quinta-feira, novembro 17, 2016

Putin e o TPI

Há coisas demasiado sérias para que se possa aceitar a sua falsificação abastardamento. Uma delas é o Tribunal Penal Internacional. O TPI nasceu mais do que torto: não só não está dependente da ONU, como se distinguiu por uma parcialidade durante a guerra da Iugoslávia que o desacreditou desde o início.
A não-tutela das Nações Unidas até pode compreender-se, dados os impasses que institucionais; porém, o risco de utilização do TPI pelas agendas das grandes potências, resulta ainda pior. 
Na Guerra da Iugoslávia, os sérvios foram, com efeito, os bodes expiatórios do TPI, num conflito que não teve inocentes políticos e militares..
Quando Putin decreta o afastamento da Rússia do TPI, após uma referência deste à situação da Crimeia como "ocupação", mais não faz do que pretextar e sublinhar a situação insustentável em que o tribunal se colocou: uma instituição que não é para ser levada a sério, como já se sabia, acabando, no fundo, por ser contraproducente em relação aos seus fins: julgar criminosos de guerra, procurando, também, ser dissuasor.
Ora, se há um caso em que os russos têm muitíssima razão, esse é o da Crimeia, histórica e politicamente.
Têm razão, do ponto de vista histórico, porque, na década de 1950, Krushtchev o autocrata do momento, resolveu (dizem que após uma noite de bebedeira), retirar a Crimeia da República Soviética da Rússia e integrá-la na República Sovética da Ucrânia. Com o feliz colapso da URSS, os russos, demasiado enfraquecidos para fazerem valer as suas pretensões, limitaram-se a garantir a soberania sobre o porto estratégico de Sebastopol. Com a degradação política da Ucrânia, a Rússia limitou-se a tomar posse de um seu território secular.
Mas não ficamos por aqui: a população da Crimeia, maioritariamente russa, votou pela sua reintegração na pátria. Quem pode censurá-los -- aos cidadãos e ao poder russo? Os cínicos, claro. Acontece que a Rússia é demasiado poderosa para sujeitar-se ao cararejar dos hollandes e das mays e, neste caso em particular, fez o que devia, desprezando uma instituição mal-afamada, para desgraça das vítimas dos crimes de guerra.  

Nota: a selectividade das notícias e das indignações também não deixa de ser interessante: fala-se na Ucrânia e na Geórgia (peões potenciais dos Estados Unidos), mas nada quanto à Tchetchénia, pese embora a especificidade de cada um dos territórios. É um bocado como as notícias que vêm da Síria e do Iraque. Em Alepo morrem sempre crianças; em Mossul, só se abatem os maus do Daesh. Lá está: estorinhas pera entreter meninos. Foi preciso ver as reportagens do Paulo Dentinho, para perceber que metade de Alepo se mantém praticamente intacta: até aqui, só nos chegavam as imagens da zona oriental, captadas por drones ou pela Al-Nusra, com os seus 'capacetes brancos' (parece que queriam atribuir-lhes o Nobel da Paz...) -- segundo ouvi bacorejar numa televisão qualquer.

8 comentários:

Rui Luís Lima disse...

A reportagem do Paulo Dentinho (que sempre foi um excelente jornalista) foi magnifica, porque pela primeira vez tivemos a visão dos dois lados de Alepo, aliás a cidade fez-me recordar uma certa Beirute do século XX!
Cumprimentos

R. disse...

Só vi bocados da reportagem, infelizmente, e depois a entrevista ao Assad. É sempre bom não termos versões unilaterais das coisas, e tentarmos discernir, tanto quanto nos é possível, a propaganda do que realmente está a suceder -- sendo que a propaganda é feita pelos dois lados, inevitavelmente.

Jaime Santos disse...

Francamente, quero lá saber o que decidiram os cidadãos da Crimeia num referendo 'ad-hoc' e em que não houve sequer garantias de que as duas partes em contencioso pudessem fazer campanha livremente (leia-se o insuspeito artigo http://www.esquerda.net/opiniao/crimeia-anexa%C3%A7%C3%A3o-ou-decis%C3%A3o-democr%C3%A1tica/31808). Não estamos propriamente a falar do referendo sobre a independência da Escócia, entenda-se. Aliás, fico surpreendido que considere sequer relevante tal embuste. Os déspotas, a começar por Napoleão, recorreram ao referendo sem parcimónia. Aliás, quando Churchill sugeriu a Atlee o prolongamento da vida do Parlamento Britânico após o fim da Segunda Guerra Mundial, ele não foi em cantigas (https://www.theguardian.com/politics/2016/jun/21/brexit-euroscepticism-history). Depois, essa historieta do Krustchev (que talvez seja falsa, sabe-se lá) não é nenhum argumento, parece mais uma 'história da carochinha' (como se os ucranianos da atualidade tivessem culpas de ter sido governados pelo tirano de turno). Se amanhã, os barranquenhos decidissem, mesmo com razão de causa, levantar-se em armas e fazer algo de semelhante, após o que se uniriam à Espanha, o que diria o meu caro? O Ocidente não deve provocar Putin, agora aceitar situações de facto também não. É que isso já foi feito no passado e deu muito maus resultados... É o lado de cá hipócrita? Pois é, mas a validade de um argumento não depende de quem o defende... Se aceitarmos a atitude da Rússia, estaremos a contribuir para a aceitação do princípio de que nas relações internacionais tudo o que conta são as relações de força...

R. disse...

Eu também acho que os russos e os ucranianos querem lá saber do que você ou eu pensamos, e menos ainda os habitantes da Crimeia.

O Esquerda.net, na verdade, não é suspeito de nada. O artigo é patético, como patéticas são, em geral, as posições do Bloco em matéria de política externa.

Nem a Ucrânia é a Escócia, nem a Rússia a Inglaterra, um indesmentível facto. Nas condições políticas em que se processou o referendo, considero-o relevantíssimo.

A historieta do Krustchev ainda não a vi desmentida. Portanto, até isso acontecer, com fundamento, tomo-a como boa, sem qualquer dificuldade, dada a natureza do regime e dos homens em geral.

Os barranquenhos são portugueses, e não um povo à parte. Se me falar de Olivença, ilegalmente ocupada pela Espanha, dir-lhe-ei que os oliventinos têm o direito de decidir a que país querem pertencer. E se quiserem continuar a ser espanhóis, como parece que sucede, ao fim de mais de três séculos têm mais do que direito a sê-lo; o mesmo se quisessem ser portugueses, não sei se me faço entender.

Nas relações internacionais, tudo o que conta é mesmo as relações de força: Tibete, Palestina, Saara Ocidental, etc., etc., ou até, provavelmente, a Catalunha, veremos.

Jaime Santos disse...

Não o artigo não é nada patético, basta atender ao tempo que levou desde a marcação até à realização do referendo e às mudanças de data, para se perceber que aquilo foi uma farsa rísivel. Quanto à historieta do Krutschev estar bêbado, eu pessoalmente acreditarei nela quando me apresentar uma prova tangível de tal coisa. De outro modo, só serve os interesses da Rússia e de qualquer forma os ucranianos não podem ser responsabilizados pelo suposto alcoolismo do antigo líder soviético. Relativamente a Olivença, com certeza, desde que um putativo referendo se fizesse livremente, e não sob ocupação militar de qualquer das partes. Quanto à sua opinião final, vem afinal dizer que 'might is right', é isso? Então para quê contestar as posições de força de uma Alemanha ou dos EUA? Quem tem mais força vence e estamos bem assim e não vale a pena contestar nada... E pois claro que a minha opinião não interessa aos russos, mas presumo que lhe interesse a si, ou não se daria sequer ao trabalho de responder...

R. disse...

É patético, porque é um arrazoado de sentimentos pios (em política internacional quadra bem ao Papa; ao Bloco, já não me parece).

Farsa. À época, não me pareceu farsa nenhuma; e creio que se fosse rever o filme dos acontecimento, manteria a mesma opinião.

Quanto ao Krutstchev estar bêbado ou sóbrio, isso é irrelevante, pode ser uma anedota; o que é relevante é que essa alteração foi feita. Com que legitimidade? A do politburo do PCUS, na melhor das hipóteses.

Responsabilizar os ucranianos: a 'responsabilidade' ou a 'culpa' não é para aqui chamada. As coisas são o que são, e não o que gostaríamos que fossem.
No fundo o que para mim é relevante, no actual sistema internacional, é a vontade das populações. E isto inclui o leste da Ucrânia. Se os russos daí se sentem hostilizados e podem mudar a situação a seu favor, melhor para eles, dado o calibre dos líderes político que Kiev tem parido. A Ucrânia ficará reduzida a metade? Não tem problema algum; como não haverá problema algum se a Espanha se fragmentar, ou a Bélgica ou o Reino Unido. São realidades políticas artificiais -- muito diferentes de Portugal, portanto -- e daí nem virá mal nenhum ao mundo, nem aos ucranianos ou aos castelhanos ou aos ingleses.

Might is right. Não sei onde vê isso nas minhas palavras. É uma mera constatação da realidade, em relação à qual as indignações são selectivas, por várias razões. Pelo contrário, quando falo no Tibete, na Palestina ou no Saara Ocidental, ou no Curdistão e na Tchetchénia, por exemplo, é porque os direitos dos tibetanos, dos palestinos, dos sarauís ou dos curdos estão suprimidos ou diminuídos. Não sei por que razão os russos terão menos direito à tolerância do que aqueles.

Mas a verdade verdadeira é outra: os russos têm poder, e exercem-no; os tibetanos, os palestinos, os sarauís, os curdos ou os tchetchenos não dispõem dele, e têm que se sujeitar, com a indiferença geral, quando não contentamento e alívio.

Jaime Santos disse...

Já vejo que não vamos concordar nisto, como de costume. Quanto à suposta vontade dos povos, eu, como bom liberal que sou, prefiro, tanto quanto possível, ater-me às regras do jogo. E o que conta é o direito. É ele só que garante que 'might by itself is not right'. Em particular, conta contra supostos plebiscitos organizados em condições grotescas e contra os cinismos dos homens fortes que querem apresentar o 'fait accomplit' como doutrina aceitável. Tivesse o referendo sido realizado com as garantias do escocês, e a minha opinião seria porventura diferente. Assim não é, até porque sei lá qual é a vontade real da população da Crimeia... Já quanto ao argumento sobre o princípio da universalidade, não pode servir para calar quem defende uma causa justa, porque de outro modo acabamos por ter que nos calar todos e o que se segue é a pura arbitrariedade das relações de força. Porque é que o problema palestiniano (ou a tomada do poder em Kiev pela força, se quiser) me há de impedir de dizer que Putin não tem razão? Pode até chamar-me hipócrita, mas hipocrisia é sinal de vergonha, que é um poderoso constrangimento à ação. Putin, tal como Trump e no passado Kissinger, podem dar-se, claro, ao luxo de serem absolutamente honestos... Finalmente, se concorda comigo que a historieta do Krustchev é irrelevante, porque trouxe o assunto à colação e insistiu que tomava essa história como boa?

R. disse...

Se os conjurados de 1640 se ativessem às regras do jogo, talvez hoje fôssemos como a Catalunha. Se a Catalunha se ativer às regras do jogo, não conseguirá autodeterminar-se (autodeterminação, como sabe, não significa forçosamente a independência). As regras do jogo impediram que todos os escoceses que viviam fora da Escócia fossem impedidos de decidir sobre o seu país, uma imoralidade consagrada pelas regras do jogo, porque quem define as regras do jogo é quem detém o poder para definir as regras do jogo. Portanto, nem sempre o que conta é o direito quando o direito viola o direito natural que consagra o princípio da autodeterminação dos povos.

Quanto ao referendo, organizado quer na Crimeia quer nas províncias orientais da Ucrânia, pareceu-me bastante aceitável e defensável, como já lhe disse, atendendo ás circunstàncias no terreno.

Não sabe qual é a real vontade da população da Crimeia. Resta saber se lhe interessa saber. Há muita gente que não se interessa pela real vontade da população da Crimeia, cuja maioria é russa. À Rússia parece interessar-lhe.

As causas justas nunca devem ser abafadas. Por que diabo a manutenção da Crimeia na Ucrânia é uma causa justa, é que não percebo. Porque não gosta do Putin, ou desconfia dele? Não me parece motivo suficiente, em face dos russos da Crimeia. Aliás, quando penso em Crimeia, penso em Tchekhov.

Quanto ao Krushtchev, bêbado ou sóbrio. O que é irrelevante é o seu grau de etilização, não a decisão que tomou, cujas consequências chegaram até hoje. Se falei em bebedeira, é porque não tenho simpatia nem respeito pelos secretários-gerais do PCUS, excepto o Gorbathcev. A bebedeira está lá para achincalhar.