domingo, outubro 30, 2005

Antologia Improvável #69 - Jorge de Sena (2)

NÃO HÁ SAÍDA

Não pode a maior parte
suportar mesmo o que admira.
No mais sincero e puro admirar
uma raiva flutua, uns dedos se crispam,
um gosto sorridente de poder, podendo,
pousar na grandeza pelo menos um pé sujo
que manche o limiar lavado pela paciência
dos séculos e de um homem só. Não
tenhamos ilusão alguma. Quando louvam,
é só se podem dar com uma mão e tirar com a outra.
Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
E morremos todos manchados de lama
que irá pegada a nós dentro do tempo.
Abrindo-nos as páginas futuras, alguém há-de
ver delas soltar-se um seco pó que tomba
e que ele sacode, assopra, rindo
da humanidade torpe que abusou de nós.
Ninguém porém nos pode garantir
que ele mesmo, o que nos limpa, o não faça
para no tempo limiar deixar bem nítidos
senão seus pés ao menos os dedos do seu cuspo.

11/10/1973

Visão Perpétua

6 comentários:

lebredoarrozal disse...

Nada pode haver de limpo neste mundo podre.
é muito duro ler verdades como esta.

(o teu post sobre o camilo deu-me vontade de o reler)

Ricardo António Alves disse...

Terrível poema.

lebredoarrozal disse...

é sim:)

Maria Noronha disse...

Ricardo, gostava de lhe pedir um conselho: ando à procura de poetas que foquem os direitos humanos, sem serem aqueles de que nos lembramos imediatamente (como o Gedeão ou a Sophia). Bem sei q este poema do Sena também trata disso...

Ricardo António Alves disse...

Olá, Maria. O tema é tão vasto... Vou tentar pensar para além do óbvio, e depois digo-lhe.

Maria Noronha disse...

obrigada! é que queria seleccionar uns quatro ou cinco poemas. já estou à procura, mas pode ser que o ricardo desencante algum verdadeiramente...