segunda-feira, maio 23, 2016

"liberdade de expressão"

Quando Manuel Alegre desertou, na Guerra Colonial e após ter sido preso, tomou uma das poucas decisões decentes que qualquer indivíduo apanhado numa engrenagem de crime deve fazer. Porque a Guerra Colonial levada a cabo pelo governo português de então, mais não pretendeu senão sustentar uma situação de facto: a dominação de territórios alheios, com recurso à força. Governo que, recordemos, era ilegítimo, por não assentar em mandato popular e se sustentar no poder com base na fraude (eleições forjadas), e no terror (pide, legião, informadores, prisões e deportações). Em 25 de Abril de 1974 a legalidade foi reposta..
Há por aí umas excrescências que têm o desplante, ainda hoje, de defender a acção do regime anterior neste campo, com o sofisticado argumento de que aquilo "era nosso e muito nosso" -- ipsis verbis ouvido num debate televisivo a uma criatura que numa anterior campanha para as presidenciais veio acusar Manuel Alegre de traição à pátria e outras aleivosias. Não foi uma crítica, foi um insulto, e grave -- ainda para mais durante um processo eleitoral, o que até pode levantar suspeitas de ataque oportunista e facciosamente motivado, portanto com agravantes.
O homenzinho foi há pouco condenado pela Relação a indeminizar Manuel Alegre, depois de uma luminária qualquer da primeira instância ter absolvido o ofensor.
Agora, vejo com desgosto, algumas pessoas defenderem a argumentação do advogado de defesa -- pessoa respeitável, mas que, enfim, exagera --, quando diz que esta condenação é de alguma forma um condicionamento da liberdade de expressão.
Como?...
Então, ao abrigo da liberdade de expressão, podemos fazer as acusações mais vis? Se eu tiver uma moral vitoriana, e disser que determinada fulana por ter tido mais do que uma relação amorosa, é uma puta, estou a insultar, com base em preconceitos trogloditas -- e, objectivamente a provocar um dano a essa pessoa --, ou estou a exercer o meu legítimo direito à liberdade de expressão? 
É evidente que esse direito não pode colidir com outro direito, que é o da dignidade e honra de terceiros, e qualquer adolescente percebe isso (o que pelos vistos não foi percebido pelo juiz da primeira instância). E de tal maneira assim é, que qualquer energúmeno pode vir defender que Angola (ou Timor ou o Brasil) "era nossa e muito nossa". Ao fazê-lo, ofende a minha sensibilidade, e mais do que isso: atenta contra um dos direitos humanos, que é o da autodeterminação dos povos. Mas nem por isso deixará de poder defendê-lo, ao abrigo da liberdade de expressão; outra coisa será afirmar-se que esse indivíduo, cuja condição militar lhe dava um poder que a generalidade dos cidadãos não tinha, foi um traidor à nação, por contibuir para sustentar um governo usurpador e ilegítimo, imposto aos portugueses. Por muito mal que eu possa pensar dele, não me atreveria a dar esse passo, e não só por poder sofrer uma justificada acção penal, mas porque os indivíduos são muito mais complexos dentro de situações também elas complicadas.   

4 comentários:

Maria Eu disse...

Defender tais argumentos só qualifica de ignorante com aleivosias fascistas aqueles que o fazem. Resquícios colonialistas, também.
(se bem que Alegre me mexa com os nervos, nos últimos tempos. o que em nada altera a minha posição)

Ricardo António Alves disse...

Sim, claro. Isto vai para além da pessoa.

Jaime Santos disse...

O seu Patriotismo, Ricardo, é diferente do deste indivíduo. Não idolatra o Estado (tem até em relação a ele uma saudável desconfiança), não se outorga o direito de dominar outros sobre a pretensa defesa da Portugalidade e do fardo do homem branco que é civilizar os indígenas (enquanto os escraviza e lhes rouba os recursos, pois claro), não declara posse sobre nenhuma terra, nem esta, que compartilha com os seus concidadãos e também com muitos estrangeiros que decidiram cá fazer as suas vidas e só deve obediência à ordem legal democrática e não à pátria. Muito naturalmente para ele, também é um traidor. Mas, contra a pátria desse indivíduo, também eu sentiria orgulho se tivesse tido o percurso de Alegre.

Ricardo António Alves disse...

Como não o sentir?...
Abraço!