sábado, setembro 30, 2006

Caracteres móveis - Friedrich Nietzsche

Ser independente é uma questão que diz respeito a uma muito pequena minoria, é um privilégio dos fortes.
Para Além do Bem e do Mal
(tradução de Hermann Pflüger)

Nietzsche

sexta-feira, setembro 29, 2006

Antologia Improvável #165 - Fernando Grade (2)

LIBERTATE

"Sinto-me um cientista a quem um admirador
remeteu uma carta que dizia: concordo consigo:
dois mais dois são cinco."
(Bertolt Brecht)

"Se não esperas o inesperado, nunca o alcançarás."
(Heraclito)

"Faço sempre outra coisa."
(o Autor, in "Museu das Formigas", 1980)


Para lá de todas as estradas de pó
percorridas pelo carro velho a caminho de
Montana onde os pistoleiros sempre estiveram escondidos
-- os dois jovens que fomos (eu e tu, Rebecca)
estavam à solta em todas as pradarias. Ao tempo,
Portugal fora fechado dentro de um dedo a corroer-se,
poço de vespas perversas.
Passámos por Indiana e os beijos não estavam doentes,
e em Chicago havia pistolas nos olhos de quem sorria.
Tive a liberdade de dançar contigo
o tango dos últimos bêbedos. Bêbedos cultos
apaixonados por licores ou vinhos desastrados quase música.
Em Pierre, conhecemos um jovem anoitecido por sustos
que era mestre a deitar fogo a bares.
Então soubemos d'outros que fugiam para o pé do mar
vinham montados num automóvel em pedaços
eram perseguidos por uma mentira redonda e
perfeita: os dois vão ser presos mas esfumam-se
porque o seu sangue é bom e ninguém sabe:
escondem-se assim para os lados das ondas e das ostras
procuram a salsugem -- o mar! E depois num povoado
perdido na noite, casas sem nome, descobrimos
a mãe da América fumava papoilas.
Não me lembro das tuas últimas lágrimas, mas
sei que choravas por um coração esvaziado por granadas.
O teu filho caíra na Ásia e não viera mais
-- desaparecera para sempre numa guerra errada.
Traiçoeiro como sempre esqueci (por momentos) Rebecca
e fui caçar outros olhos.
Por três tardes, luziu Herbie: passeava pelo seu corpo
eu atravessava-o como quem passeia pelas páginas de Balzac
como se as cidades bucólicas estivessem sitiadas.
E voltaram as labaredas altas a lamber os campos
regressei aos gestos fogosos de Rebecca
que ajudava as plantas a crescer,
não tinha medo delas. Faltava pouco para chegarmos
a Helena, onde os amigos tinham bons livros
à nossa espera. O ruído da seda a rasgar-se,
o jogo das pessoas brincadas, o ruído da água
o barulho sinistro que vem das chamas.
Era no chão o vestígio dos venenos.
Um Beethoven adulado por coiotes.
E os beijos à volta, os sôfregos beijos latinos
a crescerem: do pó em fúria até ao musgo.
Sempre tive um vinho muito ciumento.

Sempre Tive um Vinho Muito Ciumento

Fernando Grade

uma prancha de Hermann

O Vale do Riff - Louis Armstrong, «Basin Street blues»

quinta-feira, setembro 28, 2006

Sim à Turquia

Hoje, no Público, José Pacheco Pereira pronuncia-se a favor da adesão da Turquia à União Europeia, com um argumento geo-político essencial: «A Turquia não é um pequeno país, é uma potência regional, com uma área de influência que se estende das repúblicas asiáticas à China. E, para além disso, entra para a UE um dos poucos exércitos credíveis existentes na Europa. [...] Para a estabilidade da Europa, precisamos da Turquia e da Turquia do nosso lado.»
A herança cultural turca é enorme, nomedamente nos Balcãs; os turcos (etnia proveniente das estepes asiáticas, como os húngaros e os finlandeses) são Europa e estão na Europa há séculos, fazendo tanto sentido a sua adesão como a dos romenos e búlgaros, agora à soleira da porta.
É duma Turquia laica que falo, duma Turquia integralmente respeitadora da liberdade dos seus cidadãos, incluindo da dos curdos, uma Turquia que respeita a integridade de Chipre, uma Turquia que reconheça o seu passado para o bem e para o mal, como o tem de fazer relativamente à Questão Arménia. É uma Turquia de cidadãos europeus, em Istambul, em Ancara, em Esmirna, cuja modernidade não perde em confronto com a de muitas regiões da União Europeia. É evidente que há problemas, há atavismos seculares, há primitivismo, como existe entre nós meia dúzia de quilómetros andados para lá de Lisboa ou do Porto.
Finalmente, durante séculos, o Império Otomano serviu de refúgio aos perseguidos religiosos, designadamente aos judeus, aos judeus portugueses, convém lembrar. Por isso, nestes tempos difíceis de fanatismo religioso, de terrorismo em nome da religião, há que estender a mão a um país de grande dimensão e dignidade que anseia (tal como nós ansiámos) por estar na Europa democrática, livre e laica a que pertence por direito.

O Vale do Riff - Kate Bush, «Breathing»

quarta-feira, setembro 27, 2006

Figuras de estilo - Coelho Neto

Nós caminhamos sobre túmulos. Como os antigos guerreiros para tomarem de assalto os muros das cidades iam subindo pela mortualha, fazendo de cada cadáver o degrau da escada, nós vencemos à custa do que foi -- o dia de ontem é que nos traz o dia. Nas escadas, entre os degraus, há um vácuo como os túmulos.
«A propósito de festas»

Coelho Neto

O Vale do Riff - Gerry Rafferty, «Baker Street»

terça-feira, setembro 26, 2006

A cidade prosegue / Cada vez mais lenta / Em direcção à noite
Alberto de Lacerda

O Vale do Riff - Genesis, «Musical box»

Antologia Improvável #164 - Rui Costa

O PÃO

Há pessoas que amam
com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
e quando as perdemos estão sempre
ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
a lua encontra o pão caiado que comemos
enquanto o riso das promessas destila
na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
e pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
que não precisa de voar.

A Nuvem Prateada das Pessoas Graves

Rui Costa















foto daqui

segunda-feira, setembro 25, 2006

estampa LXX

Amadeu de Sousa-Cardoso, Cozinha da Casa de Manhufe
Centro de Arte Moderna, FCG, Lisboa

Pecha velha (auto-crítica)

Não consigo escapar ao entimema.

A propósito do MIC

A democracia há muito que se vive à margem dos partidos. Por este andar, acabará por exercer-se contra os partidos, contra estes partidos.

O Vale do Riff - Buddy Guy, Roland Kirk e Jack Bruce, «Stormy monday»

domingo, setembro 24, 2006

















uma capa de Mike Mignola

José Maria d'Alpoim

Correspondências #60 - José Maria d'Alpoim a Miguel de Unamuno

Lisbôa
Rua do Passadiço -- 1
Ex.mo Senhor
E meu prezado amigo
Perdôe-me V. Ex.ª não lhe ter escripto apenas cheguei a Lisboa. Mas se soubesse o que tem sido a minha vida! Quasi não tenho descansado um instante. Os meus trabalhos jornalisticos, as canseiras politicas, a troca de cumprimentos com tantos que me mostraram a sua sympathia e dedicação, não me deixaram um momento do meu. E com tudo era profundamente grato ao meu coração o testemunhar-lhe o meu reconhecimento pelas suas amabilidades affectuosissimas, e d'outros amigos que deixei em Salamanca, onde, apesar dos desgostos que me opprimiram, passei alguns dias que não me esquecerão.
Conheci hoje, não sei com que verdade, que no seu apis se descobriu uma conspiração contra o Rei Affonso. Será verdade? Aqui, as pessoas mais chegadas ao Paço, vivem n'um terrôr de agressões e desacatos ao jovem reisinho, que é pessoalmente encantador, com um grande desêjo de acertar, possuido da melhor bôa-vontade de sêr querido do pôvo, mas que não sei se possuirá talentos para o difficilimo mister de rei nestes tempos de democracia. Se elle conseguir subtraer-se ás nefastas influencias que assediaram seu pai, se o seu espirito tiver energia para comprehendêr a [?] dos tempos d'hoje e a necessidade de conciliar a liberdade com a tradicção monarchica, póde fazér esquecer os erros do rei D. Carlos e reabrir uma nobre missão de chefe d'Estado. D'outra fórma, agoiro-lhe tormentosas tempestades, porque o meu paiz, de condição branda e dôce, não consente a repetição dos atentados politicos que o ensaguentaram e convertêram esta terra, digna de todas as prosperidades pelas affectivas e trabalhadoras qualidades do seu pôvo, n'uma nação convulsionada por fortes odios politicos. O funesto dictador que desencadeou a tempestade espia longe, em Verona, a sua loucura criminosa.
Releve-me, meu Amigo, esta longa carta. Sei quanto se interessaria por esta boa terra portuguêsa e por isso fiquei a conversar demoradamente consigo, tendo uma grande alegria em lhe dizer que floresce aqui a antiga liberdade e tolerancia, que vai melhorando a núa situação economica e financeira, e que, se o Rei tiver tino e os homens publicos possuirem talento e patriotismo, bellos dias estão destinados ao querido Portugal. Desejo-os tão bem á sua bella e querida Hespanha!
Espero, este anno, se haverei d'uma visita sua á minha casa de Parede.
Sou
De V. Ex.ª
m.to ob.do Am.º e ad.m
José M. d'Alpoim
Epistolario Portugués de Unamuno
(edição de Ángel Marcos de Dios)

Unamuno

Boas maneiras

sábado, setembro 23, 2006

estampa LXIX

Henri de Toulouse-Lautrec, A Lavadeira
Colecção particular, Paris

Antologia Improvável #163 - Mário Máximo

O MEU MARAVILHOSO JARDIM NATURAL

Rododendros. Buganvílias. Carvalhos. Choupos. Salgueiros. Nogueiras. Oliveiras. Sequóias. Pinheiros. Palmeiras. Aloendros. Cerejeiras. Acácias... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural... Macieiras. Castanheiros. Loureiros. Pinheiros. Abetos. Tílias. Azinheiras. Amendoeiras. Áceres. Amoreiras... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural... Romanzeiras. Piteiras. Sobreiros. Sarças. Roseiras. Sabugueiros. Damasqueiros. Zimbros. Laranjeiras. Pessegueiros. Tamarindos. Tamareiras. Abrunheiras... De tudo isto haverá no meu maravilhoso jardim natural... Aveleiras. Alfenas. Ulmeiros. Cedros do Japão. Cedros. Medronheiros... De tudo isto e muito mais haverá no meu maravilhoso jardim natural!
Oração Pagã

Mário Máximo

quarta-feira, setembro 20, 2006

Antologia Improvável #162 - José Agostinho Baptista (2)

JANEIRO 74

toda a noite eu podia ouvir os comboios
e sabia que as grandes fomes estavam a chegar.

todas as palavras eram já estranhas
e era tempo de partir --

uma extrema solidão marcava a minha vida.

nunca fora tão insuportável a tua morte
nem tão longínquos os pequenos barcos do rio.

as minhas mãos cheiram fortemente a tabaco.
frenéticas e magras
dir-se-iam que esperam o teu regresso ou o sol
ou a tua cabeça serena.

nada poderá valer-nos.

tarda a Imensa Revolução
e os belos pensamentos ardem em nossas cabeças
afinal tão infantis.

em 1974 eu podia ouvir os comboios toda a noite.

da janela aberta de um 4.º andar suburbano
sob um céu pardo de inverno
eu avançava possuído de terror na minha insónia.

abandonara os poemas e as comovedoras histórias da Galileia.

por vezes bebia demasiado
dava longos passeios e gostava de futebol.

toda a noite eu ouvia os comboios seguirem para o norte e
para o sul
e sabia que as grandes fomes estavam a chegar.

Deste Lado Onde

José Agostinho Baptista

Posted by Picasa

O Vale do Riff - Art Tatum, «Yesterdays»

terça-feira, setembro 19, 2006

Caracteres móveis - Liberto Sarrau

[...] não ter tempo para ler é não ter tempo para viver -- salvo, talvez, para aqueles que acreditam que o tempo, como a vida, não é mais que «money». Não ler a pretexto de não ter tempo para isso é uma aberração e a negação do ser e da espécie humana, porque um e outra devem à linguagem e à escrita quase tudo o que são.
Colectânea
(edição de Elisa Areias e Luís Garcia e Silva)

Liberto Sarrau

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Fúnebres coisas nos lembram o que fomos.
José Carlos González

O vale do riff - Dr. Feelgood, «Roxette»

segunda-feira, setembro 18, 2006

I'm a poor lonesome cowboy...

Posted by Picasa Estou há largas semanas para assinalar aqui a edição histórica dos quatro primeiros álbuns de Lucky Luke, até agora inéditos em Portugal: A Mina de Ouro de Dick Digger, Rodeo, Arizona e Sob o Céu do Oeste. Algumas destas estórias foram, no entanto, publicadas entre nós por Adolfo Simões Müller, mas em revista, no mítico Cavaleiro Andante.
Pela imagem junta vemos o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra com traços ainda muito incipientes, traços que espelham uma grande influência dos desenhadores da Disney. Jolly Jumper, que com o seu dono aparece logo em «Arizona» (1947), nas páginas da revista Spirou, era ainda e só um intrépido cavalo...
Morris foi injustamente menosprezado, quando confrontado com o magnífico René Goscinny, autor dos argumentos a partir de certa altura; menosprezo que é injusto, sabem-no aqueles que como eu estão na casa dos 40 anos e puderam apreciar as narrativas impressas entre nós pela velha Editorial Íbis, dando-nos a conhecer a mestria da abordagem humorística do excelente belga à tradição do Oeste americano, como sucedeu com as figuras dos Dalton (Fora da Lei, Os Primos Dalton) e Roy Bean (O Juiz), que nada ficam a dever ao melhor Lucky Luke da parceria estabelecida com Goscinny. Este, genial, com um humor finíssimo -- o mesmo que lemos em Astérix --, viria a potenciar todo o material já existente; mas todo o espírito da série é devido ao seu criador. O pós-Goscinny conheceu, é verdade, altos e baixos, mas começa e termina com dois picos assinaláveis desta nova fase: O Esconderijo dos Dalton (Morris de novo a solo) e O Profeta (com argumento de Patrick Nordmann).
O que me interessa agora, porém, é dar quatro tiros de Colt 45 para o ar, um por cada título com a chancela das Edições Asa, que assim dão a conhecer ao público português as primícias de Maurice de Bevere (Morris) e da sua imortal criatura, cujo cavalo velocíssimo revelava uma inacreditavel lentidão a jogar xadrez...

Morris

O vale do riff - Cannonball Adderley, «Work song»

domingo, setembro 17, 2006

estampa LXVIII

 Posted by Picasa

Henry Rousseau,Uma Noite de Carnaval
Philadelphia Museum of Art

Antologia Improvável #161 - Francisco José Viegas

OS BARCOS NA ERICEIRA

Depois do mar frio, antes dos moinhos brancos
que se debruçam como árvores no caminho
dos pássaros, eu sonhei viver. Plantei uma romãzeira
entre as pontes a caminho do norte e dos canaviais,

quando as esplanadas do Inverno fixavam
recados e pombos perdidos na praça.
Sonhei portanto viver enquanto o plátano mais
frondoso viver. Depois disso, nada suportará

a passagem dos navios, a tempestade em tardes
de Outubro, se aí não puder morrer entretanto.

As Imagens / Metade da Vida

O Vale do Riff - Camel, «The Snow Goose» (excerto)

sábado, setembro 16, 2006


uma vinheta de Hergé

Pessoa

Correspondências #59 - Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro

Caixa Postal 147

Lisboa, 20 de Janeiro de 1935.

Meu querido Camarada:

Muito obrigado pela sua carta. Ainda bem que consegui dizer alguma coisa que deveras interessasse. Cheguei a duvidar de que o fizesse, pela maneira precipitada e corrente como lhe escrevi, ao sabor da conversa mental que estava tendo consigo.
Respondo e com igual espontaneidade, portanto falta de método e de arrumação, à sua carta agora recebida. Mas, enfim, qualquer coisa respondo. Sigo ao acaso os pontos a que tenho de responder.
Quanto ao seu estudo a meu respeito, que desde já, por o que é de honroso, muito lhe agradeço: deixe-o para depois de eu publicar o livro grande em que congregue a vasta extensão autónima do Fernando Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano. E então V. terá os dados suficientes: esse livro, a faceta subsidiária representada pela «Mensagem », e o bastante, já publicado, dos heterónimos. Com isto já o Casais Monteiro poderá ter uma «impressão de conjunto», supondo que em mim haja qualquer coisa tão contornada como um conjunto.
Em tudo isto, reporto-me simplesmente a poesia, não sou porém limitado a ese sorriso das letras. Mas, quanto a prosa, já me conhece, e o que há publicado é o bastante. Até há data, que indico como provável para o aparecimento do livro maior, devem estar publicados o Banqueiro Anarquista (em nova forma e redacção), uma novela policiária (que estou escrevendo e não é aquela a que me referi na carta anterior) e mais um ou outro escrito que as circunstâncias possam evocar.
É extraordinariamente bem feita a sua observação sobre a ausência que há em mim do que possa legitimamente chamar-se uma evolução qualquer. Há poemas meus, escritos aos vinte anos, que são iguais em valia -- tanto quanto posso apreciar -- aos que escrevo hoje. Não escrevo melhor do que então, salvo quanto ao conhecimento da língua portuguesa -- caso cultural e não poético. Escrevo diferentemente. Talvez a solução do caso esteja no seguinte.
O que sou essencialmente -- por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja -- é dramaturgo. O fenómeno da minha despersonalização instintiva a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz, naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar.) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. Perdi, é certo, algumas simplezas e ingenuidades, que havia nos meus poemas de adolescência; isso, porém, não é evolução, mas envelhecimento.
Creio ter dado, nestas palavras apressadas, qualquer vislumbre de uma ideia nítida do em que concordo com, e aceito, o seu critério de que em mim não tem havido propriamente evolução.
Refiro-me, agora, ao cado da publicação de livros meus num futuro próximo. Não há razão para se preocupar com dificuldades nesse sentido. Se quiser realmente publicar o Caeiro, o Ricardo Reis e o Álvaro de Campos, posso fazê-lo imediatamente. Sucede, porém, que receio a nenhuma venda de livros desse género e tipo. A hesitação está só aí. Quanto ao livro grande de versos, esse, como qualquer outro, tem desde já a publicação grantida. Se penso mais nesse do que noutro, é que acho mais vantagem mental na publicação dele, e, apesar de tudo, menos risco de inêxito na sua edição.
Quanto à pubicação do Banqueiro Anarquista em inglês, também aí não haverá, creio eu, mas por outras razões, dificuldade notável. Se na obra houver capacidade de interesse para o mercado inglês, o agente literário a quem eu a enviar, a colocará mais tarde ou mais cedo. Não será preciso recorrer ao apoio do Richard Aldington, cuja indicação, todavia, muito lhe agradeço. Os agentes literários (respondo agora à sua pergunta sobre o que são) são indivíduos, ou firmas, que colocam os livros ou escritos dos autores junto de editores ou directores de jornais, que eles, melhor que os autores, avaliam quais devem ser, mediante uma comissão, em geral de dez por cento. Nesse ponto, sei o que hei-de fazer e a quem me hei-de dirigir -- coisa rara, aliás, em mim, em qualquer circunstância da vida prática.
Abraça-o o camarada amigo e admirador

Fernando Pessoa

In Antonio Tabucchi, Pessoana Mínima

Casais

Boas maneiras


Bob Marley

sexta-feira, setembro 15, 2006

Caracteres móveis - Miguel Real

Na História não há culpados, há vencedores e vencidos, povos ou grupos sociais esmagados e outros que constroem as vitoriosas interpretações futuras. Na segunda metade do século XVIII, jogava-se em Portugal um jogo de pólos opostos com um imenso vazio no centro. Este vazio ou esta ausência chamava-se Europa e o seu progresso económico, científico e filosófico. A violência, o extremismo e o vanguardismo de Estado de Pombal medem-se pela intensidade por que tentou, em menos de trinta anos, preencher solidamente este vazio, tornando Portugal menos Portugal e mais europeu. [...] Não o conseguiu, não porque as medidas estivessem erradas, mas porque a violência por que as aplicou criou tanto um deserto em redor do Estado, de que tudo dependia, quanto um campo concentracionário de quase dois mil presos e exilados.

O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa

O Vale do Riff - Olivia Ruiz, «J'traîne des pieds»

quinta-feira, setembro 14, 2006

The house I live in

Paul Robeson, portentosa voz de barítono, traz-nos de longe a redenção dos escravos, a instância e a urgência da integração no deep south; a mão fraterna estendida ao compatriota que o oprime -- what is America to me?: uma casa comum para brancos e negros: the house I live in.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Antologia Improvável #160 - António Lobo Antunes

FADO TRÁGICO

Que dia tão mais noite que esta noite
onde a lua de Outubro amanhecia
que dia tão mais noite que esta noite
que noite tão mais dia que este dia.

Que abraço como o traço de um açoite
marcado a sangrar na carne fria
que dia tão mais noite que esta noite
a raiva que de ti me despedia.

Ó meu amor que noite tão de noite
como a noite que em nós de noite havia
era de noite sim e foi de noite

que a lua em mim nascida em ti morria
que noite tão mais noite que esta noite
que dia tão mais dia que este dia.

Letrinhas de Cantigas

António Lobo Antunes

O Vale do Riff - Jethro Tull, «Song for Jeffrey»

terça-feira, setembro 12, 2006

Caracteres móveis - João de Barros

E as letras, sendo uns caracteres mortos e não animados, contêm em si esprito de vida, pois dão acerca de nós tôdalas cousas.
In O Livro, o Leitor, a Leitura
Boletim Cultural, n.º 6, FCG
(edição de David Mourão-Ferreira)

João de Barros

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segunda-feira, setembro 11, 2006

domingo, setembro 10, 2006

estampa LXVII

Claude Monet, Canto de Atelier
Museu d'Orsay, Paris

Amadeo

Correspondências #58 - Amadeu de Sousa-Cardoso a Robert Delaunay

Manhufe - Amarante
(18 septembre 1915?)
Cher Ami,
J'arrive de la chasse et trouve votre carte postale. A mon prochain voyage à Porto, je m'occuperai des couleurs.
Merci de vos renseignementes.
Que la guerre est charmante -- c'est un peu littéraire, mais il se peut... Qu'elle doive être émotionante, je n'ai aucun doute. Je vous avoue mon regret de me trouver si loin. Je voudrais la sentir plus près, la vivre davantage.
Que la paix soit devenue trop chère, je vous crois -- on la paie. Mais si on ne participe pas à la guerre, si peu que ce soit, on s'embête. Il nous faut quelque chose de fort -- je suis militariste!
On me dit de Porto qu'il faudrait que vous remplissiez un bulletin ou je ne sais quoi pour qu'on vous envoie vos télégrammes. Donc, votre adresse que j'ai donné ne sufit pas; il la faut signée de votre main.
Salutations à Madame, et, pour vous, une amicale poignée de main.
A. de Souza-Cardoso
In Correspondance de Quatre Artistes Portugais -- Almada-Negreiros, José Pacheco -- Souza-Cardoso, Eduardo Vianna avec Robert et Sonia Delaunay
(edição de Paulo Ferreira)

Robert Delaunay

Um dia, do que os homens comem, nascerá uma flor.
Jorge de Sena

sábado, setembro 09, 2006

O Vale do Riff - Genesis, «The Return of the Giant Hogweed»

Vanessa Sequeira


Ouvi a notícia da rádio, ainda meio ensonado, e pelo inusitado dela retive-a, mas sem grandes demoras -- uma tragédia a mais no fundo negro dos dias que passam. Hoje, via Tupiniquim, vejo a sua figura delicada postada no blogue de Altino Machado, leio que empreendia uma pesquisa de grande relevo na Amazónia, com importância económica, social e cultural. Apercebo-me até da nossa quase vizinhança aqui em Cascais, pois era filha do vice-presidente da direcção dos Bombeiros dos Estoris.
Apetece-me postar também a fotografia em que Nesi, como era chamada, surge viva e estuante de promessas. Depois de conhecida a sua actividade, ela ganha uma aura dum encantador optimismo duma vida cheia de sentido, cuja interrupção, perpetrada por um detrito com forma humana, viria a desmenti-la.

sexta-feira, setembro 08, 2006

Antologia Improvável #159 - José Veiga

ENTRE FOLHAS E FRUTOS

As árvores mordem-nos na alma
as suas próprias folhas,
antes que a seiva, de todo, se derrame.

Esbracejam, tensas,
contra o silêncio das madrugadas outonais.

Os frutos, de tão maduros,
caem ruidosamente
nas herdades, enfim, abandonadas:
natural vingança
que as palavras namoravam.

Até no Odor da Pedra...

O Vale do Riff - Coleman Hawkins e Charlie Parker, «Ballade»

quinta-feira, setembro 07, 2006

Figuras de estilo - José de Matos-Cruz

Haverá uma Testemunha que os reconheça, uma Acta que descreva os seus tormentos, um Vento que os recomponha, uma Litania em que vibrem, um Juízo que os resgate?
A lembrança dos seus rostos dilui-se ao recuar.
Os EntreTantos

estampa LXVI

Henri Matisse, Nu Masculino: «O Escravo»
MoMA - Museu de arte Moderna, Nova Iorque

quarta-feira, setembro 06, 2006

Estou curioso

para saber o que se oferece dizer à rapaziada do Compromisso Portugal sobre a rapaziada da GM-Azambuja.

Outras maneiras

Há gente que escreve com a boca cheia.

O Vale do Riff - The Beatles, «The Long and Winding Road»

terça-feira, setembro 05, 2006

Antologia Improvável #158 - valter hugo mãe

meu amor inventado
ainda assim tanto demoras

O Resto da Minha Alegria

valter hugo mãe

estampa LXV

René Magritte, A Traição das Imagens
Los Angeles County Museum of Art

segunda-feira, setembro 04, 2006

Caracteres móveis - M. S. Lourenço

A vocação literária só é integralmente realizada quando o autor, lenta e gradualmente, transforma a sua pequena identidade individual no receptáculo universal da experiência cognitiva.
Os Degraus do Parnaso

M. S. Lourenço