347 East 17th St.
New York City
Sábado 29 de Novembro, 1947
Querido Mário Neves:
Aqui vai o resto (aliás começo) do Natal do Dr. Cosby, com as minhas bençãos apostólicas para VER & CRER. Oxalá chegue a tempo. Telegrama recebido ontem de manhã, e atirei-me ao trabalho. Cortei, esfacelei, transpus, rangi os dentes. Aí vai. Só lhes suplico que revejam com cuidado. De longe não posso fazer mais! Já sabe o carinho que tenho pela revista e por vocês. Se mais pudesse mais faria. -- Recebi com surpresa há 3 dias o número de Setembro, onde vejo um artigo sobre a América: nem posso crer! Lápis cuidadoso, certeiro. Já lhe mandarei outras coisas, quando houver ensejo.
Sendo V. a única pessoa com quem mantenho uma correspondência frutífera, ainda um dia lhe hei-de confiar outros manuscritos, a que não sei o destino que hei-de dar. Quero que saiba que nem toda a minha literatura é «mórbida»... Mas em Portugal creio que até o humorismo é acolhido com um franzir de testas talmúdicas, ideológicas, de padres-mestres possuídos de teorias e teoremas -- mais do que de vida e senso criador. Porque é que eu não faço outras coisas? -- Porque não posso pôr nelas a verdade e a sinceridade que ponho nestas, e a meia-verdade é-me odiosa. A meia-verdade e a secura, a ausência de verdadeiro tutano é humor nas obras. Fatigam-me e aterram-me as coisas nossas que leio: caracteres falsos, de papelão, falando uma linguagem que não existe, etc. Laissons çà!
Você acha que se cada um dos 8000 leitores do V&C pagasse UM TOSTÃO pela minha história -- a quinta parte do que paga por uma zona no eléctrico, e do que paga pelo Diário de Notícias -- pagaria de mais? Pois bem, se cada um pagasse a quarta parte de UM TOSTÃO (quantia impensável!) eu receberia 200 escudos, ou seja quatro dólares: com o que quase poderíamos comer um jantar de família num restaurante popular. E ainda me dizem que não vale a pena ser Escritor! Houve um rei shakespeareano que bradou «Dou o meu reino por um cavalo!» O escritor português pode gritar (se ainda tiver forças) «A minha vida por um almoço!» -- Mas será melhor a vida do director-proprietário?... (Só o telegrama lhe custou o valor de um artigo!)
Não sei que mais tinha a dizer-lhe. Fica para a próxima. Podendo ser, mande-me o conto (cortado da revista) por avião, para que eu o receba mais cedo, como carta. Os aviões não transportam matéria impressa, e por navio tudo leva meses!
Abraços muitos e colectivos
Miguéis
Corte sem hesitar o que entender!
M.
In Mário Neves, José Rodrigues Miguéis -- Vida e Obra
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