domingo, março 30, 2008

alguns amigos do Tibete

Por ocasião da recente visita do Dalai Lama a Portugal, deparei-me com um argumento extraordinário, aduzido por algumas pessoas que pretenderam justificar o aflito jogo de escondidas das nossas autoridades perante o líder espiritual dos tibetanos e chefe de Estado no exílio: a de que o Tibete, à data da invasão chinesa era uma teocracia, um estado "feudal" em que o povo pobre sustentava uma classe sacerdotal ociosa. Esse argumento fez-se agora ouvir de novo, a propósito dos acontecimentos em Lhassa. E, muito curiosamente, muitas dessas vozes vinham da "esquerda".
«Então e depois?», pergunto eu, sabendo que de facto assim era, que o progresso material introduzido pela China é indesmentível, provavelmente superior até àquele que Suharto promoveu em Timor-Leste, à custa do extermínio de um terço da população.
Dizer que o actual Dalai Lama era um jovem soberano confinado ao Palácio do Potala, com meios rudimentares para se aperceber do mundo em que vivia e sem o altíssimo brilho de estadista que hoje detém, nem sequer é argumento. O princípio essencial aqui é o da autodeterminação dos povos, este é o velho princípio que política e eticamente deve contar. O que me parece inaceitável naquele argumento perverso é o de que o desenvolvimento dos povos possa ser feito contra esses mesmos povos.
Por outro lado, alguns dos que adoptam esse ponto de vista indulgente para com os chineses, estiveram -- e muito bem -- contra a ocupação de Timor. Mais: estiveram contra Salazar e Caetano na guerra colonial, injusta, imoral e pérfida... Para esses, portanto, libertação dos povos só quando convém ou se encaixa na percepção formatada da realidade. É o caso das risíveis declarações justificadoras de Jerónimo de Sousa -- aliás, personagem com a qual simpatizo --, muito preocupado com as dificuldades levantadas à China e aos seus Jogos Olímpicos, e logo numa sessão de denúncia da criminosa guerra do Iraque. Curioso caso de indignação à medida das conveniências... O que Jerónimo não diz, porque não quer, é que os tibetanos aproveitam os holofotes da mediatização para se livrarem do jugo chinês, jugo esse que lhes trouxe muitas estradas, muitos automóveis, muitos benefícios do progresso, mas sob a pata opressora do ocupante.
Haverá luta mais legítima?

6 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

bem dito, RAA...

bom domingo!

Ricardo António Alves disse...

Obrigado, Júlia.
Uma boa semana para si.

Ana Paula Sena disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Paula Sena disse...

Gostei da reflexão sobre esta difícil e inacreditável situação, até agora, quase sem solução, mas com muito sofrimento...

estrelicia esse disse...

Concordo absolutamente consigo. É injusto impedir que um povo que luta pela sua autonomia política seja impedido de o fazer a pretexto de que o seu "protector", ainda por cima estrangeiro, oferece-lhe alguns rebuçados como compensação. Vale mais a liberdade do que a subserviência imposta à força.

Ricardo António Alves disse...

Nem terá solução tão cedo, Ana Paula. Apenas se pode esperar que a pressão internacional force a China a conceder algo parecido com a autonomia pedida pelo Dalai Lama.

E já vi por aí argumentos piores, Estrelícia. Por exemplo, o que sustenta que a CIA está por detrás destes acontecimentos. Como se isso, mesmo sendo verdade ou mesmo tendo alguma ponta de verdade, tivesse alguma relevância para caracterizar a situação em si...