domingo, julho 05, 2009

clube de leitura - Trinta Dinheiros

Assis Esperança, Trinta Dinheiros, Guimarães Editores, Lisboa, 1958.
Crónica de negócios e negociatas, de traições e transigências, na indústria, na finança, na imprensa, continua a triste saga de Ataíde e Melo, iniciada vinte anos antes em Gente de Bem.
Mercê de expedientes a que lança mão desde sempre, o self made man Joaquim Ataíde e Melo guindou-se à situação de c.e.o. (como agora se diz, em horrendo economês) da empresa proprietária do "Diário da Tarde". Trabalha para seu proveito e para ajustar contas, desviando -- é claro -- os dividendos alcançados pela empresa. Uma vida de estadão, pois então, motorista fardado, amante(s), a mulher no Estoril, para aborrecer o menos possível. Deslumbrado, megalómano, ávido, será substituído em assembleia geral de accionistas, curiosa actualidade...
Acaba mal, o ganancioso, ao contrário da filha, Maria Eduarda -- o único caracter decente deste hediondo fresco da burguesia. Em Gente de Bem, saíra da casa dos pais para viver com o homem que amava e com quem partilhava afinidades electivas. Ou julgava partilhar. Álvaro de Castro (será coincidência a personagem ter nome dum primeiro-ministro da República, por sinal um dos mais à esquerda, que levou para o executivo alguns membros da Seara Nova, nomeadamente António Sérgio), Álvaro de Castro -- escrevia -- , é um advogado cujas ideias arejadas, que tanto seduziram Maria Eduarda, não resistiram à perspectiva de uma promissora carreira, chegando a casar-se com esta por mera conveniência de salvaguardar aparências.
A filha do patético Ataíde e Melo não quer atraiçoar-se e divorcia-se, trilhando um caminho cheio de dificuldades, mulher de poucas habilitações, guardada para o papel de esposa e mãe. Cruzar-se-á com um médico e investigador, António Ribeiro Gomes, de convicções libertárias, todo consagrado à sua vocação. Homem difícil e reservado, Maria Eduarda terá como projecto de vida dedicar-se-lhe, com a expectativa de vir um dia a ser verdadeiramente amada. Confesso o meu desapontamento pela saída dada por Esperança a esta personagem fascinante; mas, apesar de tudo, que poderia fazer uma fêmea sem habilitações no Portugal de meados de novecentos, para além de se devotar ao marido ou companheiro? É curioso ver a nota que o autor nos dá sobre a sua própria valorização das atribuições sociais: o advogado revela-se oportunista, de convicções moles, ao contrário do médico, com outra nobreza e que decorre das convicções de Assis Esperança a respeito dos malefícios e benefícios das duas actividades. (Há, a propósito, uma fugaz aparição de um candidato a deputado, cheio de lábia e presunção, indicadora do menosprezo, bem anarquista, do romancista pela representação partidária).
Tal como se verificou em Gente de Bem, a Senhora de Ataíde e Melo (continuámos sem lhe conhecer o nome próprio...) e o filho têm um papel secundário. Este será, no fundo, um lídimo sucessor do pai, em trapaça e falsa compostura. A mãe, tonta inútil e negligenciada, tem como desígnio principal da sua irrelevante existência o de divulgar em Portugal o culto de São Judas Tadeu, apóstolo desgraçadamente confundido com o outro, o que vendeu Cristo por trinta dinheiros, um Judas Escariote em que, sem que disso tivesse noção, se tornara o homem com quem casara e de quem parira.
O romance supera em contenção e em estilo aquele de que é sequela; mas perde no confronto para o livro imediatamente anterior de Esperança, o magnífico Servidão.
Incipit -- Quando, entre a correspondência recebida, nessa tarde, do Continente, passadas as cartas uma a uma, Ataíde e Melo não viu o timbre, em relevo, de Montargil & C.ª, desenrugou a fronte e respirou fundo. Quinze dias antes, manadara para Lisboa, como lhe fora ordenado, sangria, ao que lhe parecera, desatada, um minucioso relatório sobre a crise dos bordados da Madeira, possibilidades de se lhe atenuarem os efeitos, reconquista de mercados, e prováveis lucros ou prejuízos fabris nessas proximidades do fim do ano. E ficara à espera, e contava que, pelo menos, como era norma da Casa que servia, acabariam por menosprezar todos os seus alvitres e exigir-lhe um muito maior esforço de trabalho.
A capa de Roberto Nobre, cumpre. Há muito que ele se afastara das actividades gráficas para dedicar-se ao ensaísmo cinematográfico (e também literário). Presumo que esta capa terá sido feita pela grande amizade com Assis Esperança.

7 comentários:

Ana Paula Sena disse...

É um prazer lê-lo, RAA! Consegue sempre tornar atraentes estas suas leituras :)

Obrigada!

Ricardo António Alves disse...

Sempre amável, Ana Paula :)
Um abraço

Paulo Ferrero disse...

He, he, tenho amigos Ataíde e Melo (entretanto acrescidos de "th", "y" e duplo "l". Será que já leram Assis Esperança? Abraço.

Ricardo António Alves disse...

Grande Paulanski!
Parece que em 1938, depois de "Gente de Bem" houve quem se tivesse manifestado, por isso, ele teve o cuidado, no "Trinta Dinheiros", de advertir para as coincidências...
Outro.

Lina Arroja (GJ) disse...

Excelente, esta sua boa vontade de partilhar o Assis Esperança e outros autores que ainda não foram reeditados. Bom trabalho e boas leituras. :-)

Ricardo António Alves disse...

Obrigado, GJ :|
Se encontrar o «Servidão», em boa parte passado aí no Porto, não hesite em comprá-lo.

Lina Arroja (GJ) disse...

Assim farei. Se encontrar digo-lhe.