terça-feira, março 31, 2009
segunda-feira, março 30, 2009
domingo, março 29, 2009
clube de leitura - Gente de Bem
Tenho pena que ao título irónico com que Assis Esperança pretendeu dar o mote ao romance, não preferisse o nome da principal protagonista feminina, Maria Eduarda, a única personagem de carne e osso deste livro, suficientemente real para escapar ao estereótipo da burguesia sem charme nem discrição. Não sei se alguma vez tal lhe passou pela cabeça, mas se acaso sucedeu, seria natural que houvesse escrúpulo em titular a narrativa com nome feminino, depois de, nesse ano de 1938, Ana Paula, de Joaquim Paço d'Arcos, ter recebido o principal galardão literário para um romance português que então se atribuía -- o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências --, com o frisson adicional do escândalo resultante da sua rejeição pelo autor, tais as reservas que o júri pusera à distinção que ele próprio resolvera outorgar...
Em Gente de Bem, «crónica de negócios», como o qualifica Esperança no antelóquio, tem no centro a família de Ataíde e Melo, homem de comércio & indústria que já conhecera melhores dias, na época de oportunidades criadas pela Grande Guerra. Oportunista, acaba por cair em desgraça, recorrendo ao auxílio interesseiro dum antigo sócio, o Montargil, outro manipulador bem sucedido a quem a fortuna continuava a sorrir. A Senhora de Ataíde e Melo, doméstica burguesa, interesseira e desinteressante, presidia, no tempo de prosperidade a uma liga mundana de beneficência; o filho de ambos é um escroque e um sobreportegido da mãe; Maria Eduarda é a única figura íntegra desta família lamentável.
Gente de Bem é um romance datado, no sentido mais restritivo do termo. A crítica às aparências e aos falsos valores burgueses no seio familiar já fazem pouco sentido, embora, de forma localizada, viceje ainda por aí muita hipocrisia moralista; o negociante burlão e pouco escrupuloso, é algo caricatural, não obstante durante a leitura me tenham aparecido os espectros dos oliveiraecostas & outros madoffs.
O principal interesse da narrativa reside, quanto a mim, na questão feminina, na forma como Esperança trata essa condição na primeira metade do século XX. A mulher como ser dependente e apendicular do marido ou da família, fora da qual não tem possibilidade de subsistir, o que é fautor de equívoco, transigência e/ou falsidade. A mulher da classe média portuguesa de então era educada para ser uma fada do lar, esposa e mãe. Poucas eram as que tinham as competências para sobreviver de forma autónoma e emancipada quando atingidas por adversidades como a viuvez ou mesmo quando quisessem imprimir-se a dignidade de recusarem os escolhos de muitos casamentos, dos maus tratos à infidelidade. Quase todas se resignavam.
Nunca sabemos, significativamente, o nome próprio da Senhora de Ataíde e Melo, como se fora dessa condição esponsal ela não existisse; o mesmo se passa com uma viúva de um sócio de Ataíde e Melo, homem honrado vítima das falcatruas daquele e que se suicida em razão da mácula que caiu sobre o seu nome; o sócio, num assomo de escrúpulo, recolhe a viúva, não sem antes atribuir responsabilidade pelo desaire ao malogrado António da Silva. Também dessa não conhecemos o nome próprio, mas sabemos que o destino das viúvas sem bens ou descendência era em muitos casos o da caridade. De resto, muitas mulheres em idade de casar que tivessem o infortúnio de perder o pai -- o chefe de família -- relativamente jovens, eram levadas a procurar um casamento de interesse, por vezes com homens mais velhos, seguro de vida para si e para as mães. Éo que se passa com Maria Leonor, uma vizinha e confidente de Maria Eduarda, que psicologicamente não resiste a essa situação.
Maria Eduarda -- é ela, repito, a figura do livro --, jovem mulher, interessante e ainda virgem -- o que valoriza a mercadoria... -- é objecto duma impudente tentativa de transacção matrimonial entre os pais e o dinheiroso Montargil, com o fito, claro está, da recuperação da boa situação em que outrora viveram, além do bónus adicional de uma interessante colocação profissional para o irmão de Maria Eduarda.
Este é pois o tema de Gente de Bem, mas também ele, felizmente, em boa parte já ultrapassado pela realidade social de hoje: a denúncia da situação precária de uma larga faixa da população feminina portuguesa. Por alguma razão, Assis Esperança é, com Ferreira de Castro, considerado um dos precursores do neo-realismo (seja lá o que isso signifique...)
Mas Gente de Bem sobrevive mal ao tempo que por ele passou. A espessura e a verdade de Maria Eduarda como símbolo da difícil situação da mulher portuguesa são inegáveis. Insuficientes, porém, para resgatar este terceiro romance do escritor ao esquecimento que sobre ele se abateu.
Incipit: Boa tarde a V. Ex.ª, sr. Director!
Logo que soaram, na escada, uns passos firmes, ritmados ele abiu, solene, as portas envidraçadas do vestíbulo do escritório, e curvou-se à passagem de Ataíde e Melo. Para que o sr. Director o estimasse, inventava, todos os dias, delicadezas inéditas, cumprimentos, curvaturas de espinha. Corria a abrir uma e outra porta, seguia-o, humílimo, até ao limiar do gabinete da Direcção, à espera de uma ordem, dum sorriso. Ali, outro contínuo desembaraçaria sua ex.ª dos seus pesados abafos, tresandando riqueza.
A capa é de Roberto Nobre.
Uma big band para o Manda Chuva
sábado, março 28, 2009
sexta-feira, março 27, 2009
Antologia Improvável #366 - Maria Pimentel Montenegro
OS TEUS OLHOS
Tenho diante dos meus
só os teus olhos, mais nada...
Há chama verde de estrelas,
há lezírias outonais,
pinceladas de aguareles,
nos teus olhos verdes garços.
E há grãos de trigo estivais,
que hão-de ser o pão doirado,
na minha fome de amar.
Há procelas e bonança
e résteas nuas, de abrolhos
nos teus olhos cor de esperança,
com longes de verde mar.
Prados e vales profundos
espelham-se nos teus olhos
com seus rios a cantar.
Nos teus olhos há dois mundos;
nos meus... apenas os teus!
Os teus olhos são dois sóis
que me trazem incendiada.
Teus olhos são labareda,
de noite acendem faróis
na minha rota apagada.
Tenho diante dos meus
só os teus olhos, mais nada!...
Asa Ferida
Tenho diante dos meus
só os teus olhos, mais nada...
Há chama verde de estrelas,
há lezírias outonais,
pinceladas de aguareles,
nos teus olhos verdes garços.
E há grãos de trigo estivais,
que hão-de ser o pão doirado,
na minha fome de amar.
Há procelas e bonança
e résteas nuas, de abrolhos
nos teus olhos cor de esperança,
com longes de verde mar.
Prados e vales profundos
espelham-se nos teus olhos
com seus rios a cantar.
Nos teus olhos há dois mundos;
nos meus... apenas os teus!
Os teus olhos são dois sóis
que me trazem incendiada.
Teus olhos são labareda,
de noite acendem faróis
na minha rota apagada.
Tenho diante dos meus
só os teus olhos, mais nada!...
Asa Ferida
quinta-feira, março 26, 2009
JornaL
Lido hoje no JL de ontem:
Ricardo Menéndez Salmón: «Ser mais sábios ou estar melhor dotados para a beleza, não nos faz melhores pessoas. Se o Inferno existisse, estaria cheio de bibliotecas.» (entrevista a Rita Silva Freire, a propósito da publicação de A Ofensa, Porto Editora);
Maria Teresa Horta: «Por mais que tentassem não conseguiram "apagar-me". Porque sou uma poetisa. Renasço sempre como uma Fénix. E tomem: aí está a minha obra» (depoimento a Maria Leonor Nunes, a pretexto da recente edição da Poesia Reunida, na Dom Quixote, num excelente dossier que lhe é dedicado);
Teresa Sousa de Almeida: «[...] o caso de MTH [Maria Teresa Horta] é exemplar porque o silêncio de que foi vítima foi notório e excessivo. Por ser mulher? Por ser feminista? Por ser uma das autoras das Novas Cartas Portuguesas? Por ter ousado nomear o desejo? É difícil dar uma resposta fundamentada, como acontece em todos os casos de silenciamento e exclusão, uma vez que nunca existe um único responsável, mas uma espécie de cadeia eficaz de várias formas de censura.»
António Carlos Cortez: «[...] poesia e acto crítico são (devem ser e ter) um entendimento da cultura como independência. Os críticos de poesia (muitos deles poetas) não serviam um espírito de capelinha, hoje evidente no modo como às claras, alguns críticos apenas exercem a sua actividade relativamente aos poetas de uma determinada editora, ou de determinada corrente poética.» (recensão a A Vida da Poesia, de Gastão Cruz, na Assírio & Alvim).
quarta-feira, março 25, 2009
JornaL
Os trabalhistas de Ehud Barak juntaram-se à direita populista, à extrema-direita laica e aos partidos religiosos no governo de Israel. Tinham alternativa? Penso que não, dadas as responsabilidades históricas desde a fundação do país. Pode ser-lhes fatal? Pode.
Pela calada da noite, nas costas do povo, essa entidade espúria que dá pelo nome de Refer encerra as linhas ferroviárias do Tâmega e do Corgo. De acordo com o Público, «a companhia alega necessidade de reparação, mas não tem projectos nem calendarização das obras». Agradece-se ao ministro Lino ou à secretária Vitorino o competente chuto na administração, para o olho da rua e com justa causa.
terça-feira, março 24, 2009
Antologia Improvável #365 - João Cabral de Melo Neto (2)
IMITAÇÃO DA ÁGUA
De flanco sôbre o lençol,
paisagem tão marinha,
a uma onda deitada
na praia te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha,
que contivesse um momento
seu rumor de fôlhas líquidas.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sôbre a própria pupila.
Uma onda que parara
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha,
por horizontal e fixa,
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
naquela praia finita
a natureza sem fim
do mar de que participa
e em sua imobilidade
que difícil se equilibra,
o dom de se derramar
que as ondas faz femininas,
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
Quaderna / Antologia da Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
De flanco sôbre o lençol,
paisagem tão marinha,
a uma onda deitada
na praia te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha,
que contivesse um momento
seu rumor de fôlhas líquidas.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sôbre a própria pupila.
Uma onda que parara
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha,
por horizontal e fixa,
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
naquela praia finita
a natureza sem fim
do mar de que participa
e em sua imobilidade
que difícil se equilibra,
o dom de se derramar
que as ondas faz femininas,
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
Quaderna / Antologia da Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
segunda-feira, março 23, 2009
caderninho
Está ao teu alcance ser invencível, desde que não te aventures em nenhum concurso cuja vitória não dependa de ti. / Considera pois, ao ver um inimigo com mais honrarias do que tu, mais poderoso ou que de qualquer outro modo goze de maior renome, que estás a ser levado pela ilusão. É que, se de facto a essência do Bem é algo que depende de nós, não há então lugar para a inveja ou para o ciúme. E não desejarás ser general, pretor ou cônsul, antes e só um homem livre. Para tal há um só caminho: o desprezo por tudo quanto de nós não depende. Epicteto
A Arte de Viver (tradução de Carlos A. Martins de Jesus)
domingo, março 22, 2009
quadrinhos
Hergé, Aventuras de Joana, João e do Macaco Simão -- O Vale das Cobras (Difusão Verbo); Edgar Pierre Jacobs, O Raio U (Livraria Bertrand); Edgar Pierre Jacobs, Blake e Mortimer -- O Segredo do Espadão I - A Perseguição Fantástica (Livraria Bertrand); Hergé, Tintin au Pays des Soviets (Casterman); Spirou, Os Herdeiros (Editora Arcádia)
figuras de estilo - Abel Botelho
E o mesmo homem pequenino e curvo, logo cobrada a confiança, escancarava a porta para o interior da sua misérrima toca. -- Um acanhado recinto, surrado e negro, simultaneamente sala e cozinha, atramochado de coisas sem brilho, pelintras, reles, a mais formal negação do asseio e do conforto. Em cima da mesa havia um candeeiro de petróleo, de folha, com a chaminé partida. Junto à lareira, sobre um a arca, enovelava-se uma velha com um gato ao colo. E num recanto à esquerda, protegida por um ténue resto de cortina de chita, farpada, correndo sobre uma corda, jazia uma enxerga ignóbil afogada num monte de farrapos, entre os quais aflitivamente se debatia estrebuchando, arfando, como tenalhada nas garras imateriais dalgum pesadelo, uma rapariguita apenas núbil, esgalgada, anémica, o cabelo raro e sem brilho, afilado e branco o nariz, e uns grandes olhos de cor de cinza no rosto oblongo, mordido das bexigas.
Amanhã
sábado, março 21, 2009
Antologia Improvável #364 - Liberto Cruz
sexta-feira, março 20, 2009
quinta-feira, março 19, 2009
escrever na areia - os monstros, nós
N'O Inimigo Público de hoje, o «Toon» de António Jorge Gonçalves ilustra perfeitamente a nossa triste condição. O hediondo Fritzl, o tal «monstro de Amstetten» acossado por personagens terríficas, esses repórteres da palavra & imagem, predadores na montaria quotidiana à tragédia de que nos nutrimos -- nós, não já cidadãos, mas consumidores de "notícias" que nos babamos com a derradeira tragédia, com o último morticínio, todos os dias, pelo menos, à hora do jantar.
quarta-feira, março 18, 2009
terça-feira, março 17, 2009
correspondências - Anselmo José Braamcamp
segunda-feira, março 16, 2009
Antologia Improvável #363 - Hilda Hist
Não sou casado, senhora,
Que ainda que dei a mão
Não casei o coração.
BERNARDIM RIBEIRO
Seria menos eu
Dizer-vos, senhor meu,
Que às vêzes agonizo
Em vos vendo passar
Altaneiro e preciso?
Ai, não seria.
E na mesma calçada
Por onde andais, senhor,
Anda vossa senhora.
E sua cintura alada
Dá-me tanto pesar
E me faz sofrer tanto
Que não vale o chorar
E só por isso eu canto.
Seria menos eu
Dizer-vos, senhor meu,
Por serdes vós casado
(E bem por isso mesmo)
É que sereis amado?
Ai, sim, seria.
Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor / A Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
Que ainda que dei a mão
Não casei o coração.
BERNARDIM RIBEIRO
Seria menos eu
Dizer-vos, senhor meu,
Que às vêzes agonizo
Em vos vendo passar
Altaneiro e preciso?
Ai, não seria.
E na mesma calçada
Por onde andais, senhor,
Anda vossa senhora.
E sua cintura alada
Dá-me tanto pesar
E me faz sofrer tanto
Que não vale o chorar
E só por isso eu canto.
Seria menos eu
Dizer-vos, senhor meu,
Por serdes vós casado
(E bem por isso mesmo)
É que sereis amado?
Ai, sim, seria.
Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor / A Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
domingo, março 15, 2009
o tempora! o mores!
Femme Femme Femme, dos melhores blogues que conheço, é obrigado a ostentar aquela advertência sonsa do blogger por causa de pruridos dum eunuco qualquer. Esta beatice pudica incomoda-me grandemente, e hoje é um dos dias em que lamento que o Abencerragem seja um blogue familiar, inibindo-me de postar aqui algumas imagens de que gosto bastante, e que seriam dedicadas a esses patetas.
sábado, março 14, 2009
caderninho
sexta-feira, março 13, 2009
Caracteres móveis - Graham Greene
quinta-feira, março 12, 2009
Antologia Improvável #362 - Orlando Neves
quarta-feira, março 11, 2009
caderninho
A amizade tranquila e uma pitada de bom senso «a duo» substituem com portentosa vantagem, sob o ponto de vista da felicidade conjugal, as vibratilidades ansiadas da paixão. O amor, levado ao rubro, faz devastações tremendas no matrimónio! Já dizia Disraeli que todos os seus amigos que tinham casado por paixão ou estavam divorciados ou batiam nas mulheres... Bourbon e Meneses
Novos Solilóqios Espirituais
Miles
Grande Jóia também quis -- quis Miles; e eu quisera também dar-lhe uma gema. Mas o YouTube não me deixa.Vi-lhe também um brilhante muito bem aposto Fica assim com uma pérola mais acessível...
terça-feira, março 10, 2009
Figuras de estilo - José Régio
Como homem culto e moderno, não deixo de ver eu mesmo a tontaria, o ridículo, o grotesco, de hábitos e crenças que os mais dos homens cultos e modernos assimilarão a puras superstições de primários. O certo, porém, é que algo de muito fundo em mim, de muito obscuro ou íntimo por enraizado em zonas que se esquivam aos nossos raciocínios e observações, -- algo que sinto independente de quaisquer influências externas -- protesta contra essa interpretação.
Confissão dum Homem Religioso
segunda-feira, março 09, 2009
domingo, março 08, 2009
clube de leitura - Os Meus Amores
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Publicações Europa-América - Livros de Bolso, 3.ª edição, Mem Martins, s. d.
Livro de 1891, escrito por um fugaz homem de letras, magistrado de profissão, contemporâneo relacional de Camilo Castelo Branco -- que, de certa forma, o apadrinhou -- e de outros nomes da arte oitocentista, a quem dedica algumas das 23 narrativas que o volume encerra: Fialho de Almeida, Alberto Braga, Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro, Emídio Navarro, António de Albuquerque, Conde de Arnoso, Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Tenho dúvida se a leitura de Os Meus Amores, no seu conjunto, será ainda apelativa. É-o certamente para quem não dispense um estilo ao mesmo tempo correcto e enxuto, sem autodeslumbramentos nem exibições gratuitas de virtuosismo. Neste caso, o livro de Trindade Coelho terá sempre de ser tido em conta. Mas eu sinto-me um pouco dividido, pois se, enquanto leitor, não dispenso o estilo, o grande estilo, quero sempre algo mais; e Os Meus Amores, usando-se de um realismo puro (isto é, sem carregar demasiado nas tintas -- embora já depois de ter escrito esta nota, numa sessão de um clube a que pertenço tenha sido dito que há uma excessiva idealização do campo, no que estou de acordo, o que torna o meu realismo puro de atrás num realismo deslavado por tintas mais suaves...), (Os Meus Amores, dizia) corre o risco de, mais de cem anos depois da primeira edição, ser apreendido essencialmente como texto documental, o que é pernicioso para uma obra de arte. A verdade é que muitos destas narrativas tratam dum país que já não existe, duma sociedade que desapareceu e formas de pensar que, teimando em subsistir em alguns buracos espalhados por aí e nos buracos de algumas cabeças que vão circulando, estão irremediavelmente condenadas pela sociedade moderna e mediática em que vivemos -- gostemos ou não queiramos --, em todas as aldeolas e lugarejos, de norte a sul.
Este o aspecto que, em meu entender, mais fragiliza o livro, hoje. Mas, por outro lado, surge um conjunto de contos que espelha os sentimentos humanos de todas as épocas: o amor, o remorso, a abnegação, a culpa, o altruísmo -- a vida e a morte. Aí, Trindade Coelho chega a ser grande. «Vae victis!» (pp. 175-179) é uma pequena jóia, com a sua toada inexorável: Luísa, a jovem que perde a inocência quando Tóino lhe pergunta, como se estivesse a pedir as horas, se eles relógio usassem...: «- Dás-me um beijo, Luísa?» -- deixando a pobre pequena num turbilhão emocional. Ao longo das breves cinco páginas por que se estende o conto, a pergunta faz-se onze vezes, dez das quais ressoando a cabeça de Luísa, numa cadência irreversível, que se esfuma quando ela se entrega e lhe entrega o beijo. Uma pequena obra-prima do conto português, indispensável em qualquer antologia que dele se faça, e que, com mais uns quantos, resgatam o livro dum esquecimento a que poderia estar votado, sem o merecer.
sábado, março 07, 2009
Antologia Improvável #361 - Faustino Xavier de Novais
NOBREZA
--------------------
E mostra com a mão avara
Os ossos de dez narizes
Que seu quinto avô cortara.
N. TOLENTINO
Dom Vicêncio d'Alfama é um pateta,
E os vícios todos tem, mais depravados;
Mas sustenta que os seus antepassados
Tocavam, d'honra e do saber, a meta:
Seu pai, que era fidalgo, foi poeta,
Sobrinho de dois grandes magistrados;
Seu avô era grande entre os letrados,
Foi santa sua avó, sendo discreta.
Seu bisavô paterno, Dom Gonçalo,
Quando, cheio de galas, vinha à praça,
Em cada cidadão tinha um vassalo:
E se nobreza tanta, assim, se enlaça,
É Dom Vicêncio igual ao meu cavalo,
Que bom preço requer, se é boa a raça.
Sátiras
(edição de Viale Moutinho)
--------------------
E mostra com a mão avara
Os ossos de dez narizes
Que seu quinto avô cortara.
N. TOLENTINO
Dom Vicêncio d'Alfama é um pateta,
E os vícios todos tem, mais depravados;
Mas sustenta que os seus antepassados
Tocavam, d'honra e do saber, a meta:
Seu pai, que era fidalgo, foi poeta,
Sobrinho de dois grandes magistrados;
Seu avô era grande entre os letrados,
Foi santa sua avó, sendo discreta.
Seu bisavô paterno, Dom Gonçalo,
Quando, cheio de galas, vinha à praça,
Em cada cidadão tinha um vassalo:
E se nobreza tanta, assim, se enlaça,
É Dom Vicêncio igual ao meu cavalo,
Que bom preço requer, se é boa a raça.
Sátiras
(edição de Viale Moutinho)
caderninho
Em geral não se imagina Platão e Aristóteles senão com grandes togas e como personagens sempre sérias e graves. Eram pessoas corteses, que riam como os outros com os seus amigos: e quando fizeram as suas leis e os seus tratados de política foi a brincar e para se divertirem. Era a parte menos filosófica e menos séria da sua vida. A mais filosófica era viver simples e tranquilamente. Blaise Pascal
Do Livro dos Amigos, de Hugo von Hofmannsthal (tradução de José A. Palma Caetano)
sexta-feira, março 06, 2009
Figuras de estilo - Fernando Lopes-Graça
quinta-feira, março 05, 2009
quarta-feira, março 04, 2009
Antologia Improvável #360 - Fernando Pessoa Ferreira
PEQUENA ODE DOMÉSTICA
Calor do pão na manhã,
crescendo manso e dormente.
No soalho se desmancha
doce luz inconsistente,
com suas facas de mel
cortando o silêncio quente.
Os ombros dela na cama,
como narcisos cansados
num florescer transparente.
Os Instrumentos do Tempo / A Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
Calor do pão na manhã,
crescendo manso e dormente.
No soalho se desmancha
doce luz inconsistente,
com suas facas de mel
cortando o silêncio quente.
Os ombros dela na cama,
como narcisos cansados
num florescer transparente.
Os Instrumentos do Tempo / A Nova Poesia Brasileira
(edição de Alberto da Costa e Silva)
terça-feira, março 03, 2009
caderninho
Uma vez que não se pode ser universal e saber tudo o que se pode saber sobre tudo, é necessário saber um pouco de tudo. Porque é muito mais belo saber qualquer coisa de tudo do que saber tudo só de uma coisa. Esta universalidade é a mais bela. Se se pudesse ter as duas, melhor ainda, mas, se há uma escolha a fazer, tem de se escolher aquela, e o mundo sente-o e assim o faz, porque o mundo é um bom juiz muitas vezes. Blaise Pascal
Pensamentos (tradução de Américo de Carvalho)
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