segunda-feira, setembro 10, 2007

Sobre o livro de Zita Seabra



Zita Seabra está longe de ser uma escritora aceitável, mas foi uma memorialista competente.
O seu livro não me desapontou, em especial na parte que mais curiosidade me suscitava, a época do prec. Responsável máxima da UEC, vinda da clandestinidade, mais tarde elevada à Comissão Política do Comité Central, o seu testemunho confirma como as cúpulas do PCP encaravam a democratização do país com reserva mental, sendo porém alheias aos desmandos da extrema esquerda, cujo radicalismo assustava a maioria silenciosa, que pouco distinguia uns dos outros. A ideia de que os esquerdistas seriam uma espécie de cães-de-fila servindo objectivamente uma estratégia do Partido, como por vezes se diz, não me parece ser sustentável, a partir deste depoimento.
Também me impressionou o relato da clandestinidade -- boa parte dela passada a desempenhar o papel de doméstica inofensiva, conspirando dentro de portas --, bem como a fibra obstinada que revelou nesta situação de grande pressão psicológica e isolamento dos familiares e amigos mais próximos, fortaleza que se fará sentir já no caminho da dissidência.
Estas são igualmente memórias do choque com a realidade, quando, já dissidente, percebe a miséria moral do embuste que foi o «socialismo real». Só em ruptura com o Partido, na sua última viagem à União Soviética -- e também mercê da glasnost de Gorbatchev --, Zita Seabra esteve disponível para verificar o que de facto se passava dos países ditos socialistas. A admissão da recusa em ver, com a constatação do logro que fora o seu percurso até aí, é exposto com uma clareza e uma coragem admiráveis.
Os relatos dos dois «julgamentos» que conduziram à expulsão da Comissão Política e depois do Comité Central, são, apesar do dramatismo, hilariantes, pela feição de tragicomédia de que se revestiram: a natureza humana em todo o seu esplendor. Porém o tom muda, quando Cunhal, no decurso do segundo conclave que conduziria a militante à expulsão, interpela todo o C.C., perguntando a quem ali se encontrava, quantos teriam a coragem de Zita Seabra, de estarem sozinhos naquele confronto....
O retrato de Cunhal é outro dos aspectos mais interessantes do livro. Zita Seabra trata a generalidade dos antigos camaradas -- em especial os velhos resistentes dos cárceres da pide -- com o devido respeito. Pressente-se, para quem está de fora, um ou outro remoque, em relação aos quais a consideração já não será tão grande, como parece passar-se com o actual secretário-geral, referido duas vezes de raspão, mas com significado. Mas o tom geral do livro é elevado. Cunhal, que obviamente a marcou, aparece com as qualidades que geralmente lhe são reconhecidas, mas também com defeitos -- os defeitos de quem, pela sua própria biografia e pela cultura e brilho intelectual, detém sobre os outros um ascendente que não deixa de ser exercido, com crueza e desprendimento se necessário. O histórico líder do PCP apareceu-me aqui desmitificado como eu nunca vira a partir duma fonte directa; e, ao mesmo tempo, humanizado, na sua grandeza como nas suas pequenas misérias. E isso, por paradoxal que pareça, é ainda uma forma de homenagem.

Sem comentários: