quinta-feira, dezembro 26, 2024

o que está a acontecer

«-- Compreende? / Digo que sim, que compreendo, intrigado pela confidência e aquele olhar que mostra o desespero de quem anseia por absolvição. Mas custa a acompanhá-lo no emaranhado de casos e pensamentos, de mágoas, o comezinho misturado ao trágico, a indiferença de tornar simultâneos o passado e o presente.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (1903)

«A torre -- a porta da Sé com os santos nos seus nichos --, a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo.» Raul Brandão, Húmus (1917)

«Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida. / O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Camões, fidalgo ou plebeu, cortesão ou homem da rua, Céladon de moças da rainha ou fragoeiro de rascoas, morigerado ou amigo da arruaça -- tudo é pouco à face das Rimas e muito mais dos Lusíadas. O que me não consente o ânimo é que, havendo-me debruçado sobre o mar de dor, fel e vinagre, que foi a sua existência, sem tentar olhar até os limbos, se dê o processo por concluso, julgado como está por Caifaz. Então o poeta "viveu e morreu pobre e miseravelmente", isto é, réprobo ao professor, ao poeta do Paço, ao sacerdote, ao áulico, e havíamos de aceitar que todos eles, inclusive os homens de bem, apagassem a torpeza cometida, que mais não fosse a torpeza de tê-lo ignorado, e viessem à praça exibir-se como seus epígonos? O mesmo seria aceitarem as almas crentes que a cambada que julgou Cristo, fariseus, saduceus, potestades do sinédrio e da sinagoga, saíssem à varanda a limpar as mãos na toalha branca, ilibando-se:
-- Vejam, Vejam! Não o matámos. Isso foi um pesadelo. Deixámo-lo bem ágil, bem fresco, bem disposto subir ao Céu.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)