quarta-feira, outubro 14, 2020

a arte de começar

«Que horas são, a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olho à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas. Está uma noite tranquila de inocência, como a paz que me invade. Poderia achar razões que me turbassem a paz. Não encontro. Tudo aconteceu fora do meu alcance, não encontro. Um pouco de sono talvez, de fadiga, que horas são? Há em todo o céu lá em cima um pouco de claridade que não é das estrelas. E há uma certa agitação invisível, um profundo estremecer do mundo que vai acordar. E sempre o ressoar das águas, mas tenho de prestar atenção. Longe, no limite do mar, pequenas luzes de barcos na pesca. Estremecem devagar como se cintilassem na sua luz mortal. É um cintilar já breve na claridade que vem aí. Estou parado à porta da capela, há um terreno à frente e depois a queda a pique para as águas. Passei a noite sozinho, fui homem. Quero dizer fui perfeito. Não é que eu tivesse muito a conversar com o meu filho, que dorme ali no caixão. Mas o que houvesse a dizer era só entre os dois.»

                                                                   Vergílio Ferreira (1916-1996), Até ao Fim (1987)

2 comentários:

Maria disse...

É um dos meus livros preferidos do Vergílio Ferreira. Triste, muito triste, mas sempre que o leio volto às Azenhas do Mar, um dos pedacinhos mais belos do nosso país.

Boa noite.
🍁

R. disse...

Obrigado pelo seu comentário. É obviamente um importante escritor, porém este romance não me agradou particularmente.