Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:
Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante da Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião da sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, cara redonda, vestido com jaqueta de azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrez. E fiz este assento, que assinei -- Filipe Moreira Dias.
À margem esquerda deste assento está escrito:
Foi para a Índia em 17 de Março, de 1807.
[Da 3.ª edição popular da Companhia Portuguesa Editora, Porto, 1917 (actualizei a ortografia); exemplar que pertenceu ao avô materno da minha mulher, Basílio Manuel Correia (nome muito camiliano), adquirido em 1930]
PORTIMÃO -- MARÇO -- 1901*
A sua fantasia trabalhou em vão, isto é, transviada à verdade; eu estou perigossissimamente enfermo, embora o não seja de paixões perversas. Mas o regresso a casa, o silêncio do meu gabinete -- neste pacificador ambiente, quase conventual, alguma vez já defumado a incenso e com escaninhos onde outros aromas predilectos se encelaram, trouxe-me quase uma esperança... Tanto basta a galvanizar-me na ilusão duma vida nova! Fruir, parado, o mundo todo -- a paisagem nas suas linhas e cores, sem perder movimento algum dos seres perceptíveis que a animam -- fruir sem exaltação, saboreadamente, -- como nas serenas contemplações que adoçam as convalescenças demoradas -- sem a angústia da ansiedade juvenil nem os encruamentos da tristeza prevista pela experiência, tal seria agora a minha aspiração ou o meu programa...
* Dirigido a Henrique de Vasconcelos, a quem o livro é dedicado.
[da 2.ª edição, na Seara Nova, Lisboa, 1930 (actualizei a ortografia; comprei-o em Março de 1990).]
Rubicundo, pesadão de farto, o estômago bem lastrado com lombo de vinha-de-alhos, padre Jesuíno saiu a espairecer para a varanda que a aragem da serra brandamente refrescava. Manjericos e craveiros floriam dentro de velhos potes, e tão abertos, tão medrados, que do mainel transbordava para a casa e sobre o pátio uma onda álacre de primavera. Tarde de infinita benignidade -- era nas vésperas de Nossa Senhora de Maio, quando ela de andor ao céu aberto avista tudo verde em redondo -- ali apeteceia gozá-la com cristianíssimo ripanço ao passo moroso da digestão. mas não tardou que argoladas fortes soassem à porta de Jesuíno, em tamancos, as calças presas ao abdómen por um negalho, camisa de estopa deixando espreitar pelos bofes a pelúcia de cerdo à mistura com o alcobaça vermelho, cigarro nos beiços, toda a sua pachorra eclesiástica mais rabugenta que cão dormido, foi ver.
Era a Feliciana, e enfadado rosnou:
-- Diabos te carreguem... esqueces sempre a chave.
[sem menção de edição, Livraria Bertrand, Venda Nova, 1979 (comprei-o em Maio de 1991)]
1 comentário:
Ainda bem, Fátima. Foi uma maneira que arranjei de andar sempre à volta deles...
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