domingo, outubro 04, 2020

a arte de começar

«Desde o inverno que Jaime andava a falar na visita do seu sobrinho Luís. Viria pelas férias, vencido o segundo ano de Medicina. Maria Antónia esperava sem impaciência a vinda do intruso, que depois de quatro anos de casada vinha alterar os hábitos do seu lar. Sabia que essa visita daria prazer a Jaime, e só por isso sentia ânimo para receber um senhor que ela sabia exigente e até um pouco malcriado. Lembrava-se vagamente de ter visto, pelo seu casamento, um rosto comprido de menino obstinado, onde brilhavam uns olhos escuros e zombeteiros e se desenhavam uns lábios talvez demasiado grossos  de expressão desdenhosa. Depois disso só o vira em fotografia. Os traços tinham-se-lhe adensado; deixara de ser o menino birrento para ser um homenzinho que parecia esperar muito da vida. Conservava os espessos lábios desdenhosos sobre um queixo voluntarioso, que teria no rosto o lugar principal, tanto se erguia altivo e sobranceiro, se não foram os olhos de extraordinária expressão, agora um pouco mais sérios, mas sempre vivíssimos e perfurantes, como se exigissem das pessoas ou das coisas sobre que pousavam a revelação dos segredos mais íntimos.»

João Pedro de Andrade (1902-1974), A Hora Secreta (1942)

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