domingo, janeiro 17, 2010

dos livros da minha vida

O Barão, de Branquinho da Fonseca (1942)
Não gosto de viajar. Mas sou inspector das escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o país. Ando no caminho da bela aventura, da sensação nova e feliz, como um cavaleiro andante. Na verdade lembro-me de alguns momentos agradáveis, de que tenho saudades, e espero ainda encontrar outros que me deixem novas saudades. É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigação e as obrigações não darem prazer. Entusiasmo-me com a beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferença de mentalidade do povo de região para região. Num país tão pequeno, é estranhável tal diversidade. Porém não sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de nenhum desses aspectos e logo me desinteresso. Seja pelo que for, não gosto de viajar.
[da 4.ª edição, na colecção "O Livro de Bolso", da Portugália Editora, Lisboa, 1962, com um posfácio de José Régio. O início prosaico vai contrastar com a estranha atmosfera que Branquinho logou criar; um ambiente de certo modo fantástico que tem contribuído para que esta obra-prima surja, por vezes, incluída em colectâneas do género. Comprei-o em Julho de 1990.]
Bichos, de Miguel Torga (194o)
Nero
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso... Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo das arcadas das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia melhor, ficar ao menos ali.
[Da 19.ª edição, do Autor, Coimbra, 1995. Lera-o há muitos anos, e pertencia à minha irmã; só recentemente, 2002, comprei o meu. Do melhor Torga está aqui.]
Davam Grandes Passeios aos Domingos, de José Régio (1941)
O comboio parara finalmente na estação de Portalegre. De novo o cavalheiro amável se dirigiu a Rosa Maria:
-- Chegou. Faça favor de descer que eu passo-lhe as suas coisas.
-- Muito obrigada! -- disse Rosa Maria descendo.
O cavalheiro amável estendeu-lhe a caixa do chapéu, o embrulho do presente da velha Leocádia para a menina Lá-Lá, e a pequena mala de couro em que Rosa Maria trazia o indispensável para o primeiro dia. A mala grande vinha despachada.
-- Muito obrigada! -- repetiu Rosa Maria -- tenha boa viagem. Boa noite!
[Da colecção "Brevíssima Portuguesa", co-edição das editoras Bertrand, Civilização e Contexto, s.d. A primeira vez que o li, estava integrado no volume Histórias de Mulheres,; este exemplar comprei-o em Setembro de 1995. Talvez não seja o meu principal Régio (figura admirável e escritor completo), mas foi o primeiro]

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