domingo, novembro 30, 2014

o discurso de António Costa, as esquerdas, as direitas e a importância do Livre

Um discurso substantivo, ideológico e inteligente, dizendo ao que vem e o que quer, com sinalizações no âmbito europeu e lusófono, e pontes magníficas para a realidade portuguesa: dos temas sociais (a violência doméstica, como pústula intolerável; a coadopção e a recusa da imposição de moralismo beato) às questões patrimoniais e identitárias (do cante alentejano, oportunamente trazido aos trabalhos, à importância das datas de referência como o 1.º de Dezembro, que a direita, que se ufana de nacionalista, deitou para o caixote do lixo, esportulada pela Troika). Isto é grande política.
Depois, a clarificação à direita e à esquerda: 
À direita, dizendo que a política de PSD e CDS, que enfraqueceu o país e destruiu milhares de lares, famílias, vidas, e que agachou miseravelmente um país central na história europeia com quase 900 anos -- que essa política pestífera e os seus agentes são para se varrer;
À esquerda, essa esquerda totalitária do PCP (macaqueada pelo BE), com um sectarismo que se confunde com fanatismo religioso, e que objectivamente abriu as portas da governação ao PSD e CDS; a essa esquerda, que tem cumprido o seu papel histórico desde a República de Weimar, António Costa mostrou que, estando aberto ao díálogo, não conta com ela (até porque a conhece bem, não só da sua acção como por experiência familiar). 
Resta o LIVRE, saudado por Costa, cuja eleição de deputados tem esta importância: impedir uma maioria absoluta do PS (é sempre negativo que um partido de poder, cheio de vícios e clientelas a alcance, como se tem visto, por muito capaz que o líder possa ser, como é o caso do actual presidente da Câmara de Lisboa); e ter uma representação parlamentar que permita impedir que o PS, em minoria, fique nas mãos do CDS ou, pior ainda, do PSD.

sábado, novembro 29, 2014

acordes nocturnos


a tiritar de desemprego, de expedientes e de salários em atraso

«Depois da memorável sessão de fados para estrangeiro ouvir e esquecer, para estrangeiro não entender, para estrangeiro garantir que sim, que se extasiou, tínhamo-nos arredado um pouco, no último andar daquele hotel pseudocosmopolita, para o vão dessa janela de onde mal se via uma Lisboa sujamente espectral, toscamente iluminada, a tiritar de desemprego, de expedientes e de salários em atraso, sob um esfarrapado capote de nevoeiro.»

David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz (1986)

DIAMOND SMILES


sexta-feira, novembro 28, 2014

estados emocionais alterados

Enquanto houver literatura portuguesa (ou a memória dela), Garrett será sempre um dos nomes cimeiríssimos. E, portanto, nem sequer estou a contemplar a sua dimensão histórica e política, que foi grande. Não é impunemente que se escreve uma obra-prima absoluta (Frei Luís de Sousa), a melhor poesia do romantismo português (Folhas Caídas) ou se inaugura o romance moderno em língua própria (Viagens na Minha Terra). É o primeiro escritor português da primeira metade do século XIX, e só uma pessoa pode com ele ombrear, principalmente graças a monumental e fundadora obra de historiador: Alexandre Herculano.
Vem isto a propósito das Cartas de Amor à Viscondessa da Luz. Sobre Eça de Queirós (outro gigante), Vergílio Ferreira disse qualquer coisa parecida com isto: dele tudo nos interessa, até a conta da lavandaria. Estas cartas são obra paraliterária, não foram escritas para publicação e reflectem um estado emocional alterado. Embora a epistolografia possa ostentar-se os galões de literatura de pleno direito -- vários foram os autores que viram as suas cartas equiparadas à obra mais séria, quando não suplantá-la: estou a lembrar-me de obras-primas como as Cartas do Cárcere, de Gramsci ou da maior parte das missivas do Eça, sempre ele --, não é isso que se passa com estas do punho garretiano.
Não que elas seja excessivamente anódinas, bem pelo contrário; não que a sua publicação não se justificasse. Há nelas muitos elementos úteis para estudo em várias áreas.
São cartas de tal modo pessoais, unívocas, íntimas e obsessivamente repetitivas, que valem por essa expressão extrema de amor ardente e transgressor, penetrando de tal forma na intimidade do escritor que valem por essa verdade desvelada. Felizmente, o Pessoa já nos dera o antídoto para as cartas de amor -- e além do mais, que diabo!, esta paixão deu-nos as Folhas Caídas... 22 cartas que se salvaram, dentre as centenas que foram escritas e trocadas. Um milagre, portanto. É a segunda vez que se publicam, depois da edição de José Bruno Carreiro, que assinalou, em 1954, o centenário da morte de Garrett, um trabalho impecável do investigador brasileiro Sérgio Nazar David.
Em duas palavras: Rosa Montúfar Infante, espanhola lindíssima, mulher do Visconde da Luz, militar e político de destaque, é amante de Almeida Garrett na segunda metade da década de 1840 até ao início do decénio seguinte. de Garrett temos a ideia do escritor quase-dândi, viril e sedutor com as mulheres, o eco do tribuno de voz bem colocada e palavra assertiva, do homem de acção que foi um dos bravos do Mindelo. ler-lhe os delíquios amorosos chega a ser perturbador e incómodo, passados 160 anos da sua morte, de tal modo ele é ainda nosso contemporâneo. As cartas são patéticas -- a paixão é patética (todas as paixões o são). A que leva o número XVIII, em que testemunhamos o seu desengano, a sua ingenuidade, o seu desgosto, essa, então, é dilacerante.
Assim sendo, não estando estas cartas de Garrett nos píncaros da epistolografia portuguesa, são de enorme relevância biográfica. E mais do que isso: iluminam alguns poemas de Folhas Caídas, de um modo que não se suspeitava. Só por isso a sua edição teve toda a razão de ser.

Almeida Garrett, Cartas de Amor à Viscondessa da Luz, edição de Sérgio Nazar David, Vila Nova de Fmalicão, Edições Quasi, 2007.

reflexo mil vezes treinado

«Os homens atiraram-se para o chão, um reflexo mil vezes treinado, as G-3 apontadas, os dedos nos gatilhos, as mãos agarradas com força às coronhas, o coração a bater mesmo por debaixo do pescoço, naquele buraco entre as clavículas, a apertar a garganta sem deixar respirar.»

Carlos Vale Ferraz, Nó Cego (1983)

quinta-feira, novembro 27, 2014

José Sócrates (7)

A Declaração de José Sócrates, ditada ontem pelo telefone da cadeia de Évora, é um texto de combate que a historiografia registará, quando se debruçar sobre estes tempos confusos. E, para mais, bem redigido, ao contrário do que sai das mãos da maioria do pessoal político, que não sabe escrever.
É um texto de combate, pelos períodos curtos e incisivos. Cada parágrafo é uma reacção dura ou um apelo claro; depois, a altivez com que o faz e a segurança que aparenta é muito distinta daquela conversa aldrabona da "consciência tranquila". O estilo é o homem.
Consoante o que vier a ser apurado, em caso de acusação (que parece inevitável), este depoimento só poderá ser analisado sob duas perspectivas, quanto ao seu autor: ou foi escrito por um mitómano, provando-se as enormidades de que está acusado; ou por um inocente.

pobre homem!

«Jandira, que tudo sabe, contou-me que o filósofo, já à beira dos quarenta, retrocedeu aos vinte: está amando as moças em flor. O pior é que a mulher, em vez de irrritar-se , vive a ridicularizá-lo. Às voltas com os filhos, Joana diz não ter tempo para se ocupar dele. É uma sólida filha de fazendeiro, raça teimosa e viril. A princípio, andou tendo ciúmes e fazia cenas. Depois, fincou pé e deliberou não tomar conhecimento desses descaminhos que, se arranham a fé conjugal, mais arranham ainda as veleidades do quarentão. Pois Jandira acrescentou que, de suas sortidas, o nosso Don Juan traz mais baldões do que troféus.»

Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro (1937)

sandes místicas

«Sim, mas a máquina a vapor é capaz de fazer isto?» Folheando uma revista de consultório -- um consultório especial, como desde logo somos informados --, o narrador depara-se com uma curiosidade que lhe mudaria a vida, uma revelação, no sentido místico da coisa: "A sanduíche foi inventada pelo Conde de Sanduíche." Essa invenção, com efeitos momentosos no quotidiano da história da humanidade, e o seu inventor, tornaram-se-lhe obsessivos. De tal modo que empreendeu uma biografia do aristocrata britânico, apresentando-nos uma cronologia sucinta, com particular enfoque no processo criativo do que viria a desembocar na prosaica sandes. Essa cronologia é hilariante, como se calcula, e revela não apenas o humor culto e irónico de Allen -- os tiques pretensiosos de determinados tipos sociais de classe média alta e cultivada são constantemente trazidos ao leitor, como de resto acontece em muitos dos seus filmes --, mas demonstram também a enorme cultura do autor, que dela faz uso desabusado, para nosso deleite quase perverso.

início: «Desfolhava eu uma revista enquanto esperava que o meu beagle Joseph K. saísse da sua sessão habitual de cinquenta minutos às terças-feiras com um analista de Park Avenue -- um veterinário junguiano que, a cinquenta dólares a sessão, trabalha corajosamente para o convencer que a papada não é uma desvantagem social -- quando topei com uma frase que captou a minha atenção como se fosse um aviso de um cheque sem cobertura.»

um parágrafo: «1750: Na Primavera exibe e demonstra três fatias consecutivas de presunto empilhadas umas sobre as outras; isto desperta algum interesse, sobretudo em círculos intelectuais, mas o público em geral permanece indiferente. Três fatias de pão umas por cima das outras aumentam-lhe a reputação e, apesar de a maturidade do estilo não ser ainda evidente, é convidado por Voltaire.»

Woody Allen,  Para Acabar de Vez com a Cultura (ed. original, 1966), tradução de Jorge Leitão Ramos,  4.ª edição, Amadora, Livraria Bertrand, 1981, pp. 37-42.

José Sócrates (6)

Ouvi hoje, pela primeira vez, um comentador institucional num canal de notícias dizer que o Caso Freeport foi (e cito de memória) "muito provavelmente uma cabala" ou maquinação. A circunstância de o tal comentador ter-se atrevido a afirmá-lo sem receio dos cacarejos dos observatórios do costume, e nas circunstâncias patéticas em que Sócrates está, evidencia o excremento e a podridão em que se tem movido um certo sector do poder, desde os tempos das campanhas negras urdidas pelos mercenários a soldo do menino-guerreiro.

quarta-feira, novembro 26, 2014

José Sócrates (5)

O que respondo aos que me interpelam com esta pergunta: "E então, o que acha?" Como eu sei aquilo que 99,9% dos portugueses, ou seja, nada, a única resposta decente, seja apoiante ou adversário, é qualquer coisa como: "Espero que esteja inocente."; como esperarei o mesmo para Portas ou a dupla Passos-Relvas.

terça-feira, novembro 25, 2014

adornado de mimos e ternuras

«"O que parece definitivamente ter acontecido foi a revelação para ele, vindo de um meio em que proliferava a cópula a taxímetro, em quartos alugados, de uma ligação sexual adornada de mimos e ternuras, muitas dentadinhas no lóbulo da orelha, muitas festinhas no sexo, muita languidez no olhar, ela fazia-o sair lentamente, com uma paciência infinita, das águas negras do bowling e de outros jogos tenebrosos, anotando Molero a páginas oitenta e quatro que o rapaz tinha o ego desfeito, o ego era uma papa [...]».

Dinis Machado, O que Diz Molero (1977)

segunda-feira, novembro 24, 2014

José Sócrates (4)

Também me chateia que no sistema judiciário  larvem umas criaturas que, a troco de dinheiro (corrupção...), passem informação privilegiada ao jornalismo tablóide. 

José Sócrates (3)

Ficamos a aguardar, daqui a ano e meio, a prisão dos responsáveis pelos submarinos e do caso Tecnoforma.

José Sócrates (2)

Será trágico que aquele que foi um dos melhores primeiros-ministros do país (com todos os erros políticos) venha a ser condenado por corrupção. É uma mancha que todos dispensávamos. Espero que ele se defenda cabalmente -- até porque a modalidade de tiro ao Sócrates foi metodicamente praticada à sua direita e à sua esquerda.
Como estou farto de dizer, das três vezes em que ele se apresentou a eleições, votei uma: precisamente quando os gangsters que hoje nos governam urdiram o caso Freeport. Aí votei Sócrates, e com gosto.

José Sócrates (1)

A situação que o país vive hoje, com a prisão preventiva de José Sócrates, reveste-se de uma gravidade sem paralelo na história recente do país. Desta magnitude, só me ocorrem dois factos, aliás muito diferentes: a queda de Marcelo Caetano, com o cerco, a saída do Quartel do Carmo em chaimite, o desterro para a madeira e exílio no Brasil; e a morte de Sá Carneiro, em exercício de funções.

uma musa serrana

«Por ela e para sua glória, em Vila Real e em Torre de Moncorvo, se batera em galanteios e a estoque o melhor da província. A ela se deveu o ressurgimento dos Árcades entre as serranias de Trás-os-Montes. As últimas quadras e acrósticos em que a divinizaram os Almenos e Cilênios tinham-lhe sido atirados ao regaço, quando saiu numa liteira, de Vila Real para Lisboa, aonde a chamava, com promessas de um casamento na corte, sua tia Mariana de Melo e Sá, comendadeira de Santos.»
Carlos Malheiro Dias, Paixão de Maria do Céu (1902)

EARTHRISE



domingo, novembro 23, 2014

as moçoilas bascas

«Que alegria de gente, que salubridade e vigor de povo! 
As raparigas com as duas tranças, longas, atadas nas extremidades com laços de fitas de cores variadas e fortes; na cabeça uma flor do campo. A saia curta, a perna redonda, os jarretes finos, mas de ferro, como os seus montes nativos.»

Bulhão Pato, Memórias -- Cenas de Infância e Homens de Letras (1894)

sábado, novembro 22, 2014

um blogger passeia-se

1. Creme de abóbora e salva  













2. Sketches from the beach IV  


3. Ars Poetica #9  

tenho saudades do Abelaira

«Nem grande escritor, nem filósofo, nem cientista, mas um desses homens que, embora sem génio criador, souberam perceber qual é a orientação dos ventos. Um jornalista de qualidade, diríamos hoje. E, neste sentido, talvez a expressão soube perceber também se revele incorrecta. Não terá percebido nem deixado de perceber. Tanto poderia afirmar que A é B como A não é B. Mas disse que A é B e acertou sem dar por isso porque a História também escolheu que A é B. Se quiserem: atirou uns tiros ao acaso e caiu um pato.»

Augusto Abelaira, O Bosque Harmonioso (1982)

sexta-feira, novembro 21, 2014

ALL THAT YOU HAVE IS YOUR SOUL




a ameaça a aproximar-se

«Na sala, o homem sentado à mesa de vinhático levanta-se e verifica a janela: caixilhos de castanho, misagras de ferro antigo, sustentam as vidraças cheias de imperfeições (nódulos, bolhas, distorcem a visão), mas duma espessura sólida capaz de resistir.»

Carlos de Oliveira, Finisterra (1978)

terça-feira, novembro 18, 2014

criador & criatura


V. T. Hamlin e Alley Oop (Brucutu)


segunda-feira, novembro 17, 2014

tão rubro, tão jucundo

«E pelos rasgões do chambre, um seio branco, rechonchudo, com mais vergonha que se o próprio Santo António lhe publicasse os segredos, mostrava o mamilo, tão rubro, tão jucundo como o morango primeiro que pinta no morangal.»

Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

o meu LEFFEST 2014 (12)

Nuri Bilge Ceylan, Sono de Inverno, Turquia e França, 2014 ("Selecção Oficial -- Fora de competição").
                                                    ...ou Bergman na Anatólia.
Haluk Bilginer é um actor admirável.

domingo, novembro 16, 2014

o meu LEFFEST 2014 (11)

Pedro Costa, Casa de Lava, Portugal, 1994 ("Escolhas de Nan Goldin")
A grande expectativa com que ia não se cumpriu, inesperadamente.

AND WHEN I DIE



o meu LEFFEST 2014 (10)

Ben & Joshua Safdie, Heaven Knows What, EUA, 2014 ("Selecção oficial -- Em competição"). 
Outra dupla de irmãos que vai dar que falar (ou já está a dar que falar). Este é um filme cru, passado entre sem-abrigo nova-iorquinos e protagonizado pelos próprios. Não sendo uma obra-prima, tem sequências muito boas.

sábado, novembro 15, 2014

o meu LEFFEST 2014 (9)

Florian Henckel von Donnersmarck, A Vida dos Outros, Alemanha, 2006 ("Simpósio -- Ficção e Realidade para além do Big Brother").
Quando um agente integro da Stasi (a polícia política da ex-República Democrática Alemã), convicto da necessidade do seu trabalho de vigilância dos cidadãos para defesa do sistema socialista, do Partido e dos trabalhadores, se apercebe que o regime de que é um guardião e ajuda a manter mais não é do que uma fraude obscena e uma traição inominável a esses mesmo ideais, em que prosperam os apparatchiki e medram os oportunistas do costume. Um filme magnífico.

sexta-feira, novembro 14, 2014

ÇA FAIT D'EXCELLENTS FRANÇAIS



prolegómenos cristãos à terceira via

Carl Schmitt, Catolicismo Romano e Forma Política. Carl Schmitt (1888-1985) é um autor de referência do pensamento contra-revolucionário, antiliberal e antidemocrático. Dizer só isto, aliás, é dizer pouco. Schmitt foi um nazi desde cedo; e apesar de algumas divergências, traduzidas em ataques de sectores do nacional-socialismo (em nazismo não se pode dizer "mais radicais"...), a verdade é que o autor leccionou na Universidade de Berlim entre 1933 e 1945 -- ou seja, em todo o período em que o führer e os seus sicários estiveram no poder. 
Este ensaio de 1925 pretende reagir ao ataque à Igreja Católica, que ele então denunciava, definindo-a como efectiva representação de Cristo no Mundo: «Ela representa a civitas humana, ela apresenta a cada instante a união histórica entre o devir humano e o sacrifício de Cristo na cruz, ela representa o próprio Cristo pessoalmente, o Deus que se tornou homem na realidade histórica. No representativo assenta a sua supremacia sobre uma época de pensar económico.» (p. 33) E, como seria de esperar, põe nos antípodas duma sociedade regida pela política e pelo direito (oh, ironia...), tanto capitalismo como bolchevismo, alegadamente pólos opostos duma mesma mundivisão: «O grande patrão não tem nenhum outro ideal senão o de Lenine: o de uma "terra electrificada".» (p. 28)
Schmitt oferece, portanto, a referência de um elemento não racional -- a divindade representada pela Igreja Católica -- em oposição a um sistema que não o pode contemplar -- a perspectiva demo-liberal: de um lado, como de costume, os vectores deletérios: a "técnica" e a "economia"; do outro, o institucionalismo da política estribada no direito, com as dicotomias do costume: matéria-espírito, pragmatismo-idealismo, revolução-tradição. 
Da visão da Igreja como figuração  de Deus, não posso deixar de extrapolar para uma ideia de Estado à imagem daquela, logo do "chefe" desse Estado como equiparado, senão ao próprio Deus, pelo menos soberano dessa mesma Igreja, o vigário do Deus. Daí ao endeusamento do chefe (do führer a haver), vai um pequeno passo.
Interessante como leitura e exercício, é ideologicamente intragável. 

quinta-feira, novembro 13, 2014

ACROSS THE LINES




CAN'T FIND MY WAY HOME




o meu LEFFEST 2014 (8)

Liv Ullmann, Miss Julie, Noruega e Reino Unido, 2014 ("Selecção Oficial -- Fora de competição"). A grande peça de Strindberg filmada por Liv Ullmann.
É impressionante a dissecação impiedosa da estratificação social exposta pelo dramaturgo sueco, a todos os níveis: entre senhor e servo não há apenas uma barreira intransponível pelo nascimento; esta é também fautora duma mundividência que difere radicalmente da aristocracia para o povo -- no vestir e no falar, certamente; mas também no entendimentos do amor ou da religião, da vida e da morte. Só que, não obstante espesuras diversas, do verniz ou de porcaria, consoante o caso, todos são feitos da mesma massa, e é aí que tudo se complica, como Strindberg sabia muito bem.
E Jessica Chastain, no papel da Menina Júlia, que actriz!...

o meu LEFFEST 2014 (7)

Teresa Villaverde, Três Irmãos, Portugal, 1994 ("Homenagem -- Maria de Medeiros").
Uma sordidez com participação de alguns descendentes das personagens de Abel Botelho. No meio dessa lama, por vezes uma flor viceja. A flor é Maria, papel de Maria de Medeiros, para cuja interpretação me faltam palavras.

quarta-feira, novembro 12, 2014

BACKWATER BLUES



um blogger passeia-se

1. O último prisioneiro da Guerra Fria

2. Hommage à Hergé et Spielberg 2.

o meu LEFFEST 2014 (6)

Lisandro Alonso, Jauja, Argentina, Dinamarca e + 8 (!), 2014 ("Selecção oficial -- Em competição")
Uma história de procura. Viggo Mortensen interpeta o papel do capitão-engenheiro dinamarquês Gunnar Dinesen (o apelido é curioso), deslocado para a Patagónia para trabalhar com o exército argentino. Com ele levou a filha de quinze anos, única mulher naquele território em que os indígenas haviam sido praticamente exterminados. Tendo aquela fugido com um jovem militar, Dinesen empreende uma busca em que a desolação da paisagem alegoriza a devastação étnica. Ainda estou a digerir a evolução onírica da narrativa.. E atenção à música de... Viggo Mortensen.

terça-feira, novembro 11, 2014

esta foto aterroriza-me

Shinzo Abe, primeiro-ministro do Japão e Xi Jinping, secretário-geral do PC da China

o meu LEFFEST 2014 (5)

Abel Ferrara, Pasolini, França, Bélgica e Itália, 2014 ("Selecção Oficial -- Fora de competição").
O último dia de Pier Paolo Pasolini, com magnífica intepretação de Willem Dafoe. Pasolini, assassinado pelo prostituto dessa noite de 2 de Novembro de 1975, após agressão dum bando de sicários em fúria homofóbica, como era então bem visto e as sociedades latinas então (se) permitiam. (Há também uma tese conspirativa, que, tal como em Welcome To New York,  não é tida em conta por Ferrara.)
Mas o filme é muito mais do que a reconstituição dessas últimas horas de vida desta bête noire do conformismo burguês: é a própria visão desalentada de Pasolini acerca do caminho que a sociedade ocidental levava, bem expressa na entrevista que dá nessa jornada derradeira, em que, premonitório, detectava e antecipava o desafio que hoje se põe às sociedades democráticas, cada vez mais caricaturas delas próprias, doença que agora nos entra pelos olhos dentro: os cidadãos são-no cada vez menos, e cada vez mais consumidores -- e, como tal, sujeitos e títeres de organizações que paulatinamente os vão escravizando.

LER FERREIRA DE CASTRO, 40 ANOS DEPOIS


informações: museu.fcastro@cm-sintra.pt;
tel.: 219238828

segunda-feira, novembro 10, 2014

o meu LEFFEST 2014 (4)

Danny Canon, Gotham, ep. 1 + making of, EUA, 2014 ("Séries de TV"). Prequela de Batman, com argumento de Bruno Heller. A ideia de pegar no bom do Comissário Gordon, então jovem detective da polícia de Gotham City, e cruzá-lo com a criança Bruce Wayne, logo após o homicídio dos pais, é uma boa ideia e um filão que pode ser bem explorado. Alguns dos futuros aliados e inimigos do Homem-Morcego também fazem aqui a sua aparição.

32-20 BLUES


um lugar para os dias

Irene Lucília Andrade, Um Lugar para os Dias (2013). Uma longa carta à pessoa amada, já falecida, que é, simultaneamente, um diário, uma revisitação memorialística e um balanço, com micro-ensaios e reflexões, pequenas narrativas de viagem, poesia -- um livro compósito, enfim, que reflecte os interesses da autora. Pintora de formação, foi na escrita que Irene Lucília Andrade encontrou um lugar para os seus dias, embora a aguda capacidade observadora e descritiva não deixe, creio, de ser tributária dessa aprendizagem de base.
As observações de carácter genericamente político (em especial os relativos aos fenómenos internacionais a que vimos assistindo nos últimos anos) são talvez o menos conseguido desta obra, embora traduzam a impotência do cidadão comum diante do momentoso de que (ainda) só somos testemunhas, em diferido e por vezes em directo; e, nesse especto, constitui um exemplo fidedigno do ambiente geral. O melhor, para mim: as evocações do passado, os pais, a infância, e a descoberta do mundo; e também os vários apontamentos, magníficos, sobre arte, em especial a pintura.

o meu LEFFEST 2014 (3)

Vincente Minelli, Designing Woman, EUA, 1957 ("Sessões especiais -- Cinema e moda")
Comédia MGM de '57, desopilante, inofensiva e inocente, com Gregory Peck e Lauren Bacall. Gosto sempre de ir ao cinema ver Hollywood idade de ouro, faz-me recuar no tempo. E apreciei aquele design retro das farpelas, eu, que detesto moda.

ADAGIO



domingo, novembro 09, 2014

O meu LEFFest 2014 #2

David Cronenberg, Maps To The Stars, Canadá, EUA e França, 2014 ("Selecção oficial -- Fora de competição")
Grande título para um filme negro, em que mesmo o tom de comédia é duma amargura extrema.
E Julianne Moore como nunca a vira.

BALL AND CHAIN



o meu LEFFEST 2014 (1)

Welcome To New York, de Abel Ferrara (EUA, 2014) -- "Selecção Oficial -- Fora de Competição".
O "Caso Dominique Strauss-Kahn", na versão que prevaleceu (há também a da conspiração). Além dos desempenhos de Depardieu e Bisset (extraordinária), saliento a inusitada "entrevista", prévia ao filme, de Depardieu ele-próprio, em que explica a razão pela qual aceitou este papel: a incompreensão pelo indivíduo ("Não sei como se consegue ter prazer em seis minutos..."), a antipatia pela personagem e tudo o que ela representa: "Sou um individualista, um anarquista. Não confio nos políticos -- odeio-os."
Achei interessante a opção inicial de Ferrara por planos de símbolos  dos Founding Fathers  e outras grandes referências éticas, morais e políticas americanas, quer na monumentalidade da estatuária urbana, quer nas notas de dólar, como que a mostrar a ambivalência: simultaneamente pátria da revolução e da liberdade, e do dinheiro, que tudo paga e corrompe. É na terra que dos direitos individuais e das liberdades que o poderoso Devereaux é detido (e humilhado) por suspeita de abuso sexual de uma criada de hotel imigrante; mas é também aquela em que a fortuna pessoal garante o recurso a bons advogados que o retiram da prisão.
Um filme sobre um caso de actualidade palpitante, em que o protagonista Devereaux / DSK aparece como personagem contraditória: um doente sexualmente compulsivo mas também um abusador sexual, quando não um violador. 

sábado, novembro 08, 2014

petroleiros como penedos

«E o rio desmaiava em Caxias, sufocado pelas asas dos pássaros, com penedos de petroleiros imóveis sob a ponte.»

António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

quinta-feira, novembro 06, 2014

de feição contrária

«Uma criatura, antigamente, tinha um migalho de chão e governava-se que era uma lindeza. Hoje, é preciso regular as taras da gleba, mãe e madrinha, e mimá-la com adubos e suor, que o tempo é como a vida, corre de feição contrária...»

Antunes da Silva, Suão (1960)

BECO DO TISO



terça-feira, novembro 04, 2014

Fender vs. Gibson: John Lees & Neil Young



o regresso da Censura

Não sei se o acto de censura na Análise Social terá como causa a inclusão daquela imagem em que os nossos governantes aparecem como marionetas da chancelerina alemã ou se por uma outra imagem ostentar a bonita palavra "caralho". Enfim, preferiria que fosse por esta última razão, pois entre um pé-de-salsa e um subserviente, prefiro o primeiro.
Em Coimbra, o caso é ainda mais grave. Leio no que os alunos da Faculdade de Direito em vez de se portarem como os anormais das praxes (e praxes, apesar de tudo, só em Coimbra...), resolveram organizar um debate cujo título era esta obscenidade: "Haverá espaço para a ideologia no mundo actual?", discussão com Pedro Mexia e Rui Tavares, duas das pessoas que melhor e mais articuladamente escrevem no espaço público. Pois a criatura que está director daquela Faculdade diz que a mesma "não pode ser um palco para "este tipo de debates" (sic).  
Como é que uma nulidade destas pode ser professor e director duma Faculdade de Direito? Até na Faculdade de Veterinária um debate destes teria sentido. Uma universidade, todas as suas faculdades, devem ser locais de aprendizagem, debate e reflexão. Haver um indivíduo que se arroga o direito (!) de exercer censura utilizando um argumento imbecil, diz muito da nossa degradção cívica e cultural.

A BIA DA MOURARIA



segunda-feira, novembro 03, 2014

merecer saudade

«Margarida é uma das mulheres fatais, que atraem irresistivelmente. Solteira, homem que por desgraça a fitou que ser um Romeu; casada, não faltariam Werthers que rebentassem o crânio para lhe merecer a saudade.»

Álvaro do Carvalhal, Os Canibais (1868)

domingo, novembro 02, 2014

remédio extremo

«Pois era: o médico quase tinha só por função assistir à primeira parte da morte. A certa altura, desenganava a família, retirava-se e entrava o padre com um certo orgulho por mais aquela provada impotência dos homens perante os insondáveis desígnios de Deus. Isto para não falar já dos casos em que o enfermo -- o doente, quando estava para morrer, era enfermo -- melhorava com a extrema-unção.»

António Alçada Baptista, Tia Suzana, Meu Amor (1989)

crónica da crise de '29

John Kenneth Galbraith, A Crise Económica de 1929 -- Anatomia de uma Catástrofe Financeira (1954). Crónica do crash bolsista de 1929, que levaria à Grande Depressão, com efeitos devastadores, dento e fora dos Estados Unidos.
Galbraith, que era um académico e um economista sagaz, procedeu a um levantamento historiográfico com o à-vontade dum bom narrador, ainda por cima provido de humor -- o que, num tema árido como este, é feito de monta (não foi em vão que John Kenneth Galbraith se deixou tentar pela ficção).
A mentalidade do especulador é esta: fazer muito dinheiro com pouco trabalho e no mais curto espaço de tempo possível. A ideia  de que "dinheiro gera dinheiro" serviu em cheio este espírito ganancioso, que uns criativos trataram de explorar em todas as suas potencialidades. Existe um bem que se valoriza tanto mais quanto a procura é maior -- é a lei da oferta e da procura, como se sabe. Simples, mas não chega: a esta mecânica elementar, acrescenta-se artificialmente valor, atribuído das formas mais variadas, de tal maneira que deixariam zonzo qualquer aldrabão de feira. Um parágrafo, como exemplo:
«Na alta da Florida o negócio [sobre terrenos para a especulação imobiliária] fazia-se através do pagamento de um sinal. Não eram os próprios terrenos que se transaccionavam, mas o direito de os comprar a determinado preço. Este direito de compra -- que se obtinha através do pagamento de 10% do valor de transacção -- podia ser vendido. Deste modo, os especuladores beneficiavam integralmente das valorizações. Verificada a valorização, o especulador podia revender o "sinal" por uma importância igual à soma do que tinha pago com a valorização.» (pp. 60-61) Escusado será dizer que, com a febre especulativa, a valorização era constante e permanente -- pelo menos até ao estoiro, algo que estava fora das cogitações dos compradores & revendedores.
Para um leigo como eu, estes episódios fazem lembrar as habilidades do subprime, já  neste século. E, interessante, há até protagonistas que se repetem: a Goldman Sachs, que esteve no olho do furação em 29. 
Estas aldrabices da criação de valor sem base de sustentação na economia real continua a ser galhardamente ensinada nas business schoolls por esse mundo fora, de Lisboa a, provavelmente, Ulan Bator, com as miseráveis consequências que se conhecem. Que os mercados, na sua desregulação, sejam entidades insusceptíveis de controlo (ou de se deixarem controlar), é algo com que convivem bem. Quem vier atrás, que feche a porta. Em caso de agitação, há sempre governantes inoperantes e gurus do mundo académico e da imprensa económica bovinamente deslumbrados com as maravilhas da finança, ou, talvez mais comum, generosamente estipendiados para papaguearem aquilo que os argentários pretendem que se veicule.
Livro pormenorizado e cuidadoso, cheio de informação publicado pela primeira vez em 1954, é um bom exercício sobre a cupidez, revelando a lamentável fragilidade humana, sempre a morder os iscos lançados pelos mais vivaços.