Bougie (p .r.) 16-2-40
Querido amigo: Meia duzia de linhas, para não prolongar demasiado o meu silencio, pois tenho duas cartas suas a agradecer (de 10 e 17 de Dezembro) maná espiritual que tanto me reconforta no deserto em que vivo. E ainda eu acho que esse deserto não é tão completo como o desejaria; convinha-me uma caverna semelhante áquelas que os anachoretas escolhiam, nos primeiros séculos da nossa era, para terminar os desenganados dias. Mas então nunca lá chegariam palavras de carinho como essas que a sua amizade encontra para me alentar; em compensação, porém, não ouviria falar dos efeitos que a «desumanidade culta ou cultivada» pratica actualmente. Quando volto os olhos para o meu passado tenho a impressão de que levei a existencia embalado no regaço de uma voluptuosa valsa de salão até que de repente mergulhei até aos gorgomilos no mais infecto dos pantannos. Com a faculdade, de que ainda conservo restos, de tudo «objectivar», os horrores d'esta guerra relatados nos jornaes, que logo se me representam em quadros pavorosos, de irrefragavel realidade, envenenando-me a alma que fica a escorrer tédio, fel e peripécias, com interesse meramente recreativo, como se fosse um romance rocambolesco publicado em folhetins diários!... -- Basta, porém, de lamentações; e sem nervos que me permitam, hoje, mudar de assumpto, termino renovando os meus agradecimentos, com um apertado abraço do C.
M. Teixeira Gomes
Cartas Políticas a João de Barros
(edição de Manuela de Azevedo)
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