domingo, maio 03, 2009

clube de leitura - Servidão

Assis Esperança, Servidão, Guimarães & C.ª - Editores [1946].
Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências.
Leonor, 17 anos, cinco irmãos, tendo de cuidar dos três mais novos. Bonita e vivaça. Entregue pela mãe a uns "padrinhos" ricos de Salreu como meio de fugir à miséria endémica dos pobres, na ausência prolongada do pai, avinhado e brutal. Regressado este, três meses depois, reclama-a, obrigando à saída desse conforto precariamente conquistado e o regresso ao tugúrio familiar, sem condições, sem higiene, sem privacidade.
Leonor conhece um rapaz da praia da Torreira, Manuel, que estuda em Lisboa, no Arsenal do Alfeite, futuro comandante da pesca do bacalhau. Diz-se mais velha, foge para a capital, vivem num quarto, enquanto o pai dela não manda a polícia no seu encalço, recambiando-a para a aldeia e detendo o inocente Manuel. Casam-se. Vida na Torreira, com os sogros. Manuel perdera o ano por faltas, embarca para a Terra Nova. Por lá desaparece num bote auxiliar ao pesqueiro, e é posteriormente dado como morto.
Leonor está grávida. Tem direito a uma pensão de dois contos de reis, que tarda, dado não haver cadáver que comprove o óbito. Quezílias com a sogra, interesseira e sem carácter. Na companhia do seu irmão preferido, Chico, de 13 anos, vai para o Porto, tentar a vida.
Leonor no Porto, nas "ilhas" do Porto, no meio operário e socialmente desvalido. Páginas fortíssimas de Assis Esperança, a lembrarem-me a descrição dos pardieiros de Paris por Zola, sem cair, contudo na minúcia naturalista, quase obsessiva. Servidão é, aliás, neste ano de 1946, o mais conseguido livro de Assis Esperança, como construção romanesca e como estilo -- sem o rebuscado de Viver! (1921) nem a secura de Gente de Bem (1938) (ressalvo que ainda não consegui ler o Ressurgir [1928]).
Não me é possível escrever aqui convenientemente sobre este volume de Assis. Cingo-me a algumas notas:
A personalidade de Leonor, protagonista do romance, comovente de fortaleza e estoicismo -- personalidade forte que não permite uma identificação miserabilista ou sentimental por parte do leitor, à medida que a acção se desenrola no Porto, num período crítico do ponto de vista económico e social (primeiros anos da II Guerra Mundial). À medida que a leitura se desenrola, estamos a ver quando Leonor irá desistir, quando se vai entregar à prostituição -- recurso de tantas mulheres num beco sem saída -- ou quando se deitará ao Douro, terminando com a vida, em especial após o trauma do parto de um filho nado-morto. Mas eu não conhecia bem Leonor. Ela volta à aldeia, lá no concelho de Estarreja, em socorro da mãe, gravemente doente. Oportunidades de se amantizar com um velho rico (o "padrinho"...), parece haver; mas ela é doutra têmpera. No fim da narrativa, ela sossega a mãe, dizendo-lhe que nunca há-de ser «má mulher»: «Porque adivinho que "qualquer coisa" se passa à roda de nós, daqueles que sofrem e trabalham.» Assim remata Assis Esperança o seu romance, na página 576. Um anticlimax aparente, porque aquela «qualquer coisa» contém em si a promessa dos maiores vendavais.
Só este tópico daria pano para mangas, mas como tenho um artigo prometido sobre Servidão, reservo para lá outros desenvolvimentos.
A outra nota que gostaria de postar é a valiosa atenção que Assis Esperança continuou a dar à condição da mulher, desta vez já não da média e alta burguesia, como em Gente de Bem, mas à mulher popular, sofrendo esta um duplo jugo: a dos descamisados e o da sua condição de fêmea, ser inferior e secundarizado na sociedade portuguesa.
Um romance esplêndido, em suma, que bem mereceu o Ricardo Malheiros daquele ano.
Roberto Nobre tem aqui uma das suas melhores capas.
Incipit: Abriu os olhos estremunhada. A necessidade, feita hábito, de acordar cedo, perdera-a, ela, logo nos primeiros dias da sua adaptação aos horários e empecilhos daquela casa. Nessa manhã, porém, fazia dezassete anos. Se vivesse ainda com os pais, não haveria na sua expectativa lugar para dúvidas: receberia, prenda única de aniversário, os afagos e as lamurientas falas da mãe, penitente do mal da pobreza: -- «Nem uma blusinha te posso dar, filha!» -- Ali, seria diferente: conheceria como as pessoas ricas tratam quem está a seu cargo. Se não corresse o risco de receber da madrinha a reprimenda de lhe recordar, a propósito de tudo, as responsabilidades da sua idade, mulher já feita, circunspecta, tão precoce saíra -- pediria uma boneca. Das maiores. -- Sonho premente desde a infância, não conseguira mais que arremedá-lo de cambulhada e, entre outros, com monas de trapos: uma saia velha, um atilho, apertado com força, a formar a cabeça, outro, a meio, a traçar a cintura. E improvida continuaria, se não viesse ocupar, naquela casa, o invejado lugar de filha adoptiva, criado para ela -- mas difícil, tão difícil, que muita vez apelava para a sua firme resolução de ser alguém, tapando a boca a repostadas e rebeldias.

2 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Muito interessante!

Agradeço-lhe, RAA :) Adorei lê-lo e tomar nota das suas apreciações.

Ricardo António Alves disse...

Eu é que agradeço, Ana Paula :)