A intervenção benfazeja de Ana, que põe termo à desavença do tanoeiro (ficamos a saber o mester) e a mulher, cedendo-lhe do seu vinho, coincide com o desencadear duma borrasca e a entrada do Esticado, o homem de Ana. O contraste entre ambos os casais é total: ao desrespeito, a delicadeza; à brutalidade alcoólatra, cuidado viril, mas atencioso; à sujidade, o asseio ["Acusava bem o soalho, na sua cor açafroada e macia, o uso constante da potassa."], duas filhas para criar, uma ainda de peito.
Mas o Esticado tem outra coisa dentro de si: o sentimento de injustiça da sua condição social e da sua pobreza: nem trocar a roupa encharcada lhe é permitido, o casaco de ver a Deus no prego; e nem as paredes da casa impedem que o vento entre agreste pelas frinchas, "Raio de casa!" E até nos filhos, os ricos têm sorte ("Quantos [...] a nadarem em dinheiro e sem filho nenhum!" -- ou azar, eles, a ralé: "Cada cavadela, cada minhoca!" E isso que o Esticado tem dentro de si, vai partilhá-lo, na companhia de Serafim, fora de casa: nessa noite haverá encontro de trabalhadores.
Abel Botelho, Amanhã (1901) #5
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp.13-20.
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