[Pamplona, 7 de Julho de 1908]
Meu amigo: Recebi hoje o seu bilhete de Florença.
Foi -- com Siena, Orvieto, Prato, etc. -- a minha primeira estação na Itália, único país que visitei com método. Durante alguns anos a fio continuei ali as minhas digressões até compreender que esgotara as fontes especiais onde a minha sensibilidade podia beber. Bebi pouco, naturalmente, embora bebesse quanto pude... Como a Itália seja inexaurível a saturação dá-se nos espíritos muito antes de atingir as máximas claridades e por aí se pode aferir a amplitude das almas que por lá transitam. Mas é, sempre, indispensável ao equilíbrio do sentido estético, que sem o conhecimento da Itália claudica até nos organismos de privilegiadíssima estrutura. Dias atrás, em Ávila, ouvindo o Junqueiro que, no entanto, ainda conserva uma permeabilidade rara às sensações de arte, não me surpreendeu saber, por fim, que ele nunca estivera em Itália. O estudo da Itália exclui o vago, o indeciso, o disforme, das divagações poéticas. Encontrei em Pamplona -- uma das poucas cidades espanholas que não conhecia -- o mais belo claustro gótico do mundo. É florido, mas no interior das galerias apenas o necessário para inflorar as suas linhas de ornamentos idealmente delicados e miudinhos, que de modo algum lhes prejudicam a austera elegância. Nas fachadas em volta do jardim é que a fantasia tomou asas mas com tão extraordinária graça e uma tão perfeita harmonia! Agora suponha que as figurinhas que enxameiam nas portadas e capitéis são obra de um génio superior ao dos melhores «imaginários» de Chartres e Estrasburgo; que essas figurinhas nos seus movimentos e nas roupagens valem mais as delicadas tanagras -- desconheço comparação mais justa -- e tem expressão que somente a arte medieval so[u]b[e] imprimir às suas criações e avaliará a delícia com que eu ali passo horas sem fim. É um isolamento salutar da grande saturnal católica em que Pamplona agora tripudia. Festas de S. Firmino: procissões, gigantes e cabeçudos, vinho, inferno de gaitas estrídulas, concertos Sarasate, e quarenta touros de morte. Interessantíssimo, de resto, mas algo fatigante na minha idade. -- Espero vê-lo em Lisboa no começo de Agosto. Será isso possível? Se me der notícias até 20 deste mês faça-o para o «Hotel Santa Cruz, Madrid» e depois para o «Avenida Palace, Lisboa». Tenciono deixar o norte de Espanha lá para 20 e depois, no caminho de casa só é certa a passagem por Madrid e Lisboa. Seu grande admirador e amigo
M. Teixeira Gomes
O Cristal da Palavra -- Cartas de M. Teixeira Gomes a Afonso Lopes Vieira
(edição de Urbano Tavares Rodrigues e Vítor Wladimiro Ferreira)
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