domingo, fevereiro 17, 2008

Darkness On The Edge Of Town




Que têm em comum John Ford e Raoul Walsh, Nicholas Ray e Elia Kazan, Sam Peckimpah e Samuel Fuller, Robert Altman e Martin Scorcese -- para além do cinema e da condição de americanos, por naturalidade ou adopção? Que pontos de contacto existem entre John Steinbeck, Dashiell Hammet e Jack Kerouac -- apesar do destino comum de diferentes escritas na Norte-América? E em Woody Guthrie e Bob Dylan, Elvis Presley e Eddie Cochran, John Fogerty, Neil Young e Tom Petty, trovadores e heróis da guitarra do folk-rock no Novo Mundo? Correspondem todos e cada um a uma certa ideia que fazemos da América -- e todos eles (e mais alguns), uma e outra vez, foram trazidos à baila de cada vez que um crítico se referiu ao trabalho do Boss.
A música de Springsteen, compromisso entre a tradição guthriana de intervenção e o rock and roll expressão do som e da fúria, é autêntica e viril. Expressões como «realismo social» (David Sinclair, Rock on CD, Greenwich, 1995) podem aplicar-se-lhe perfeitamente; e talvez o melhor exemplo seja este disco, de 1978, editado entre o também ele admirável Born To Run (1975) e o excessivo, e quanto a mim, parcialmente falhado The River (1980).
As palavras, nunca são despiciendas neste autor. Em Darkness on The Edge Of Town estamos em pleno imaginário norte-americano: os grandes subúrbios pejados de rebeldes desenquadrados (Badlands, you gotta live it everyday, / Let the broken hearts stand / As the price you've gotta pay, / We'll keep pushin' till it's understood, / And these badlands start treat us good -- «Badlands»); as autoestradas dos convertibles, do on the road, coast to coast (On a rattlesnake speedway in the Utah desert / I pick up my money and head back into town /Driving cross the Waynesboro county line / I got the radio on and I'm just killing time / Workin all day in my daddy's garage / Driving all night, chasing some mirage / Pretty soon littke girl I'm gonna take charge. -- «The Promised Land»); as fábricas e o struggle for life do operariado, certas composições de Springsteen transportam-nos para uma atmosfera pré-New Deal... (End of the day, factory whistles cries, / men walk through these gates with death in their eyes, / And you just better believe, boy, / Somebody's gonna get hurt tonight, / It's the working, the working, just the working life. -- «Factory»). O «vício estético» de Springsteen -- na feliz expressão de Laurent Chalumeau, crítico da Rock & Folk -- está também presente em textos de pulsão erótica (I've been working real hard, trying to get my hands clean, / Tonight we'll drive that dusty road from Monroe to Angeline, / To buy you a gold ring and pretty dress of blue [...] -- «Prove It All Night». «Noite» e «trevas» são presenças constantes na estesia springsteneana. Numa das faixas mais interessantes do álbum, «Candy's Room», a tensão inicial da música atinge os limites do suportável na voz cava e espectral de Springsteen, acompanhada apenas das percussões do piano e dos pratos da bateria (In Candy's room, there are pictures of her heroes on the wall, / But to get to Candy's room, you gotta walk the darkness of Candy's hall [...]), tensão abafada até à explosão da guitarra, seguida da dos tambores.
Muito bem acompanhado pela E Street Band, com destaque para o saxofonista Clarence Clemons e o pianista Roy Bittan. Steve Van Zandt surge como segundo guitarrista, em apoio do Boss. «Adam raised A Cain» e «Candy's Room» são dois exemplos de como o álbum está bem servido neste capítulo.
Um verdadeiro clássico, em suma.

4 comentários:

ana v. disse...

Vizinho, deixe que lhe diga como aplaudo estes novo tom do Abencerragem, com uma marca de autor bem mais visível. Estas críticas musicais, por exemplo, são preciosos ensinamentos para mim. Já gostava das suas escolhas, agora gosto ainda mais das palavras que as acompanham.
Um beijo

Ricardo António Alves disse...

Obrigado, vizinha, é muito generosa. Mas temo desapontá-la, pois estes espraianços (e não espalhanços, espero...) são pouco frequentes. Não se esqueça, está num blogue preguiçoso.
Um beijo para si também.

ana v. disse...

É pena, vizinho, gosto de vê-lo espraiar-se. Espero que, de vez em quando, se esqueça de ser preguiçoso...

Ricardo António Alves disse...

Tomei boa nota, vizinha.