segunda-feira, setembro 30, 2013

Autárquicas 2013, de 1 a 5

PS - 5; PCP - 4; CDS - 3; PSD e BE - 1.

domingo, setembro 29, 2013

50 discos para a ilha deserta, #46-50






a serpente no ovo

Na Grécia, os chefes racistas e xenófobos vão dentro. Segue-se a ilegalização do grupo de malfeitores. Por cá, embora a sua expressão eleitoral desse vontade de rir, se de rir se tratasse, talvez não fosse desavisado matar a serpente no ovo.  

O Vale do Riff - White Denim

Is And Is And Is

quinta-feira, setembro 26, 2013

pobre calamidade... - CÃES DA PRADARIA #1

Uma só vinheta na prancha inicial: um entardecer caminhando para o lusco-fusco, paisagem que parece situar-se no noroeste americano, assim o denuncia a vegetação. Em plano geral sobressaem cumes elevados e, em baixo, ainda distante, centrado e avançando na nossa direcção, um daqueles carros de que se compõem as míticas caravanas do colonos que deram corpo ao destino manifesto. Há uma envolvente dramática, um clima tenso e triste, soturno e pesado, que a chuva mais acentua e assombra.
Duas filacteras, em cima, transcrevem, em discurso directo, parte de uma carta a uma filha, datada de Deadwood (Dacota do Sul), em 26 de Julho de 1976. Filha que está longe, à guarda dum pai adoptivo. Quem escreve lamenta-se pela distância, pela ausência, e está cheio de remorsos: "[...] peço a Deus que me perdoe do mal que te fiz..." Quem na escreve? Certamente o condutor, que vai, cabisbaixo, protegendo-se da chuva e da tristeza, pejado de crianças na direcção do orfanato de Rapid City, cujos pais foram vitimados pela varíola. Vemos as suas expressões apreensivas e tristes, o condutor, de costas, ruivo e de rabo-de-cavalo.
Até que se cruza com um velho conhecido  fora-da-lei, "J. B." Bone, em montada que arrasta o esquife do compaheiro de um assalto que correu mal, e cujo corpo, exposto à contemplação pública,  resgatara pela calada da noite: "Calamity! -- saúda Bone -- Sempre a correr as pradarias?" O cocheiro era, afinal, uma: Calamity Jane.  
Philippe Foerster & Philippe Berthet, Cães da Pradaria (1999)
Lisboa, Meribérica/Líber, 1999, pranchas 1-2

terça-feira, setembro 24, 2013

Eu trago imundície / à superfície / e um coração dentro de mim.
Álvaro Feijó

50 discos para a ilha deserta, #31-35






domingo, setembro 22, 2013

O Vale do Riff - Wilco

Born Alone

acordes nocturnos

Tom Fogerty

o que salva Abel Botelho?

Abel Botelho por António Ramalho
Deixo o Serafim e o Esticado, o Manaio e o Silvério por essas ruas desertas pela noite, armazéns, fábricas, bairros. O encontro com Lourenço, o homem iluminado, o sindicalista, o revolucionário, que irão ouvir, fica para o segundo capítulo.
Para já, pergunto-me: o que salva Abel Botelho? Executor observante do programa naturalista, o que livra Amanhã de ser um relatório minucioso, com pormenores e alusões mais ou menos escabrosos, ou mera "reportagem" de suposta objectividade? O que faz do livro um testemunho, por certo datado, de arte literária?  Sem dúvida, a linguagem, o vocabulário rico e criterioso, as imagens, por vezes opulentas, mas sempre certeiras em face do panorama de destituição social que Botelho pretendeu transmitir

sexta-feira, setembro 20, 2013

...não é pra jovens


Serafim e o Esticado vão recolhendo os companheiros para a reunião nocturna. Miséria material, miséria moral: não apenas a rapariga ainda núbil, esgalgada, anémica,o cabelo raro e sem brilho, em casa do Manaio, gasta e avelhentada; ou as três mulheres do Silvério, todas com ar de família, que se disputam indecorosamente pelas sobras que este lhes dará para sustento dos seus filhos, seis criancitas, todas quase da mesma idade, que refocilavam nuas, no abandono e na fome; -- mas Ventura, que, ao encontro, prefere ir ao assalto a uma menina dos fósforos:
«[...] hoje tenho lá coisa... daqui! -- Premia lascarinamente o lóbulo da orelha, e explicava, a seguir: -- Uma petizita dos Fósforos... em primeira mão, dizem... Anda a meter-se-me à cara, mesmo perdidinha por mim! / Não te dói a consciência, meu traste? / --Então! Se há-de ser outro... / -- O diabo te dê o que te falta! -- resmoneou o Manaio, enfadado. / -- Ah, por enquanto, não falta, não... graças a Deus!»

Abel Botelho, Amanhã (1901) #7
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp. 26-32.



geografias da pobreza

Os topónimos dos bairros populares e operários, a Lisboa Oriental, cujo eco proletário chegou ainda até nós e persiste como património remanescente duma realidade moderna, as vilas (e também ilhas, que eu, por ignorância, julgava serem exclusivas do Porto, para onde decaíram a "Menina Olímpia e a sua criada Belarmina", de Régio; ou, em continuidade de pobreza, viveu essa brava Leonor de Servidão, o grande romance de Assis Esperança...); agora bairros e guetos sociais, classe média-alta ou festivais de música: Bela Vista, morada de Serafim-Clara e Esticado-Ana, o vale de Chelas, Rua de Marvila, Xabregas, Braço de Prata...
foto: http://musgueirasul.wordpress.com/2013/03/27/origem-da-habitacao-social-1900-ate-1960/

Como a abjecção da pobreza, a miséria,  nessa ilha do Grilo: "Ao longo de toda a 'ilha' alastrava a mesma grossa e vaga escuridão do campo. Apenas, a intervalos irregulares, algumas raras janelas, como vazias órbitas de espectros, radiavam lívidos luaceiros na absorvente espessidão da sombra. O piso, talhado no terreno natural, era um misto traiçoeiro e imundo de restos de comida, objectos de toda a sorte, cacos, barro, cisco, cascalho e lama. Na grande vala longitudinal fermentavam acidamente as podridões. Havia um cheiro acre e nauseabundo, cumulativamente a hospício, a curral e a cemitério. E dessa sórdida promiscuidade animal, dessa fruste aglomeração de miseráveis, subia para a frialdade inerte do ar, dançando nas infectas emanações de caneiro insalubres harmonias, um como surdo verrumar de febre, um atormentado e bárbaro concerto, feito ao mesmo tempo de pragas, risos, lamentações, balidos de cabras, mugidos de vacas, grunhidos de porcos, latidos de cães e choros de crianças."

quinta-feira, setembro 19, 2013

50 discos para a ilha deserta, #21-25






consciência de si

A intervenção benfazeja de Ana, que põe termo à desavença do tanoeiro (ficamos a saber o mester) e a mulher, cedendo-lhe do seu vinho, coincide com o desencadear duma borrasca e a entrada do Esticado, o homem de Ana. O contraste entre ambos os casais é total: ao desrespeito, a delicadeza; à brutalidade alcoólatra, cuidado viril, mas atencioso; à sujidade, o asseio ["Acusava bem o soalho, na sua cor açafroada e macia, o uso constante da potassa."], duas filhas para criar, uma ainda de peito. 
Mas o Esticado  tem outra coisa dentro de si: o sentimento de injustiça da sua condição social e da sua pobreza: nem trocar a roupa encharcada lhe é permitido, o casaco de ver a Deus no prego; e nem as paredes da casa impedem que o vento entre agreste pelas frinchas, "Raio de casa!" E até nos filhos, os ricos têm sorte ("Quantos [...] a nadarem em dinheiro e sem filho nenhum!" -- ou azar, eles, a ralé:  "Cada cavadela, cada minhoca!" E isso que o Esticado tem dentro de si, vai partilhá-lo, na companhia de Serafim, fora de casa: nessa noite haverá encontro de trabalhadores.
Abel Botelho, Amanhã (1901) #5
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp.13-20.

quarta-feira, setembro 18, 2013

50 discos para a ilha deserta, #16-20






Não ouvi as justificações do Crato para acabar com o ensino do inglês no básico, mas deve ser repelentemente falsa e ordinária. Eu tive e tenho os meus filhos em colégios, sai-me do bolso, mas o problema é meu, estou-me a cagar para o Crato. O pior são aqueles que não se podem cagar para o Crato, como eu me estou a cagar para o Crato e a sua escandalosamente miserável governação.

ainda a nutritiva dieta do operário lisbonense, seguindo-se inevitável episódio de violência doméstica

Após a aguadilha, está o leitor guardado para um pitéu, que aguardava sobre um número de O Século, com vívida caracterização: "meia dúzia de carapaus fritos. Espalmados, moles, tinham um aspecto repugnante, escabiosos de purulências brancas, nadando numa suja e crassa oleosidade, que repassava o papel em aréolas negras."
Faltava, porém, o flagelo das classes laboriosas, o vinho, que desgraçava indivíduos e famílias, a tal ponto que as publicações destinadas aos trabalhadores -- tantas vezes lidas em grupo, pois a maioria era analfabeta -- empreendiam uma profilaxia de conselhos úteis, visando afastar os homens das tabernas. (A Taberna de Zola...) O Serafim de Amanhã, pede vinho à mulher, que primeiro se faz desentendida, gracejando; informando, depois, que não há, quando percebe que seria escusado o esconde-esconde, até que, brutal, o homem a agarra pelos pulsos, insiste e esbofeteia-a. Clara, que queria protegê-lo, e proteger-se, do alcoolismo -- "Deixaste esse vício tomar-te posse do corpo" --, reage com doestos e lamentos.
Alertada pelo chinfrim, irrompe outra mulher, magra e adoentada, porém afável, conciliadora, "uma bondade escampe água-tintada na garça translucidez dos olhos." Chama-se Ana.

Abel Botelho, Amanhã (1901) #4
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp. 11-13

caracteres móveis - Leslie Charteris

O carro corria atrás da luz dos seus próprios faróis.
«Uma aventura em Paris»


O Vale do Riff - Fleet Foxes

Helplessness Blues

terça-feira, setembro 17, 2013

não são sãos

...e os operários também não são sãos. Serafim, fisicamente comprido e corrompido, derreado e esverdeado: "o longo dorso alcachinado, onde, escorchadas com anatómico rigor, as omoplatas cavavam esqueléticas sombras"; Clara resistindo à decadência física, ("os seus olhos lutando ainda contra a consumpção, cujo triunfante estrago se anunciava já"), mas irremediavelmente condenada.
Repasto frugal, evoco Picasso, mas é em Van Gogh e n'Os Comedores de Batatas que penso, ao percorrer as linhas desta traparia humana, deparando-me com as palavras soturnas na pouca luz da cena, que um frio húmido a anunciar chuva ainda mais deprime: "A luz titubeante da candeia estirava num realce cruel todos estes sinais patentes de ruína".

Amanhã, de Abel Botelho (1901) #3
Porto, Lello & Irmão, 1982, p. 11.

50 discos para a ilha deserta, #11-15






segunda-feira, setembro 16, 2013

sopa de pobres

Temos um homem que chega a casa, a reclamar pela ceia. Chama-se Serafim, "figura esgalgada e curva". Responde-lhe uma "mulherita atarracada e bruna", com rispidez, como se estivesse farta de esperar. Serafim ordena-lhe que o sirva e estira-se sobre um mocho, "projectando o chapéu com arremesso." É um operário, e deve estar cansado dum dia de trabalho. Lesta, candeia pela mão, ela põe-lhe o tacho "sobre a gorduragem gretada das tábuas ressequidas" da mesa.
O quadro é neutralmente popular, ou quase, embora já com indícios de pobreza e desmazelo, até à pergunta da mulher, Clara, saberemos a seguir: "Estás com gana hoje?"; pretexto para olhares enviesados  e malévolos, semblantes patibulares, até à implicação animalesca, que termina com o domínio imperioso do macho, "Senta-te!", desferindo ameaças de lhe chegar a roupa ao pêlo, mais pelo hábito da ameaça que por real vontade de a agredir. Esta, por sua vez, não deixa também de largar a sua imprecação, entre o medo e o desafio que, contudo, não impedirá mais gestos e palavras que possam retomar este ordinário ritual amoroso
São assim, os rituais do amor entre o povo, brutais como o povo é -- modos e comportamento de que a pequena, média e grande burguesias alfacinhas estão arredadas -- como, de resto "o Autor" prevenira em carta-antelóqiuo do romance, dirigida " À Ex.ma Senhora D.M.D. e S.C.C." São assim, vírgula, porque o povo não se faz só destes serafins e destas claras que o narrador nos apresenta.
Para já, deixêmo-los -- depois do pão e das azeitonas -- a cear, com cinco linhas de Botelho (na minha edição), para descrever essa "negra e triste aguadilha, mosqueada de olhitos de azeite, condensando na frialdade do ambiente um vapor nauseabundo, e de cuja dessorada fluidez a quando e quando emergia a ironia cortical dum feijão, ou a coriácea insipidez dalguma couve saloia."

Amanhã, de Abel Botelho (1901) #2
edição Justino Mendes de Almeida, Porto, Lelo & Irmão, 1982, pp. 7-8.