Muito tempo depois, desde A Jangada de Pedra -- e não contando com alguns textos laterais, como o muito interessante -- As Pequenas Memórias --, regresso a José Saramago e deparo com um escritor na plenitude das suas capacidades estilísticas. Tive uma impressão semelhante quando li o magnífico Para Sempre, de Vergílio Ferreira: era preciso ter-se escrito muito e menos bem, anos e anos de prosa acumulada, para vir a público com um romance como aqueles.
N'A Viagem do Elefante, o escritor tinha o fio de uma história: o percurso de um paquiderme indiano da corte de D. João III, Lisboa, à do arquiduque Maximiliano, Viena. A narrativa dá-nos uma figura inesquecível, a do cornaca Subhro (rebaptizado Fritz, por Maximiliano...), personagem coadjuvada pela não menos interessante do comandante do destacamento que tem por missão conduzir Salomão, o elefante, e respectivo cornaca à fronteira, em Figueira de Castelo Rodrigo (a passagem de testemunho aos enviados do arquiduque é saborosíssima). Ora, neste belo livro, o que mais me agradou foi a sageza de autor, em que nada parece estar a mais ou a menos, servido por uma ironia e uma graça que me surpreendeu, a que se juntam delicosos anacronismos e inúmeras piscadelas de olho ao leitor, que, se não estou errado, têm no Almeida Garrett das Viagens na Minha Terra a sua principal fonte.
Depois do soberbo Levantado do Chão, de Memorial do Convento, de O Ano da Morte de Ricardo Reis e do até certo ponto decepcionante A Jangada de Pedra, este périplo elefantino -- Salomão entra no panteão bestial da nossa literatura ... -- foi para mim um feliz reencontro e abriu-me o apetite para quatro livros seus que tenho de há muito em carteira: História do Cerco de Lisboa, Ensaio sobre a Cegueira, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Lucidez, aos dois últimos acrescendo um interesse não exclusivamente literário.
A capa, de Rui Garrido, é uma festa para os olhos.
Incipit -- Por muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância das alcovas, sejam elas sacramentadas, laicas ou irregulares, no bom funcionamento das administrações públicas, o primeiro passo da extraordinária viagem de um elefante à áustria que nos propusemos narrar foi dado nos reais aposentos da corte portuguesa, mais ou menos à hora de ir para a cama.
P.S. - Graças à bloga, podemos sempre ler, quase em primeira mão, as anotações de Saramago no seu Caderno, privilégio que normalmente não dispenso, em acordo ou desacordo.
5 comentários:
RAA: gosto muito do seu clube de leitura :)
Não li ainda este, mas fiquei agora com a ideia nele. Não pude deixar de sorrir ao ler o incipit :)
Obrigada também pelo link dos cadernos.
Entre os livros que cita do autor, O Evangelho segundo Jesus Cristo marcou-me imenso. E, depois, o trabalho que está por trás desse livro... é qualquer coisa de admirável. Impossível escrevê-lo sem uma meticulosa preparação.
Corrijo: do Caderno :)
(miudinha de profissão)
Ainda bem, Ana Paula, fico muito contente :|
O Evangelho está a aguardar...
Um abraço.
Abriu-me o apetite para este, vizinho. Ainda não o li, mas tenho ouvido (e lido) por aí que o Saramago voltou ao esplendor do Memorial com esta viagem do elefante. Andávamos frios (eu e ele) desde a Cegueira, vamos ver se é desta que fazemos as pazes... ;-)
Tenho a certeza, vizinha :|
Não será o melhor Saramago, mas é seguramente um excelente livro.
Um abraço.
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