sábado, outubro 17, 2020

"O Cânone" de quem? -- do que falta numa lista (1)

Acabo de ver a lista de cinquenta nomes assinalados como o cânone literário português, na opinião de três académicos: António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen. Lista bastante defendida no anúncio da editora como nas declarações ao Obervador.* Antecipando-se à discussão que aí virá, espera-se.

As escolhas são sempre louváveis, desde que honestas e justificadas, porque representam (ou podem representar…) a coragem de escolher como a de excluir. O título, porém, é de menos, pois mesmo sem me pronunciar sobre o que ainda não li, já o posso fazer sobre as ausências. E há ausências de peso, que absolutamente não poderiam verificar-se numa obra que se arroga a pretensão de estabelecer o dito cânone, se o título é para levar a sério. Aliás, o mesmo Observador, com  desenvoltura jornalística, anunciara que o cânone viria aí, perguntando(-se): "Quem são os grandes escritores que formam o cânone da literatura portuguesa?"

Ora, enquanto leitor não totalmente destituído ou desinformado, considero que é um jogo de apostas avançar com nomes que tenham publicado há menos de cinquenta anos; mas o que me parece temerário é trazer para o cânone autores que tenham entrado por este século adentro. Diria até que todos quantos iniciaram a publicação da totalidade ou da parte mais importante das respectivas obras depois do 25 de Abril de 1974 deveriam estar ausentes duma obra que se arroga a pretensão com que se intitula.

Claro que podemos sempre arriscar nomes, percepções (eu tenho algumas, que apenas têm o valor dessa intuição, mais ou menos alicerçada nas minhas próprias qualidades de leitor, satisfatórias ou medíocres, para o caso é irrelevante). E, no fundo, é mesmo disso que se trata, com excepção para o século XIX, o único período que me parece (quase) incontroverso. Talvez, por isso, mais apropriado -- embora menos comercial e cintilante -- fora reconhecer isso mesmo com um título mais singelo, umas Propostas para a Fixação de um Cânone [Literário Português], ou coisa que o valha. Tenho pena porque demasiada presunção ou falta de humildade envenenam-me a leitura; e tanto faz que venham agora dizer que se trata de uma mera lista como outras possíveis, o que se vê à vista desarmada. 

Começo por subscrever no texto da página da editores, certamente da autoria de um dos coordenadores: «Os grandes escritores não são escolhidos por consenso ou por votação popular, mas por terem sempre leitores, mesmo que poucos, ao longo do tempo.» Certamente que o livro desenvolverá o conceito. Eu acrescentaria  que Os grandes escritores de uma língua e de uma comunidade são aqueles que inauguram um modo de expressão cuja voz continua a fazer-se ouvir nas vozes de outros que lhe sucederam, tendo inscritos um conjunto de tópicos reveladores da pertença a uma nação e/ou a um território.

O mesmo texto informa que não se trata de “um guia neutro para a literatura portuguesa”. Se a neutralidade absoluta é impossível, não deve deixar de ser perseguida num trabalho desta natureza, sob pena de o irremediavelmente o comprometer não digo na sua credibilidade, mas na utilidade que pode ter para quem não esteja muito interessado nas opiniões dos autores e respectivos colaboradores. 

Parece que o livro tem artigos sobre movimentos e revistas literárias (cuja dimensão desconheço), o que, à partida, tornará híbrida a natureza da obra, oscilando entre o ensaísmo e a historiografia cultural. Quanto a isso, talvez ainda não se fizesse melhor do que a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, pese embora as suas (poucas) omissões quanto a escritores relevantes: se a memória não me atraiçoa, lembro-me dos nomes do romancista, ensaísta e poeta Francisco Costa (1900-1988) e do poeta presencista Fausto José (1903-1975), mas haverá outros.

Uma nota marginal, incrédula e possivelmente preconceituosa sobre a inclusão numa obra deste teor de artigos sobre literatura feita por mulheres e por homossexuais: não são temasd, mas não vejo grande utilidade numa obra que pretende definir o cânone. É o espírito do tempo que levará, em obras futuras, a escrever-se sobre escritores vegetarianos, por exemplo. Que interesse tem isso para o Cânone, a não ser marginalmente? Não vejo.


* a notícia do Observador inclui o vídeo do lançamento do livro, que ainda não vi.

4 comentários:

Manuel Nunes disse...

Não ligue, caro amigo, o que os gajos querem é discussão para vender o livro. Os 50 nomes são consensuais, mas podiam arranjar 75 (ou 100, como o Harold Bloom) e meterem lá os que faltam. Lembro-me do lirismo trovadoresco galaico-português, de D. Francisco Manuel de Melo, do Cancioneiro Geral, da Fénix Renascida e do Postilhão de Apolo, de Ferreira de Castro, Fernando Namora, Alves Redol, Mário Dionísio e Vergílio Ferreira… Quem não vai ver o vídeo do lançamento pelo gato fedorento sou eu, esteja certo disso. Mas fiquei com alguma curiosidade a respeito da torre de Famalicão. Um dia destes passo por lá, adoro torres com rampas em espiral.

R. disse...

ahahah... Se você tiver razão a coisa é pior do que parece.
Mas silenciar é concordar, ou pior acatar, e eu não vou nisso.
Ponho-me, aliás, na posição mais cómoda, a de leitor, e essa é inexpugnável (reminiscências do "Eurico"...)
Grande abraço

sincera-mente disse...

Mesmo sem ter visto o tal cânone (o nome cheira-me a sacristia, e acho que não sou suspeito) parece-me, desde já, que tem mais valor a sua crítica, que subscrevo (mesmo sem ter visto o novo código de direito canónico literário), do que essa dita obra canonizante.
Que lhe pusessem antes o título, por exemplo, de "Os melhores 50 autores portugueses de sempre, segundo F e F"
Vou pelo amigo Manuel Nunes: Artifício mercantil!

R. disse...

Diz bem, segundo F e F...
Abraço