terça-feira, janeiro 31, 2006

Antologia Improvável #98 - Maria Teresa Horta (2)

À TUA ESPERA

Tranquila e serena
a nossa casa
nos quatro cantos
o sol do meio-dia

à tua espera alegre
e descansada
injecto-me de amor às
escondidas

Sobre a garganta passo
os dedos espessos
e a roupa uma a uma
vai caindo

para que então amor
com os teus dedos
quando vieres me vás
depois vestindo

Candelabro / Poesia Completa - 1

Maria Teresa Horta

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Sidney Bechet

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O Haydn de Armstrong?

Acontece-me estabelecer um paralelismo, muito pessoal e sem nenhum rigor, quando oiço ou penso em Sidney Bechet -- crioulo de Nova Orleães, figura cimeira das primeiras décadas do jazz, como músico principal ou acompanhante (no sax soprano ou no clarinete) e compositor (Petite Fleur é um tema conhecido em todo o mundo). Quando oiço Bechet, lembro-me de... Haydn, desse outro compositor de excepção, austríaco e cerca de século e meio mais antigo, com as suas cento e algumas sinfonias, além de muitas outras obras, das sonatas aos quartetos, concertos e oratórias.
Para nosso bem, mas póstuma desvantagem (?) sua, Haydn e Bechet foram, respectivamente, contemporâneos de Mozart e Armstrong.
E como as genealogias em arte se constroem (im)pacientemente, sem que se saiba quando o génio toca algum dos rebentos nos ramos das suas árvores, eis que um discípulo directo de Haydn surge e, milagre!, é dos poucos escolhidos que em toda a história da música conseguirá ombrear com Amadeus: Beethoven.
No jazz as coisas então passavam-se de modo diferente, a transmissão de conhecimento era informal nas academias dos pobres. Teve Bechet o seu Beethoven no mundo da música improvisada afro-americana? Se ele for o Haydn de Armstrong, quem terá sido o seu Beethoven? Coltrane?

Joseph Haydn

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estampa IX

Sir Joshua Reynolds, Nelly O' Brien
Wallace Collection, Londres

domingo, janeiro 29, 2006

Teófilo

Correspondências #31 - Teófilo Braga a João de Barros

Lisboa, 2 de Janeiro de 1900
Caro Poeta
Ha já alguns dias que recebi o seu primeiro livro de poesias -- Algas -- tendo é certo lido logo e immediatamente. Leio sempre com curiosidades diversas as composições poéticas que me cáem debaixo dos olhos; quando não acho conhecimento de fórma, appéllo para a originalidade ou novidade da idéa; quando falha qualquer d'estes aspectos procuro ainda descobrir o temperamento ou organização do Poeta, que às vezes póde estar abafado pelas correntes batidas de um gosto dominante que o prejudique.
Só no fim d'este inquerito é que deixo o livro ou a composição poetica. O seu livro das Algas tambem passou por este crivo; ha alli conhecimento das fórmas, e ha temperamento poetico; e é muito, e por isso que promette largas esperanças é que não é já tudo. Para ir mais longe é questão da edade, que lhe hade dar o contacto da realidade da vida, e de uma philosophia que dê ao seu espirito a visão universal.
Felicita-o com um abraço o seu
admirador e am.º At.º
Theophilo Braga
T. S. Gertrudes, nº. 70.
Cartas a João de Barros
(edição de Manuela de Azevedo)

sábado, janeiro 28, 2006

Boas maneiras

Bob Dylan

Antologia Improvável #97 - José Alberto Oliveira

A SEDE DO GADO

Pernoitou nos arrabaldes de uma cidade estranha
e reviu sem gosto o princípio da matéria dada,
escuma de lembranças em licitação de salvados
e versos que mal dobravam a mágoa,
poucos, rasteiros, à boca do solo relidos
com a gratidão de quem recorda mão mais firme
e postura que se tingiu de barro, como neve de dois dias.
Viagens mal ensinadas: o caminheiro descansa no albergue,
o cavalo que suou a insensatez da jornada morde, contrito,
a aveia e o receio de partir tarde. Soam no alpendre
os passos do cão da casa. Fareja a pequenez de tal destino,
desarrumar os livros, com a paixão e os enganos
do seu caminho, talvez um dia, que esteja perto,
a vida escolha de se acolher no desabrigo de versos lidos.

O que Vai Acontecer?

sexta-feira, janeiro 27, 2006

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Consciência

Os mais vis criminosos são os que não têm consciência do seu crime.

estampa VIII

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Eduardo Viana, K4, Quadrado Azul
Centro de Arte Moderna - Lisboa

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Caracteres móveis #60 - Li Bai

Em nós / tudo é presente, / infinito e nada.

Poemas de Li Bai
(versão de António Graça de Abreu)

Li Bai

terça-feira, janeiro 24, 2006

Antologia Improvável #96 - José Agostinho Baptista

E NA HORA

Quase tudo se passa em surdina
como uma trepadeira que sobe sem se ver
e se deita no verão das ribeiras e dos terraços,
não aqui, mas
em naturezas menos mortas,
menos rarefeitas pela solidão do ar.

Junto às lareiras cuja lenha ainda verde
estala em murmúrios ancestrais,
e em estranho idioma talvez nos diga que
os crimes se iniciam na sedução do lume,
ao longo de veias que ambicionam um ritmo
mais veloz,
mais de acordo com as leis do sangue e da
terra,
sem escutar o eco nas regiões de eterna
penumbra
nos convoca para o sepulcro,
vamos cumprindo a tua vontade, a tua
dádiva cruel,
Senhor.

Agora e na Hora da Nossa Morte

José Agostinho Baptista

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Obrigado e grato

Nada tenho contra os críticos. A meia dúzia que escreveu sobre os meus livros, elogiou-os.

Boas maneiras

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Roger McGuinn
(foto John Chiasson)

Escrever na areia - Com o pé direito



Acabou-se. Manuel Alegre não foi eleito. Mobilizou mais de um milhão de eleitores, por razões várias. Quanto a mim, votei num homem com um passado honroso e num cidadão que soube estar nos momentos essenciais do lado certo da História. E votei no escritor. A meu ver, Manuel Alegre poderá continuar a prestar bons serviços ao país na acção política, no PS e na Assembleia da República, sabendo fazer valer o peso granjeado nesta eleição. Portugal também precisa dele, não em movimentos residuais de protesto, mas no centro do poder.
Uma palavra para o presidente eleito, Aníbal Cavaco Silva, referindo o bom discurso de vitória que proferiu no CCB, dirigindo-se à imprensa e, por seu intermédio, aos portugueses. Uma intervenção limpa, sem adversativas, lembrando os estrangeiros que cá vivem e os portugueses mais desfavorecidos, falando na liberdade, sem precisar de fazê-lo, mas dando com ela outra forma à sua proclamação vitoriosa. Gostei. Espero que lhe, e nos, seja auspicioso.
Uma notícula para os comentadeiros de serviço, para os pivôs e plumitivos agenciados: sem ilusões quanto à sua desvergonha, conformo-me com vê-los pululando, sempre disponíveis e de boca aberta à espera que lhes atirem amendoins...
Outra notícula para vomitar na dita extrema-esquerda (não falo na desdita extrema-direita, que está cadaverosa): os Louçãs, os Tomés, os Rosas, os Vales de Almeida, as Dragos, mais os aliados do candidato a Américo Thomaz, que na sua insignificância política não hesitaram em insultar alguém cujo passado de resistente deveria merecer alguma estima e talvez solenidade, pelo menos a essa confraria beata que quando fala em esquerda, fá-lo com a voz cava...

domingo, janeiro 22, 2006

Caracteres móveis #59 - Tolstoi

Uma verdadeira obra de arte apenas pode surgir ocasionalmente na alma dum artista, como fruto da própria existência, da mesma forma que a gestação duma criança se faz no ventre da sua mãe. Mas a arte de contrafacção é produzida por artífices e por artesãos continuamente, cujo destino concebível será o dos consumidores.
O que É a Arte?
(a partir da tradução inglesa de A. Maude)

Lev Nicolaevich

sábado, janeiro 21, 2006

D. Carlos I

Correspondências #30 - D. Carlos I a João Franco

I noute.
16 -- 5 -- 906
Meu querido João Franco
Tendo o Presidente do Conselho, Cons.º Hintze Ribeiro, acabado n'este momento, por carta que acabo de receber e por motivos... que de viva voz te exporei, de depôr nas minhas mãos a demissão do Ministerio, e desejando eu que n'este momento te encarregues da formação do novo ministerio, desejo que aqui venhas falar-me, logo possas, e quanto mais cedo melhor.
Ha muito a fazer e temos, para bem do Paiz, que seguir por caminho differente d'aquelle trilhado até hoje; para isso conto comtigo e com a tua lealdade e dedicação, como tu podes contar com o meu auxilio e com toda a força que te devo dar.
Sempre teu
Amigo verdadeiro
Carlos R.
Cartas d'El-Rei D. Carlos I a João Franco Castello-Branco Seu Ultimo Presidente do Conselho

João Franco

sexta-feira, janeiro 20, 2006

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Antologia Improvável #95 - Fernanda de Castro

A CORRENTE

Lá vão as folhas secas na corrente...
Lá vão as folhas soltas das ramadas...
Hastes envelhecidas e quebradas
galgando as asperezas da vertente.

A cheia arrasa os frutos e a semente,
a terra inculta, as várzeas fecundadas,
e vai perder-se ao longe, nas quebradas,
numa fúria cruel e inconsciente.

Em nós ainda é mais funda, ainda é mais vasta,
esta ansiedade enorme e sem perdão,
que nos fere, nos tolhe e nos devasta...

As árvores desprendem-se e lá vão...
Mas nós ficamos porque nada arrasta
as raízes fiéis dum coração.

Jardim

quarta-feira, janeiro 18, 2006

O meu Batman

é o de Neal Adams. Verdadeiramente soturno, lúgubre, máscara que enche de terror os bandidos, os assassinos, os maus. A personagem é um achado desde Bob Kane, o seu criador; mas penso que foi com Adams que ela se transcendeu, passando do mero boneco, do (in)vulgar super(?)-herói para a figura trágica que oscila entre a justiça e a vingança, em nome dos pais chacinados à sua frente, no acto gratuito de matar para roubar.

Neal Adams

terça-feira, janeiro 17, 2006

Figuras de estilo #19 - Julião Quintinha

Gomes Leal roça pela lama, em procura dum lírio. Antero de Quental paira entre as brumas, procurando a luz das estrelas.
Imagens de Actualidade

Flagrante
















Em flagrante decilitro!

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Antologia Improvável #94 - Afonso Duarte

Parece um auto lendário
Estar na vida,
Ou milagre de poesia
Depois de vê-la perdida.

Chegar a velho! Suponho
Toda a existência memória
Do que na vida foi sonho.

In Notícias do Bloqueio, nº 1

Afonso Duarte

estampa VII

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Louis Le Nain (atribuído a), O Descanso do Cavaleiro
Victoria and Albert Museum

domingo, janeiro 15, 2006

Cesário

Correspondências #29 - Cesário Verde a Mariano Pina

Dia de S. Pedro 29/Junho/84
Mariano Pina, meu caro Director,
A sua «Ilustração» impressa neste tumultuoso Paris, em grande formato, composta por tipógrafos franceses que devem achar muito drôle a abundância do «til» e a falta do «acento grave», anunciada com réclames estonteantes e um taraze ensurdecedor nesta pacífica Lisboa tão morna e tão dorminhoca, a sua «Ilustração» duma tiragem muitíssimo reparável, fez-me nascer o desejo de lhe oferecer a Você a minha colaboração. Conquanto V. não me enviasse o seu cartão de convite, o meu ideal de luxo e a minha pretensão de ver os meus versos numa elegante toilette parisiense, instigam-me a recomendar-lhe um pequeno poema que fiz com todo o esmero de que sou capaz, e cujas provas eu quereria ver pessoalmente no caso de ser publicado. Compõe-se de heróicos e alexandrinos, numas 130 quadras que no tipo miúdo (como é mais distinto e mais discreto para a poesia) encherão essas colunas de Hércules durante pouco mais de 2 páginas.
Mas a direcção literária ou administrativa duma publicação como a sua tem dificuldades. Você tem de consultar os grossos apetites dos seus leitores e os fastios nevrálgicos das suas leitoras, e realmente eu não sei se o devia embaraçar com esta exigência.
Em todo o caso sempre lhe direi que é um trabalho réussi, correcto, honesto e dum sentimento simples e bom. Chama-se «Nós», e é talvez a minha produção última, final. Trato de mim, dos meus, descrevo a propriedade no campo em que nos criámos, a fartura na vida de província, as alegrias do labor de todos os dias, as mortes que tem havido na nossa família e enfim os contratempos da existência. Para animar tudo isso, para dar a tudo isso a vibração vital, eu empreguei todo o colorido, todo o pitoresco, todo o amor que senti, que me foi possível acumular.
Ora como esta obra começa com a descrição da Febre-amarela e do Cholera-morbus quando nós fugimos em crianças, lá para fora, e depois continua com as descrições do nosso verão adusto e forte; e como nós agora estamos com a ameaça da epidemia e Julho e Agosto vão começar, eu pretendia que estas coincidências convergissem, publicando imediatamente.
É uma paixão pela arte que me faz pensar assim, não julgue V. crueldade. A famosa ciência de Pasteur e dos outros há-de atalhar o mal e o pavor será a maior dor que se sentirá.
Outra coisa: Sabe V. que tenho saudades desse aborrecido mês que vivi em Paris tão contrariado e esmagado, e que hoje fiz volte-face, e agora digo constantemente bem dessa França, desses Franceses e dessas Francesas, como um doido ou um apaixonado?
Bem, escreva-me Você sem demora com a sua decisão.
Seu confrade amigo e obrigado
Cesário Verde
Rua dos Fanqueiros, 2 -- Lisboa
In Elza Miné, Mariano Pina, a Gazeta de Notícias e a Ilustração: Histórias de Bastidores Contadas por Seu Espólio, separata da Revista da Biblioteca Nacional, s.2, vol. 7 (2)

Mariano Pina

sábado, janeiro 14, 2006

A palavra inesperada

do estômago sobe-me a palavra inesperada
entre a língua destravada e o palato força-me
a boca desabusada desesperada
rasteira-me a mão e cai
sobre o papel
estatelada
13-VI-2003/
/19-XII-2005

Boas maneiras

Stuart Adamson

Escrever na areia - Manuel Alegre e os cadáveres

Em primeiro lugar, Jerónimo a embalsamar a memória de Cunhal, a torná-lo numa espécie de Sãozinha laica. É o sectarismo em toda a sua irredutibilidade.
Depois, o boçal aparelho do PS a utilizar uma viúva para coagir uma campanha eleitoral. É o oportunismo em toda a sua mediocridade.
Finalmente, o cadáver adiado do trotsquismo a tentar assassinar a imagem do candidato, com a história da campanha dos cemitérios e das estátuas. Algo que sempre se fez, que está inscrito na memória cívica da luta republicana e da resistência à ditadura, aproveitado pela política fácil e palhaça do Francisco Anacleto Louçã, um vazio político sem a coragem das convicções -- ao contrário dum Garcia Pereira, honra lhe seja.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

estampa VI

Joaquim Rodrigo, S. M.
Museu de Serralves - Porto

Caracteres móveis #58 - Augusto Casimiro

Para os povos capazes e para os verdadeiros Chefes a má fortuna é uma escola, um treino necessário aos futuros bens.
Dona Catarina de Bragança -- Rainha de Inglaterra, Filha de Portugal

Augusto Casimiro

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Antologia Improvável #93 - Duarte de Viveiros

VERÃO

A António Cértima

Vencido. Na esplanada reflorida
A tarde cai maravilhosamente.
Respira a custo o meu pulmão doente
As implacáveis contracções da Vida...

Ergue a batalha de astros na partida,
Oh Sol do império! Olímpico regente!
Mostra que és grande, generoso, ardente,
Cura a minh'alma tão desiludida!

Noite violácea. Pétalas no ar...
Céu de Veneza. Aroma azul do luar...
Corta o espaço um aeroplano altivo...

Nesta obsessão terrível, neste cúmulo
De tédio e de infinito, entro no túmulo,
Com indolências de rajá passivo!...

Setembro de 1923.

Obra Poética

quarta-feira, janeiro 11, 2006

estampa V

Murillo, Uma Rapariga e a Sua Duenna
National Gallery of Art - Washington

Predador

Hoje escavaquei uma gamba, no prato. Arranquei-lhe as patas, esfolei-a, parti-a aos bocados. Tal como um qualquer predador do NG, o barulho era muito semelhante ao que costuma ser captado pelos micros. Pelo menos, foi-o para mim. Senti-me uma espécie de suricate a comer percevejos de casca dura. Crunch. Com a diferença de o alimento já haver sido previamente morto e cozinhado para mim.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Caracteres móveis #57 - Antonio Gramsci

Uma vez que todas as recordações que guardamos da senhora são de bondade e de coragem e deu ainda as suas forças para nos criar, isto significa que já se encontra desde agora no único paraíso real que existe, e que para as mães julgo ser o coração dos próprios filhos.
[a sua Mãe, em 15-VI-1931]
Cartas do Cárcere
(tradução de Noênio Spínola)

Gramsci

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Antologia Improvável #92 - Maria Teresa Horta

POEMA DE AMOR

Se dia é
inverno
e a luz é vaga

se a casa se deforma
à cor dos nossos passos

Se da chuva e do aço
a curva se contorna

se breve é rotação
retida dos teus braços

Amor Habitado / Poesia Completa-I

Maria Teresa Horta

domingo, janeiro 08, 2006

...ou melhor:

Os espertos, como me aborrecem.

Mote

Os espertos, como os detesto.

sábado, janeiro 07, 2006

Boas maneiras

Elvis Costello

Manuel Laranjeira

Correspondências #28 - Manuel Laranjeira a João de Barros

Ex.mo Sr. João de Barros:
Um número da sua revista, que me chega agora à mão, veio bruscamente lembrar-me que lhe sou devedor de tanta coisa prometida! e devedor que se está comportando dum modo bem singular.
Peço-lhe que me creia: eu não tive o mais leve intuito em desconsiderá-lo com o meu silêncio e nem sequer tive o intuito a furtar-me a pagar-lhe o que lhe prometi e devo. Isto em mim agora não é alijar uma responsabilidade de mau pagador: é a verdade. Se me conhecesse intimamente estou certo que V. Exª. não só explicaria e perdoaria o meu silêncio amigo (numa significação bem diferente duma cursilería que para aí se chama amizade). Todos nós temos, dormitando no fundo do nosso ser, o nosso demónio (até Antero e Sócrates, que foram integrais como deuses, tinham cada um o seu) a que a psiquiatria de agora chama insultuosamente neurastenia, nevrose, psicastenia... -- e que sei eu? Quando um demónio desperta e reivindica os seus direitos ferocíssimos (ferocíssimos para o nosso pobre ser que tem de sofrê-los) nós esquecemo-nos de tudo -- até de pagar o que devemos. Exponho-lhe estas coisas íntimas e lastimosas, porque estou certo de que me dirijo a um espírito capaz de as compreeender. Doutro modo, se, em vez de tratar de si, se tratasse duma criatura vulgar como a abjecção da vida, creia: eu prolongaria indefinidamente o meu silêncio... -- et je m'en foutrais.
Eu desejava dizer-lhe muitas coisas sobre a sua magnífica plaquette dramática (dramática, não; lírica, bela e intensamente lírica); mas teria de ser longo e maçador. Sendo-lhe a si (devendo ser-lhe!) demais a mais indiferente a minha opinião sobre o valor artístico dela. De resto, uma opinião, boa ou má, seja de quem for, sobre uma obra de arte, não a desnivelará uma linha sequer do lugar justo que o seu valor real lhe marcou. Ninguém, nem Deus (refiro-me a Deus num sentido metafórico!), seria capaz de anular um átomo ao valor da obra shakespeariana, ou de pôr um átomo de génio nos medíocres furtos do Sr. J. D. Uma obra é o que é -- diga-se dela o que se disser. A crítica é apenas um comentário que traduz uma impressão ou uma análise: pode explicar a obra de arte, mas nunca validá-la ou invalidá-la. Nestes termos, a crítica, para o autor da obra de arte, não é lisonjeira, nem agressiva: é indiferente (deve sê-lo!). Por isso não estou a massacrá-lo com a minha admiração.
E quando solverei eu a grande dívida de enviar-lhe o artigo prometido?
Quando o meu demónio deixar.
Espinho, 12 de Março de 1905.
Criado sem préstimo
M.to Ob.do e Admirador
Manuel Laranjeira
Cartas
(edição de Ramiro Mourão)

João de Barros

sexta-feira, janeiro 06, 2006

estampa IV

Armando de Basto, O Tocador de Viola
Centro de Arte Moderna - Lisboa
(tirado do «Pintura Portuguesa»

Antologia Improvável #91 - Pedro Ludgero

Uma casa sobre o mar
Uma esmola de rubi
- Minha mãe me vai buscar
Tudo aquilo que esqueci

Uma casa sobre a terra
O salário só de um mês
- Minha mãe nas mãos me leva
A ternura que me fez

Uma casa sobre o vento
Um tesouro de maçã
- Minha mãe traz porta dentro
O caroço de amanhã

Se o Poema Tem Areia

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Caracteres móveis #56 - Stig Dagerman

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança um qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.
A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer
(versão de Paula Castro e José Daniel Ribeiro)

Stig Dagerman

quarta-feira, janeiro 04, 2006

una mujer desnuda y en lo oscuro
es una vocacíon por las manos
para los labios es casi un destino
Mario Benedetti cantado por Joan Manuel Serrat

terça-feira, janeiro 03, 2006

Antologia Improvável #90 - Eduardo Salgueiro

Nos teus olhos grita o fogo
Das grandes paixões. E assim,
Meu coração, lá caído,
Foi chama -- e cinza, por fim!

Cantigas dum Lusíada

estampa III

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Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos
Museu do Louvre

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Caracteres móveis #55 - Paul Gauguin

Sorrindo vai-se levando a cruz ao calvário enquanto as pernas tremem sob o peso da cruz; range-se os dentes e vamo-nos vingando a sorrir.
Antes e Depois [Memórias]
apud Ingo F. Walther, Gauguin -- Quadros de um Inconformado
(tradução de Etelvina Rocha Gaspar)

Gauguin

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domingo, janeiro 01, 2006

Boas maneiras

George Harrison

Miudezas

Foi-me, por vezes, mais gratificante publicar um magro estudo sobre qualquer escritor obscuro, que um trabalho de maior fôlego consagrado a um consagrado. Houve uma compensação interior de estar a fazer alguma justiça a quem penara tanto como muitos autores canónicos para construir uma obra. E a esperança íntima de no futuro alguém espreitar, de tudo não ter sido em vão.