Estou a meio do livro. Leio o Jorge Amado desde a adolescência. Tenda dos Milagres, a deliciosa história de Pedro Archanjo, foi a obra que me introduziu no universo deste grande brasileiro. Hoje quase que lamento não ter a pureza dessa época em que me deixava envolver pela surpresa e pelo estupor que me instilava a crua realidade encerrada nos livros do autor de Jubiabá.
Seara Vermelha data de 1946, da fase comunista militante do seu autor. Dedicado a Luís Carlos Prestes, abre com epígrafes deste, de Castro Alves e de Engels. Trata-se de uma odisseia de retirantes -- desses retirantes imortalizados na tela por Portinari -- através da caatinga até São Paulo, terra de oportunidades. Algum desleixo formal que existe na prosa de Amado é largamente compensado pelo boa oficina romanesca; um estilo poético, podendo resvalar, por vezes, para algum empolgamento épico, é logo corrigido pelo realismo das personagens e das situações narradas e também pela gostosa ironia do romancista. Estou a acompanhar uma família alargada, expulsa pelo novo proprietário das terras em que vivia e trabalhava. Jerónimo e Jucundina são, até agora, os protagonistas principais, além dos filhos sobrantes, três netos de uma filha falecida no derradeiro parto (Tonho, Noca e Ernesto), os irmãos de Jerónimo, a louca Zefa e João Pedro, mais a mulher e a filha deste. Sofrem várias baixas durante a viagem, crianças e adultos. Noca faz uma ferida no pé ao correr atrás da sua gata, Marisca, que, contra a opinião dos adultos, insiste em levar na travessia do sertão, único brinquedo da criança de sete anos; contraindo uma infecção, morre pouco depois. E não será sem problemas de consciência, pelo menos de alguns dos seus membros, que a família virá a comer a gata para enganar a fome. Dina, mulher de João Pedro, morrerá de uma espécie de tifo, já a família exausta tem semanas de caminhada. As suas forças pouco mais dão que para um simulacro de exumação. Afastados poucos metros, percebem que os abutres ficaram para trás:
«Juntaram-se num bando irrequieto e barulhento, trocando bicadas entre si, sobre o cadáver. Adiante, Jerónimo que não os via no céu, a persegui-los, imaginava o que se estava passando. Também João Pedro sabia que eles estavam devorando o cadáver de sua mulher. Mas não tinha coragem de voltar, de perder mais tempo, como não tinha mais forças para sofrer nem lágrimas para chorar.» (5ª ed., p. 102).
A minha realidade é outra, já não tenho esses quinze anos em que ficava esmagado depois de ler Capitães da Areia, Mar Morto ou Terras do Sem Fim. A realidade é outra. Vejo no Público de hoje a fotografia dum miúdo iraquiano a chorar a perda de parentes naquela tragédia da ponte, desastre causado pelo medo dos atentados e pelo ajuntamento de peregrinos; vejo cadáveres, lixo e desespero em Nova Orleães, a cidade de Armstrong inimaginável no grau de destruição e caos. Já não me surpreendem estes dramas humanos, como quando era novo, mas ainda tenho, por vezes, de dobrar o jornal, ou afastar o livro, fechar os olhos e respirar fundo.
Alterado em 5-IX-2005.
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