segunda-feira, janeiro 01, 2007

Uma leitura da «presença» #4

«Nunca será inútil repetir que o que mais interessa numa obra de Arte... é a própria obra de Arte.» (12) Era o primado da arte que Régio defendia nesta sentença; ou como claramente, por outras e mais contundentes palavras, advertiria Casais Monteiro, a propósito da presença: «aqui não se servem causas: faz-se e trata-se de literatura e de arte.» (13) Por demais óbvias que estas posições pareçam, deve, no entanto, dizer-se que eram formuladas num contexto de hegemonia (de poder efectivo ou de influência na acção) de sectores não complacentes com a ideia de a expresão artística dever estar isenta de qualquer subordinação. Afirmações de independência que remetiam o autor presencista para as margens da oficialização cultural do Estado Novo, com uma política nacionalista e de tentativa de domesticação dos intelectuais, afastando-o também do neo-realismo oficial, emergente em meados da década de trinta. Seria, contudo, demasiado simplista e pouco rigoroso inferir que a publicação rejeitasse qualquer manifestação artística de tendência, quer «ascendente» ou «emancipadora» (para empregar termos de Plekhanov, posteriormente vulgarizados pela teorização neo-realista (15)) quer o seu oposto, alinhadamente reaccionária:
«Sim, a presença defende a arte pela arte, mas a arte pela arte da presença nada tem com o "egoísmo da torre de marfim do esteta ante o incêndio do vizinho ali defronte." A presença tem sido, nesse capítulo, ora muito mal compreendida, ora muito desconhecida, ora muito caluniada. Contra o que a presença luta e lutará, é contra as opressões que, ou dos lados da Alemanha e Itália ou dos da Rússia, pesam sobre a livre consciência do artista. A presença não admite que se imponham temas, estilos, modelos, opiniões, preocupações a um artista. Faça cada um o que melhor sabe, pode, quer -- e fará o melhor possível. Eis o que diz a presença, revoltando-se contra os excessos dos nazis e dos comunistas.» (16)
Toda a vida andou o poeta do Cântico Negro a afirmar que a arte podia ser tudo, desde que fosse arte, isto é, genuína, sincera, autêntica -- viva, numa palavra. Podia inclusive ser obra de propaganda: não se lhe recusaria uma categoria superior (17), desde que cumprisse o que devia ser a sua finalidade última: a «emoção estética». (18)

(12) José RÉGIO, «Uma peça de Pirandello (sei personaggi in cerca de auctore)», presença, n.º 7, Coimbra, 8 de Novembro de 1927, p. 7.

(13) Adolfo Casais MONTEIRO, «Nós, os porta-vozes de uma estética subjectiva até à desumanização...» [s. d.], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 31.

(14) Ver Jorge Ramos do Ó, «Salazarismo e cultura», in Joel SERRÃO e A. H. de Oliveira MARQUES, Nova História de Portugal, vol. XII, Fernando ROSAS (coord.), Portugal e o Estado Novo (1930-1960), Lisboa, Editorial Presença, 1992, p. 409.

(15) «[...] o talento de qualquer verdadeiro artista é grandemente reforçado se for penetrado pelas grandes ideias emancipadoras do nosso tempo.» PLEKHANOV, A Arte e a Vida Social, trad. de Ana Maria Rabaça, Lisboa, Moraes Editoes, 1977, p. 72.

(16) José RÉGIO, carta a Roberto Nobre, Portalegre, Junho de 1936, Boletim, n.º 4-5, Vila do Conde, Câmara Municipal / Centro de Estudos Regianos, 1999, pp. 31-32.

(17) A propósito de A Revolução de Maio, de António lopes Ribeiro, o director da revista escreveu: «A propaganda e a arte podem não ser inimigas. Basta que profundamente se conjuguem na obra realizada a crença numa doutrina e a emoção artística.» José RÉGIO, «Cinema português», presença, n.º 50, Coimbra, Dezembro de 1937, p. 12.

(18) José RÉGIO, «Literatura livresca e literatura viva», presença, n. 9, Coimbra, 9 de Fevereiro de 1928, p. 1.

(continua)


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