio 08, 2018

a visita de Leonardo Boff a Lula

Lula livre!
«Um salto de raposa sobre a estrada / último sol à beira da fronteira.» Helder Macedo, Viagem de Inverno (1994)

«Um mar assim / areia dividida deste fogo / desta luz ardendo no terraço / cada vez mais azul onde o azul clarece em azul / onde o sol vai do setembro saindo.» João Miguel Fernandes Jorge, Ternos Dizeres (1973)

«Nos mastros vibra o som do ar um vento forte vespertino» Luís de Miranda Rocha, Os Arredores do Mar, os Subúrbios da Noite (1993)
«Esta pressa, esta correria e, talvez, também, os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho.» Albert Camus, O Estrangeiro (1942) - (tradução de António Quadros)

«Então a máquina lançou uma esplêndida pluma de vapor e afastou-se devagar, com uma fila de caras olhando-me inexpressivamente.» J. L. Carr, Um Mês no Campo (1980) - (tradução de Isabel Neves)

«Ele leccionava numa escola tão nojenta como o apartamento onde vivíamos, e eu era tarefeiro numa editora de negreiros, revendo traduções, corrigindo provas, mas como os nossos salários de miséria nem chegavam para pagar o aluguer do apartamento e garantir o nosso sustento, aceitávamos aqui e ali todos os trabalhos suplementares a que conseguíamos deitar mão, por mais estranhos que fossem, desde propor nomes a uma agência de publicidade para que esta escolhesse de entre eles o de uma nova companhia aérea, até ordenar os arquivos do Hospital de la Vall d'Hebron, passando por escrever letras de canções, que nunca nos foram pagas, para um músico que agonizava sem inspiração.» Javier Cercas, A Velocidade da Luz (2005) - (tradução de Helena Pitta)

segunda-feira, maio 07, 2018

50 discos: 46. LUDWIG VAN BEETHOVEN -- SYMPHONIEN NOS. 5 & 6 «PASTORALE» (1984) - #6 «Andante molto mosso»



«Chega ao fim do dia / a hora mais lenta, quando o céu / é vago e as luzes se acendem / no prédio da frente.» Rui Pires Cabral, «"I felt that it was all unreal."», Oráculos de Cabeceira (2009)

«É no mar que a aventura / tem as margens que merece» Alexandre O'Neill, «Canção», Tempo de Fantasmas (1951)

«Por que me lembrais, ó olhos, / A minha imensa saudade?» Florbela Espanca, Antologia Poética (edição de Fernando Pinto do Amaral, 2002)

domingo, maio 06, 2018

«Os dois bicos  do candeeiro de gás fervilhavam inúteis, por cima da mesa; e ele, então, caiu sobre mim, a sacudir-me com fúria:» Francisco Costa, Cárcere Invisível (1949)

«O destoante casario campeava, porém, já fora da catedral e formava, com o seu largo abraço saindo-lhe discretamente dos flancos, uma como que cintura defensiva lançada à roda da venerável cabeceira do templo, onde resplendia ainda o diadema estilhaçado das capelas góticas.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1919)

«Afeiçoara-se o velho à mansidão do neto infantil; vira-o crescer em seus braços com as branduras ameigadoras, como se a criança previsse o futuro desamor dos pais, e estivesse de contínuo a granjear a amizade do avô.» Camilo Castelo Branco, O Judeu (1866)

«This Is A Call»

sábado, maio 05, 2018

estampa CCCXII - Albert Ranney Chewett


Jovem Lendo

«Mistas Verdades»

Carta da escritora Luciana Hidalgo a Lula

Do blogue de Leonardo Boff

Explico como: logo de início o senhor abriu crédito para ajudar pobres a comprar eletrodomésticos básicos; subsidiou a compra de tintas e materiais para que construíssem suas casas; criou o Banco Popular, ligado ao Banco do Brasil, permitindo que pobres tivessem conta em banco; levou iluminação elétrica aos recantos rurais mais atrasados pela escuridão (Luz para Todos); criou o Bolsa Família, tirando 36 milhões de brasileiros da miséria e obrigando seus filhos a voltar à escola; levou água para milhões de brasileiros que sofriam com a seca no interior semiárido (programa Cisternas, premiado pela ONU); inventou Minha Casa Minha Vida, distribuindo moradias Brasil afora; criou Farmácias Populares que vendiam medicamentos com descontos para a população de baixa renda; implementou cotas raciais e sociais em universidades, contribuindo para que jovens negros e/ou vindos de escolas públicas pudessem estudar e no futuro talvez escapar de serem assassinados nas ruas do Brasil; implantou o Prouni (Universidade Para Todos), oferecendo bolsas para alunos de baixa renda estudarem em faculdades particulares; aumentou o salário-mínimo acima da inflação; etc.
Não me beneficiei pessoalmente de nenhum dos seus programas sociais, querido presidente. Sou brasileira privilegiada, nascida numa classe média da zona sul carioca. Fui jornalista nas maiores redações do Rio (Jornal do Brasil, O Globo, O Dia), depois virei escritora (premiada com dois Jabuti), fiz um doutorado e dois pós-doutorados em Literatura, na Uerj e na Sorbonne. E é justamente por isso, por tudo o que li, vi e aprendi, sobretudo na França onde morei durante anos, que posso dizer: países europeus só se desenvolveram porque aplicaram e aplicam projetos como os seus. Na França, por exemplo, o salário-mínimo é de uns R$ 4 mil (graças a décadas de greves e manifestações de trabalhadores “vândalos” por melhores salários); o seguro-desemprego dura de dois a três anos para que o desempregado não caia na miséria; há “locações sociais” que garantem moradia aos menos privilegiados; todos os remédios receitados nos hospitais públicos são dados ou subsidiados pelo governo etc.
Sabe, querido presidente, quando a perseguição ao senhor começou na mídia, me lembrei do Betinho. Quase ninguém mais se lembra dele, o sociólogo Herbert de Souza, que criou associações de combate à fome e de pesquisa sobre a Aids nos anos 1990, quando os programas sociais do Estado eram insignificantes. Pois bem, esse cara, que devia ser coroado por seu esforço descomunal pelos pobres, um dia acordou sendo linchado da forma mais violenta pela imprensa por ter recebido doações de bicheiros. Os “puros” do país o atacaram de todos os lados, logo ele, “o irmão do Henfil” ex-exilado, hemofílico e soropositivo, tão magrinho, fiapo de gente, um dos poucos a combater a fome no Brasil. Mas não, para os “puros”, nada do que ele fazia pelos pobres compensava esse grande “erro”. Como se no Brasil houvesse dinheiro realmente “limpo”.

sexta-feira, maio 04, 2018

«Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis / de ignomínia e acusação.» Rui Knopfli, «Proposição», O Escriba Acocorado (1978)

«e agora ao chegar à fechadura / arranco estes botões de velha agrura / e grito -- é doce amar-te na berma dos cinquenta.» Cristóvão de Aguiar, «Na orla dum soneto», Sonetos de Amor Ilhéu (1992) 

«E tudo arde o ar que queima é obscuro é luminoso / O real anda num furor da tarde cai a luz difusa / O real queima o ar que arde a vaga forte a luz intensa» Luís de Miranda Rocha, Os Arredores do Mar, os Subúrbios da Noite (1993)

Sócrates, o PS, eleições, etc.

Chegado aqui, creio que reafirmo tudo o que escrevi sobre o caso Sócrates. (É fácil ver se há incoerência da minha parte: cliquem na etiqueta 'José Sócrates', e vão lá ver).


No entanto, há novidades.


A primeira é a difusão das gravações dos interrogatórios, agora em imagem, depois de terem sido, pelo menos parte delas, bastamente transcritas pelos jornais. Assisti à quase totalidade do que foi transmitido pela sic, e sobre isso já escrevi; no canal do correio da manha só assisti, por puro voyeurismo, ao interrogatório a Fernanda Câncio, com comentários toscos em off para a audiência analfabruta. Um dos casos em que não se pode alegar "interesse público", mas intromissão e violação grosseira e criminosa dos direitos básicos de uma cidadã.

A maior novidade é a admissão por parte de Sócrates de um esquema para alcandorar o seu livro ao top de vendas. Enfim, por piedade, dispenso-me de classificar esse comportamento e a justificação dele, dizendo, no entanto -- e sem que isso seja uma atenuante --, que no mundo dos livros conheço vários casos de miséria moral, de autores que se prostituem e envilecem por causa das obritas paridas pelas suas cabecitas. É evidente que para este tipo de pessoas, a literatura em geral, seja ela de ficção ou de ideias, é puramente instrumental. Normalmente, o tempo, mais cedo do que tarde, acabará por remetê-los, livritos & autorecos, para a irrelevância que foi sempre a sua, por muitos topes, lançamentos e aparições na televisão que logrem. A imagem de grand seigneur com que Sócrates fantasiou -- impossível para quem, como eu, tem memória de elefante e se lembra da entrevista dos "filósofos espanhóis" -- resulta improcedente desde a confissão do pecadilho da vaidade.

O PS não podia deixar de reagir, ainda por cima com o caso Manuel Pinho a aquecer a Primavera. Fê-lo bem um apreensivo António Costa, no Canadá; pelo que li dos outros, terão ficado pior na fotografia: protestos de potencial vergonha, com 'ses' e tudo, ou se manifesta logo com os 'ses' devidos ou guarda de Conrado o prudente silêncio´, pelo menos até ao anúncio duma sentença, e não agora porque há eleições à vista. Se, à conta destas tropelias, o PS não tiver maioria absoluta e a direita continuar arredada do Poder, já valeu a pena.

O texto de Sócrates no Jornal de Notícias.

P.S. (post sciptum) - no meio disto, os vigaristas da direita continuam incólumes, dos submarinos do CDS aos próceres do cavaquismo.

quinta-feira, maio 03, 2018

estampa CCCXI - Robert Auer


Leda e o Cisne (1938)

«Não sei que luz vaga, / Mas íntima luz, / Que nunca se apaga, / Me inunda, me alaga, / Se os olhos lhe pus!» João de Deus, «Amor», Campo de Flores (1893) 

«Afronta-me um desejo de fugir / Ao mistério que é meu e me seduz.» Mário de Sá-Carneiro, «Partida», Dispersão (1914)

«À tua mãe o marfim crucificado / ao teu pai o vício mais ronceiro / e a quem quiser / os lindos pentes da virtude» Alexandre O'Neill, «Deixa», Tempo de Fantasmas (1951)
«Era uma cidade serena, que apenas acordava, por breves instantes, quando o Panama Limited ou outros rápidos da linha central do Illinois a atravessavam, cortando o silêncio rústico com o seu grito estridente.» Erskine Caldwell, Ilha de Verão (1968) - (tradução de Fernando Luís Cabral)

«Vou começar pela estátua: a de cima, a permanente, a sem estilo, a que chora lágrimas de cobre, a que lega à posteridade a imagem circunspecta de um homem com um laço desajeitado, colete quadrado, calças largas como sacos, bigode em desalinho.» Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert (1984) - (tradução de Ana Maria Amador)

«Seja qual for o descrédito em que tenha caído a palavra drama, devido à maneira abusiva e intolerável com que tem sido prodigalizada nestes tempos de literatura pungente, é necessário empregá-la aqui.» Honoré de Balzac, O Tio Goriot (1835) - (tradução de Adelino dos Santos Rodrigues)

quarta-feira, maio 02, 2018

50 discos: 37. SNAKES AND LADDERS (1980) - #6 «Bring It All Home»



«Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará.» Pero Tamen, «Herzog», Analogia e Dedos (2006)

«Conforme / Tu vibras os cristais da boca musical, / Vai-nos minando o tempo, o tempo -- o cancro enorme / Que te há-de corromper o corpo de vestal.» Cesário Verde, «Ironias do desgosto», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)

«Mas não seria, até um crime, / preferível ao betão raso deste dias?» Manuel de Freitas, «Avanti Marinaio», Walkmen (2007)
«No olhar, dilatado e teimoso, duma secura inflamada e vítrea, fulgurava a obstinação dum desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, numa febre de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram nervosamente sacudidos por uma forte preocupação animal.» Abel Botelho, O Barão de Lavos (1891).

«Ouvi chamarem-lhe santo homem, com unção e humildade; mas ouvi também minha avó, de lágrimas nos olhos e ódio na boca, amaldiçoá-lo por mais de uma vez, como se dum tirano falasse.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)

«Os acontecimentos se amarrariam uns aos outros -- uns puxando os outros -- através do confuso turbilhão das noites e dos dias.» José Eduardo Agualusa, A Conjura (1998)

terça-feira, maio 01, 2018

estampa CCCX - Zigmunt Menkes

Concerto no Atelier (1950)

«Há em certas cidades da província casas cuja visão inspira uma melancolia igual à que nos causam os claustros mais sombrios, as charnecas mais estéreis ou as ruínas mais lúgubres.» Honoré de Balzac, Eugénia Grandet (1833) - tradução de Jorge Reis

«Na maior parte do seu curso, o rio Drina corre através de gargantas apertadas, entre serras abruptas ou profundos desfiladeiros de arribas escarpadas.» Ivo Andrić, A Ponte Sobre o Drina (1945) - tradução de Lúcia e Dejan Stanković,

«Eu tinha oito anos quando minha mãe me trouxe as novas: o rei doara a meu pai um solar.» Maurice Baring, O Trono e o Altar (1930) - título original: Robert Peckham, tradução de Jorge de Sena

«Free Jazz»

«Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outra vez se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o íntimo apelativo de vapor de família.» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

«Logo a seguir à revolução, em Abril do ano anterior, civis barbudos e soldados de cabelo comprido e camuflado em tiras vigiavam as estradas, revistavam automóveis, ou desfilavam lá em baixo, em bando, nas pracetas, comandados por um desses microfones incompreensíveis de sorteio de cegos que o marxismo-leninismo-maoismo reciclara.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

«E os gaiatos aporfiavam em acertar-lhe pelouros de lama, lucrando aplausos e gargalhadas do auditório os mais certeiros. E, assim que a noite se fechava, e a lâmpada do altar vasquejava os lampejos finais, ninguém se afoitava a transitar naquelas ruas de encruzilhada, desde que se divulgou que os demónios, a horas mortas, marinhavam, como bugios, pelo barrote onde a cabeça do regicida apodrecia.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Regicida (1875)