Il.mo Snr.
V. S.ª teve a bondade de me remeter o seu opúsculo acerca de Teófilo Braga e do Romanceiro e Cancioneiro Português, acompanhando a dádiva de uma carta recheada de expressões tão exageradamente benévolas que não sei se as agradeça, se me limite a esconder a mesma carta para que ninguém a veja.
Sempre tive grandes dúvidas sobre a doutrina da superioridade das inteligências; isto é, da diferença de inteligência a inteligência, quando estas são completas. No que acreditava, na época em que pensava nessas cousas, era na superioridade das vontades. O querer é que é raro; e tenho a consciência de que fui um homem que quis nas cousas literárias. Desde que perdi o querer, caí na vulgaridade. Hoje não passo de um homem vulgar.
Aqui tem V. S.ª a verdade da minha apoteose.
Quando profundos desgostos me forçaram a descrer das letras, e ainda mais do país, as tendências da actual mocidade estudiosa apenas despontavam no horizonte, se despontavam. V. S.ª faz-me, ou o favor, ou a justiça, no seu opúsculo, de me supor homem de análise. Não há-de, pois, de admirar-se que lhe diga que me parecem perigosas, para não dizer outra cousa, essas tendências. A generalização, a síntese, são, em absoluto, cousas excelentes: são a ciência na sua forma definitiva e aplicável. Mas, para generalizar e sintetizar, é necessário haver que. Ora, a história, na significação mais ampla da palavra, ainda não possui elementos suficientes para a generalização. Desde a paleontologia e a etnografia, até à história das sociedades modernas, há muitos factos adquiridos indubitável e indisputadamente para a ciência; mas há muitos mais ignorados, incompletamente conhecidos, ou disputados; e isto não só na história política e na social, mas também na do desenvolvimento intelectual do género humano, na das letras e da ciência. Que síntese séria é possível assim? Enquanto a análise não tiver subministrado uma extensa série de monografias definitivas, as sínteses que andam por aí correndo não passam de romances pouco divertidos, quando não são piores do que isso: uma geringonça absurda.
No tempo em que eu andava peregrinando por esse mundo literário, antes de me acolher ao mundo tranquilo de santa rudeza, conversei um pouco com Vico e Herder, com Vico e Herder como a Itália e a Alemanha os geraram, e não como os aleijaram e embaiucaram os cabeleireiros franceses (todo o francês, com raras excepções, tem um pedacinho de cabeleireiro). Sempre me pareceu que tinham nascido muito antes do seu tempo. Deus ter-lhes-á de certo perdoado o mal que fizeram. Sem o quererem, nem pensarem, deram origem a uma cousa em história que eu só sei comparar ao gongorismo da poesia e da prosa literária do século XVII.
Desculpe V. S.ª esta franqueza de um homem do campo. Tenho-a, porque o seu opúsculo revela um escritor, e, posto que hoje eu não passe de um profano, far-me-ia pena se o visse perdido por esse desvios das simbólicas, das estéticas, das sintéticas, das dogmáticas, das heróicas, das harmónicas, etc..
Teófilo Braga é uma inteligência completa e uma grande vocação literária, mas uma fraca vontade: gosta de fazer ruído; deseja adquirir reputação; não possui, porém, o querer robusto que vai até o sacrifício, que vai até o martírio, e que é preciso para se tornar um homem verdadeiramente superior. Achou a porta do abstruso sintético e simbólico engrinaldada de maravalhas francesas: meteu-se por ela; e, em resultado, aí temos, não direi a Visão, as Tempestades e a Ondina, porque não quero que V. S.ª fique mal comigo, mas direi a História da Poesia Popular e os Forais que V. S.ª mesmo trata desapiedadamente.
Nestas matérias, peço a V. S.ª que se volte um pouco para a análise. Há tanto que fazer por esta parte! Relendo o seu folheto daqui a anos, há-de conhecer que o conselho era sincero e amigável. Dir-me-á porque não o dou a Teófilo Braga? Porque não o aceita. Aquele, ou já se não cura, ou há-de curar-se a si mesmo. É o que, sem lho dizer, eu do coração desejo. Disponha V. S.ª da inutilidade deste aldeão que é, de V. S.ª V.or e C.
In Oliveira Martins, Alexandre Herculano
(edição de Joel Serrão)
7 comentários:
É uma coincidência que o Ricardo afixe esta carta de Herculano, pois ainda a semana passada o Xor Z (do Tonel de Diógenes) e eu falávamos das trapalhices intelectuais do Teófilo Braga. Debatemos também na altura as desconfianças que Herculano tinha em relação a Teófilo. Z, que andava a ler a 'História da Universidade de Coimbra' era mais cruel do que eu nas acusações. Eu referia algumas trapalhadas de Teófilo no domínio dos Estaudos Literários, mas recordava também as suas capacidades de trabalho, a vastidão da sua obra e o cosmopolitismo do seu pensamento.
Parece que quase toda a gente bateu no Teófilo: o Camilo disse-lhe as últimas, o Antero, que o teve a seu lado na Questão Coimbrã, incompatibilizou-se com ele, cheio de razão, ao que parece, chamando-lhe parvónio; o Joaquim de Carvalho escreveu que o professor da Faculdade de Letras, tinha alma de discípulo...
Para ser franco, não conheço praticamente nada do Teófilo; mas parece que terá sido meritório o seu trabalho nas áreas etnográficas, cancioneiros, literatura tradicional, além, certamente, de noutras matérias a sua consulta poder ter ainda utilidade. Mas não deixa de ser confrangedor verificar como uma obra copiosa e esmagadora como a dele foi tão rapidamente desvalorizada.
Caro raa
O Alexandre chamou-me a atenção para a carta. O próprio Teófilo cita o julgamento de Herculano sobre si próprio carpindo-se. Tem alguma razão qundo diz que a obra há-de ter algum valor, mas as trapalhadas são tantas que é sempre melhor a gente precaver-se e confirmar o que ele diz. O principal defeito do Teófilo, além doutros menores, é analisar os fenómenos do ponto de vista positivista e o positivismo tentou arruinar a filosofia e arruínou em grande medida a história. Não se esqueça de que além de político foi professor de história e literatura e, antes disso, quis ser professor de direito e vou ficar por aqui. Com tanta prerrogativa como é que não havia de ter uma obra vasta.
É o ranço positivista, tornado numa espécie de igreja, com o seu catecismo e a sua dogmática, que teve contudo o mérito de arejar alguma historiografia bafienta. O Herculano, que também sacrificou nesse altar, é um exemplo de probidade. Claro que, neste caso, o mérito do magno edifício que ele legou tem de ser-lhe creditado, e não tanto ao horrível Comte...
Caro Ricardo
A grande virtude do positivismo foi a colectânea de documentos embora, no caso do Teófilo, as últimas duas indicações que tirei da História da Universidade não estavam correctas. Se calhar sou eu que tenho azar.
Independentemente de tudo, nem tudo é mau no Teófilo como você diz. Só é preciso é ter cuidado com o que se usa.
Para terminar só mais um exemplo da idiossincrasia de Teófilo. Na hist. da UNiv. queixa-se de ter sido preterido por concurso viciado e no Curso Superior de Letras patrocinou o mesmo.
Parece-me que você diz que o Herculano era positivista, sinceramente, não me parece.
Caro Xor Z
Muito admirados ficariam vários intelectuais de finais do século XIX e princípios do XX ao depararem com a carga pejorativa que adquiriu o positivismo. Parece-me, contudo, e salvo opinião mais abalizada, que esta carta do Herculano é um testemunho desse mesmo positivismo (no sentido positivo!...) ao criticar alguns desmandos de interpretação -- e de efabulação até -- por não obedecerem às regras da verificação documental e/ou não se suntentarem em sólidas monografias, por inexistentes... Mas, como tento sugerir acima, o que realmente importa é o resultado do seu trabalho, independentemente de escolas que em determinada altura tenha perfilhado, com maior ou menor entusiasmo. E, quanto a isso, penso que será pacífica a concordância quanto à magnitude indiscutível da sua obra historiográfica.
Saudações cordiais.
Caro Ricardo
Nisso estamos de acordo. A obra de Herculano tem os seus méritos, embora com acento ideológico, a de Teófilo muitas vezes tenho duvidas.
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