segunda-feira, janeiro 31, 2011

regresso ao passado

Disse o narrador dum esplêndido Cyro dos Anjos*: «Os amigos são tão raros que precisamos conservá-los a todo o custo. E quando não possamos ser amigos cem por cento, sejamos cinqüenta ou vinte. Quando encontro, em alguém, cinco por cento de afinidade, contento-me com esses cinco por cento.» Cyro andava pelos trinta anos quando isto escreveu, trinta anos já maduros, pois não há nada mais intolerante do que um jovem adulto, cheio de força e espaço próprio a conquistar. Quando a maturidade chega, tudo se estreita e relativiza: passamos a valorizar as afinidades, como se à procura duma adolescência perdida, idade de descoberta e comunhão.
*O Amanuense Belmiro, Lisboa, Livros Cotovia, 2005, p. 101.

domingo, janeiro 30, 2011

Uivaria de amor a fera bruta / Que pela grenha te sentisse a mão
João de Deus

José Craveirinha

5 poemas, aqui.

O Vale do Riff - Ruts, «You're Just A»

sábado, janeiro 29, 2011

genealogia (2)

o meu sangue correu pelo atlântico
entre barcos negreiros de costa a costa
e companhias de navegação entre o norte e o sul
e do sul para o norte

há no meu sangue alguém subtraído
aos pais aos filhos ao amor da terra
capturado por tribo inimiga
prisioneiro de guerra
ou de cilada armada

um negro
robusto que bastasse para sobreviver à travessia do atlântico
grilhetas nos pulsos nos tornozelos no pescoço e na alma
ou uma negra
da costa dos escravos ao mercado da baía
ou de qualquer parte do brasil onde se vendesse gente como
                                                                           [mercadoria

o meu sangue negro perde-se numa noite secular
até um português do meu sangue branco (branco?)
trazer uma bisavó mulata com sua mãe liberta
a bisavó que hasteava a ordem&progresso à varanda
quando se pilhava e matava na lisboa republicana

áfrica américa europa américa europa
o meu sangue fez o triângulo do mar

sexta-feira, janeiro 28, 2011

O Vale do Riff - Wild Beasts, «Assembly»

Manuel Alegre, a declaração da derrota

Agora, como há cinco anos, orgulho-me de ter votado em Manuel Alegre.
Aqui fica o registo da sua declaração de derrota, com grandeza.


daqui

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Antologia Improvável #461 - Cacá Moreira de Souza

uma mentira talvez
um canto
uma chantagem
um escândalo
uma trepada
um porre
uma promessa
um plano de vôo
uma carta
um tranqüilizante
uma viagem
um grito
uma lágrima
um sim


talvez...

in Claudio Daniel e Frederico Barbosa,
Na Virada do Século --
 Poesia de Invenção no Brasil

terça-feira, janeiro 25, 2011

genealogia (1)

no meu sangue há
comerciantes austeros de suíças brancas e longas
relógios de cordão de ouro e ar respeitável
(talvez o fossem)
um ar que se permitia pendurar-se
nas paredes de pé direito muito alto
em casas do século dezoito

trataram na ribeira das naus do que chegava do brasil da índia e
                                                                               [das partes de áfrica
alguns deixaram as mulheres e descobriram no regresso filhos
                                                                    [com treze meses de gestação
alguns deixaram as mulheres e descobriram-se pais de outros
                                                                        [filhos em paragens distantes
perdoai-lhes senhor
que todos sabiam o que faziam

foram vizinhos do bernardo soares
sem que o notassem
estiveram cercados à fome pelos castelhanos em mil trezentos e
                                                                                    [oitenta e quatro
circularam em contágio de curiosidade entre o carmo e o arsenal
                                                                                    [no vinte e cinco de abril
sem espalhafato que a sua política era o trabalho
vaguearam doidos varridos quando o grande terramoto lhes
                                                                                    [ruiu bens e família
sobreviveram como puderam aos exércitos de bonaparte e à
                                                                                    [tropa de beresford

em lisboa há séculos
pergunto(-me) o que são e de onde vieram

prosperaram e caíram
o triunfo não era da sua natureza
acertavam quando calhava para tudo se desconjuntar na geração
                                                                                      [seguinte
cabeças no ar e mau vinho
importação de fruta exótica e lugares na praça da figueira
prédios no bairro alto e campo de ourique habitação ao rossio
cruzaram-se com o eça quando ia visitar os pais chegado de paris
mas também não deram por isso.
já ninguém mora nas casas pombalinas e o soalho deixou de
                                                                                      [ranger

desde então a família circula dispersa-se e desfaz-se
I've seen you!...
la la la la,
la la la la,
la la la la,
la la la laaaaaa...
Yes

domingo, janeiro 23, 2011

ilhas desertas #2 - The Wall

Já há algum tempo que dei por mim surpreendido com a circunstância de quanto mais o tempo passa mais agradável se me torna ouvir o The Wall, dos Pink Floyd, inversamente ao fastio que me vão provocando os outros álbuns que preencheram a minha adolescência: o Dark Side of the Moon, o Wish You Were Here e o Animals. Nesses idos de 79, chocalhado pelo pós-punk, comprei, ouvi, gostei e guardei o The Wall, aborrecido com o chinfrim à volta da censura ao hit «Another brick...», que tresandava a publicidade irritante. A verdade é que se trata de um grande (duplo) disco, escrito e composto ali com as vísceras todas do Roger Waters, traumatizado órfão de guerra. São 26 pequenas obras-primas, na melhor tradição do rock britânico, onde também há lugar para o riquíssimo veio oitocentista do musical londrino. Mason, Wright, Gilmour e Waters formam um quarteto arrebatador e inspirado; e Bob Ezrin, co-produtor esteve à altura do dramatismo, por vezes grandiloquente, que Waters pretendeu. Fiquei surpreendido, é verdade, mas sem razão. O Waters pôs-se todo lá, e quando é assim, é difícil uma obra não resistir ao tempo.

Nota: postado em 3 de Abril de 2005, com o  título «In The Flesh».

sexta-feira, janeiro 21, 2011

modernaço

O final dos tempos de antena de Cavaco impressiona pela girândola de novas tecnologias: o Twitter, o Flipper, o Skippy, a Lassie e o Rin-Tin-Tin. 

quinta-feira, janeiro 20, 2011

ilhas desertas #1 - Concerto para Orquestra

Béla Bartók (1881-1945), Concerto para Orquestra (1943), seguido de O Mandarim Maravilhoso (1919) e Dois Quadros para Orquestra (1910).
Um disco que levaria para a ilha deserta. Quanto mais oiço, mais gosto (este é o critério).
O Concerto para Orquestra -- repare-se na ambiguidade do título, o concerto é normalmente para solistas --, composto nos Estados Unidos, dois anos da morte de Bartók, é tido como uma espécie de resumo do percurso musical deste grande húngaro. A tradição e a inovação, o humor e o dramatismo, a vida e a morte (vivia-se e morria-se na II Guerra Mundial), a alegria solar dos trabalhos e dos dias nos campos e nas aldeias, o vórtice das metrópoles, tudo se conjunga nesta obra-prima.
 O Mandarim é um bailado dionisíaco, pleno de pujança e carga sexual; os Quadros, composições impressionistas, bem dentro da modernidade fragmentada dos anos dez. À memória vêm-me Debussy, é claro, mas também Ravel, Stravinsky.
A gravação é de 1962/63, com a Orquestra de Filadélfia, dirigida por Eugene Ormandy.

O Vale do Riff - J. J. Johnson & Kai Winding, «It's All Right With Me»

Joana, Luísa, Mafalda, Maria, Leonor e Rita

Fiquei hoje a saber os nomes  das mulheres dos candidatos presidenciais, que na maior parte desconhecia. Nomes fantásticos, todas. Joana, mulher de Defensor de Moura; Luísa, mulher de Fernando Nobre; Mafalda, mulher de Manuel Alegre; Maria, mulher de Cavaco Silva; Leonor, mulher de Francisco Lopes; Rita, mulher de José Manuel Coelho. Nomes fortes, com personalidade e com história. O país não está tão mal como o pintam.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

inveja & despeito

Não é que eu ande com fixação no tema, mas ele não deixa de ser uma triste evidência para quem se dá ao trabalho de circular. Estava a pescar palavrinhas para o blogue e deparo-me, no livro delirante do Teixeira de Pascoais, com os alegados «defeitos da alma pátria», um dos quais a inveja, é claro. É preciso no diagnóstico (a reacção do nulo diante do valor do outro, distinção que, por contraste, mais realça essa nulidade) e lúgubre na poética: «A Inveja! Nós vêmo-la, nas trevas, farejar: é um esqueleto de hiena visionando um cemitério...»*. A verdade é que há zeros inofensivos e outros que não o são tanto; pelo contrário, bastante mauzinhos, por vezes. A estes, gosto de os chatear.
Ligado à inveja, aparece o despeito. Esta campanha eleitoral, por exemplo, transbordou de despeito. Pequenas misérias humanas a que não nos poupam.

* Arte de Ser Português, 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 101.


terça-feira, janeiro 18, 2011

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Manuel Alegre e os outros

Os outros têm currículo, Manuel Alegre tem biografia. Eu aprecio gente com biografia.

sábado, janeiro 15, 2011

Antologia Improvável #460 - Antonio Risério

VIA CAIAPÓ

a saudade existe
quando você está
ao alcance
da mão

mas quando eu
estou longe
não

Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil
(edição de Claudio Daniel e Frederico Barbosa)

quinta-feira, janeiro 13, 2011

caderninho -- e é a última palavra d'Os Lusíadas

Dizem que os portugueses são invejosos. Eu acho que são, por pobreza de espírito e de recursos. O Senhor de La Rochefoucauld escreveu: «Muitas vezes fazemos alarde das nossas paixões, mesmo as mais criminosas; no entanto, a inveja é uma paixão tímida e envergonhada que não se ousa nunca confessar.»* É verdade, a inveja inferioriza-nos; mas também a não confessamos, pois não vá algum azar acontecer ao invejado e ficarmos nós no topo da lista dos suspeitos.

* Máximas, tradução de Cristina Proença, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 31.

José Tolentino Mendonça

5 poemas, aqui.

terça-feira, janeiro 11, 2011

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Cesário Verde

domingo, janeiro 09, 2011

Antologia Improvável #459 - Anelito de Oliveira

ALÉM DA PELE

quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
    escombros
    sem
    nem mesmo
    nem nunca
    o céu
    esta carne rude e
    incolor
    esta coisa
    quem
    onde
    quando até o corpo
    é terra
    pode vir
    a ser
    por trás da fumaça
    do carvão
    dentro do cru
    contido
    crítico
    coração
    ?



in Na Virada do Século -- Poesia de Invenção no Brasil
(edição de Claudio Pimentel e Frederico Barbosa)

sexta-feira, janeiro 07, 2011

1911

Faz hoje cem anos que um garoto embarcou sozinho no porto de Leixões rumo a Belém do Pará. Chamava-se José Maria Ferreira de Castro, «tinha 12 anos, 7 meses e 14 dias», acabara de ler um número da Ilustração e encetava um dos mais extraordinários percursos que um indivíduo pode realizar: acrescentar ao Mundo algo de si.
Sem que nada o sugerisse -- pelo menos à gente rude de onde ele provinha --, aquela criança começou a escrever num seringal da Amazónia, e quando de lá saiu para a capital paraense editou, logo que pôde, um romance ingénuo, que venderia em fascículos de porta em porta, intitulado Criminoso por Ambição. Corria o ano de 1916. Não era previsível que um filho de camponeses, apenas com a quarta classe, viesse a ser um dos maiores escritores portugueses do século XX, autor de, pelo menos, duas obras-primas -- A Selva (1930), um livro único, e A Lã e a Neve (1947), um exemplo das capacidades de um grande romancista no seu apogeu --, e de um punhado de livros relevantíssimos que, só por si, torná-lo-iam um dos romancistas mais consistentes do seu tempo: Emigrantes (1928), Eternidade (1933), Terra Fria (1934), A Tempestade (1940), A Curva da Estrada (1950), A Missão (1954) e O Instinto Supremo (1968), sem esquecer outros títulos, como A Volta ao Mundo (1940-44), um marco na secular literatura de viagens dos portugueses.
Ferreira de Castro foi um pioneiro na introdução em Portugal de uma literatura de intuitos revolucionários, com Emigrantes (1928). Mas foi muito mais do que isso: um psicologista fino, um estilista exigente, um autor atormentado pelo destino inexorável de todo o ser vivente, a morte, um ecologista avant la lettre, um defensor dos animais, um feminista, um libertário, um anarquista no mais puro e verdadeiro sentido da palavra.
Para quem ache os prémios importantes, deixo aqui registados os mais significativos: Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências (1934, atribuído a Terra Fria), Prémio Catenacci, da Academia de Belas-Artes de Paris (1965, atribuído a As Maravilhas Artísticas do Mundo), Grande Prémio Águia de Oiro do Festival do Livro de Nice (1970, conjunto da obra), Prémio da Latinidade (1971, em conjunto com Jorge Amado e Eugenio Montale); proposto ao Prémio Nobel de Literatura em 1951 (comissão liderada pelo académico dinamarquês Holger Sten) e em 1968 (com Jorge Amado, propostos pela União Brasileira de Escritores).
A sua obra continua a ser lida, reeditada, amada e redescoberta por muitos leitores, e como nunca se deixou contaminar pela propaganda do totalitarismo, isto é: nunca se esqueceu que o indivíduo é a entidade primeira numa sociedade livre e justa, não foi ainda desmentida pela História e pelas práticas dos homens.

quinta-feira, janeiro 06, 2011

quarta-feira, janeiro 05, 2011

até as piedosas

«Todos mentem. Eu também. Quero dizer que eu também mentia até ter deixado de o fazer até ter deixado de o fazer, até me ter enojado de mentir, até a mentira me enojar mais do que a morte: a mentira é suja, a morte é limpa.»* O excerto reporta-se a situação limite vivida por um ex-combatente no Vietname, mas aplica-se a todas as situações da existência, inclusive as mentiras piedosas: as outras sujam-nos, estas trazem mal-estar.

* Javier Cercas, A Velocidade da Luz, tradução de Helena Pitta, Porto, Edições Asa, 2006. 

terça-feira, janeiro 04, 2011

caderninho - sabedoria salomónica

«Aquele que acha uma mulher boa, acha a felicidade e recebe um dom do Senhor.» «Provérbios» 18:22, Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 1976, p. 830. 

O Vale do Riff - Recless Kelly, «1952 Vincent Black Lightning»

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Antologia Improvável #458 - Bénédicte Houart

felizes aqueles que
a terra toda por alimento
toda a fome por caminho














Aluimentos / Resumo -- A Poesia em 2009
(selecção de J.A. Oliveira, J.T. Mendonça, L. M. Queirós
e M. Freitas -- escolha de J. T. Mendonça)

sábado, janeiro 01, 2011

caderninho - um companheiro que nos habita

Podemos enganar e esconder-nos de todos, menos de nós próprios: «Não deixes que o Mal te convença que podes ter segredos perante ele.»* O Mal é um companheiro que nos habita.

* Franz Kafka, «Aforismos», tradução de Álvaro Gonçalves, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.

acordes nocturnos

António Barahona

5 poemas, aqui
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