terça-feira, dezembro 27, 2005

Antologia Improvável #88 - Alberto de Lacerda (4)

APARIÇÃO

Tem sobre a música certas vantagens
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os dedos longos
Os olhos rasgados
Um perfil que transformou a sala onde eu estava
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os cabelos louros
Angelicamente revoltos
E nunca me dirigiu a palavra

Tem dezoito anos
Ou dezassete anos
E nunca me dirigiu a palavra

Tem um olhar profundo e natural
De rio sem grandes acidentes
Tem o olhar directo
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os gestos mais belos que eu sonhei
Antes de ver os seus gestos
Tem a graça da luz de Maio
Tem qualquer coisa de Maio que a Primavera esqueceu
Tem os ossos do rosto cinzelados
Duma forma que teria perturbado
Fídias e perturba certamente
Todos os dias o ar a luz a noite e o dia
E nunca me dirigiu a palavra

Agita quando anda
Os mantos do invisível
E nunca me dirigiu a palavra

Tem uma voz incomparável
Tem uma doçura de ave no olhar
E nunca lhe dirigirei uma palavra

25.5.62
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2 comentários:

Maria Noronha disse...

que bonito! Boas festas também para si!

João Villalobos disse...

Acho que ele devia dirigir-lhe a palavra.