Tenho pena que ao título irónico com que Assis Esperança pretendeu dar o mote ao romance, não preferisse o nome da principal protagonista feminina, Maria Eduarda, a única personagem de carne e osso deste livro, suficientemente real para escapar ao estereótipo da burguesia sem charme nem discrição. Não sei se alguma vez tal lhe passou pela cabeça, mas se acaso sucedeu, seria natural que houvesse escrúpulo em titular a narrativa com nome feminino, depois de, nesse ano de 1938, Ana Paula, de Joaquim Paço d'Arcos, ter recebido o principal galardão literário para um romance português que então se atribuía -- o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências --, com o frisson adicional do escândalo resultante da sua rejeição pelo autor, tais as reservas que o júri pusera à distinção que ele próprio resolvera outorgar...
Em Gente de Bem, «crónica de negócios», como o qualifica Esperança no antelóquio, tem no centro a família de Ataíde e Melo, homem de comércio & indústria que já conhecera melhores dias, na época de oportunidades criadas pela Grande Guerra. Oportunista, acaba por cair em desgraça, recorrendo ao auxílio interesseiro dum antigo sócio, o Montargil, outro manipulador bem sucedido a quem a fortuna continuava a sorrir. A Senhora de Ataíde e Melo, doméstica burguesa, interesseira e desinteressante, presidia, no tempo de prosperidade a uma liga mundana de beneficência; o filho de ambos é um escroque e um sobreportegido da mãe; Maria Eduarda é a única figura íntegra desta família lamentável.
Gente de Bem é um romance datado, no sentido mais restritivo do termo. A crítica às aparências e aos falsos valores burgueses no seio familiar já fazem pouco sentido, embora, de forma localizada, viceje ainda por aí muita hipocrisia moralista; o negociante burlão e pouco escrupuloso, é algo caricatural, não obstante durante a leitura me tenham aparecido os espectros dos oliveiraecostas & outros madoffs.
O principal interesse da narrativa reside, quanto a mim, na questão feminina, na forma como Esperança trata essa condição na primeira metade do século XX. A mulher como ser dependente e apendicular do marido ou da família, fora da qual não tem possibilidade de subsistir, o que é fautor de equívoco, transigência e/ou falsidade. A mulher da classe média portuguesa de então era educada para ser uma fada do lar, esposa e mãe. Poucas eram as que tinham as competências para sobreviver de forma autónoma e emancipada quando atingidas por adversidades como a viuvez ou mesmo quando quisessem imprimir-se a dignidade de recusarem os escolhos de muitos casamentos, dos maus tratos à infidelidade. Quase todas se resignavam.
Nunca sabemos, significativamente, o nome próprio da Senhora de Ataíde e Melo, como se fora dessa condição esponsal ela não existisse; o mesmo se passa com uma viúva de um sócio de Ataíde e Melo, homem honrado vítima das falcatruas daquele e que se suicida em razão da mácula que caiu sobre o seu nome; o sócio, num assomo de escrúpulo, recolhe a viúva, não sem antes atribuir responsabilidade pelo desaire ao malogrado António da Silva. Também dessa não conhecemos o nome próprio, mas sabemos que o destino das viúvas sem bens ou descendência era em muitos casos o da caridade. De resto, muitas mulheres em idade de casar que tivessem o infortúnio de perder o pai -- o chefe de família -- relativamente jovens, eram levadas a procurar um casamento de interesse, por vezes com homens mais velhos, seguro de vida para si e para as mães. Éo que se passa com Maria Leonor, uma vizinha e confidente de Maria Eduarda, que psicologicamente não resiste a essa situação.
Maria Eduarda -- é ela, repito, a figura do livro --, jovem mulher, interessante e ainda virgem -- o que valoriza a mercadoria... -- é objecto duma impudente tentativa de transacção matrimonial entre os pais e o dinheiroso Montargil, com o fito, claro está, da recuperação da boa situação em que outrora viveram, além do bónus adicional de uma interessante colocação profissional para o irmão de Maria Eduarda.
Este é pois o tema de Gente de Bem, mas também ele, felizmente, em boa parte já ultrapassado pela realidade social de hoje: a denúncia da situação precária de uma larga faixa da população feminina portuguesa. Por alguma razão, Assis Esperança é, com Ferreira de Castro, considerado um dos precursores do neo-realismo (seja lá o que isso signifique...)
Mas Gente de Bem sobrevive mal ao tempo que por ele passou. A espessura e a verdade de Maria Eduarda como símbolo da difícil situação da mulher portuguesa são inegáveis. Insuficientes, porém, para resgatar este terceiro romance do escritor ao esquecimento que sobre ele se abateu.
Incipit: Boa tarde a V. Ex.ª, sr. Director!
Logo que soaram, na escada, uns passos firmes, ritmados ele abiu, solene, as portas envidraçadas do vestíbulo do escritório, e curvou-se à passagem de Ataíde e Melo. Para que o sr. Director o estimasse, inventava, todos os dias, delicadezas inéditas, cumprimentos, curvaturas de espinha. Corria a abrir uma e outra porta, seguia-o, humílimo, até ao limiar do gabinete da Direcção, à espera de uma ordem, dum sorriso. Ali, outro contínuo desembaraçaria sua ex.ª dos seus pesados abafos, tresandando riqueza.
A capa é de Roberto Nobre.
4 comentários:
Gostei imenso de ler, RAA! Obrigada por esta excelente divulgação!
Apesar de obviamente datado, a temática da condição feminina continua a ser importante. Ainda que com outros contornos, hoje, é caso para pensar se se transformou tanto assim. Tema que pode ainda resgatar este livro do esquecimento, o que me parece muito bem assinalado por si :)
Obrigado, Ana Paula :|
Tem obviamente um lugar na história literária e na sociologia da literatura, mas suporta mal os anos... E felizmente hoje as mulheres já não têm a escolaridade mínima para serem donas de casa...
Duas coisas me chamaram à atenção.
A comparação com "Ana Paula" de Joaquim Paço d'Arcos prémio que o autor não pretende receber e o título "Gente de bem" que Assis Esperança pretendeu que fosse irónico; o diálogo final próprio de quem se considerava gente de bem e a realidade da generalidade das mulheres portuguesas da época.
Vendo bem, apesar da preponderância ética e emocional de Maria Eduarda, é o pai, Ataíde e Melo, a figura central do romance, repelente, mas central. Creio, por isso, que o Assis Esperança nunca terá pensado nesse título. Sobre a questão feminina, dois anos mais tarde, o Ferreira de Castro também abordará o tema, no seu romance menos conseguido, «A Tempestade».
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