terça-feira, setembro 05, 2023

antologia improvável #502 - Eugénia de Vasconcellos


MILAGRE MAIOR


Escrever.

Mastigar a solidão toda

até fazer do bolo alimentar

de dor, de raiva, de lágrimas

um sol que jorre luz pela boca.

O Livro da Perfeita Alegria (2021)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

MARANTÉU, (Papa-FIGOS)
«O engenho, encanto e beleza com que as aves constroem os ninhos significa por si só uma complexa e admirável arte. Ousarei dizer que a nossa arquitectura com seus estilos demarcados e gloriosos, a sua ciência dos volumes e resistência de materiais, lhe é manifestamente inferior em recursos e em variedade. Reparem para o ninho do marantéu. Edificou‑o na pernada mais alta de um carvalho. Mesmo à beirinha. O vento balouça‑o como um berço, mas não o deita abaixo. É talvez o modo de os filhos adormecerem mais depressa. A questão é que esteja bem seguro. Está seguríssimo. O pai marantéu de sua boca segregou uma saliva que prende os fiapos e palhinhas voláteis às franças melhor que cimento. Tal como as andorinhas. Parece sobretudo garantido contra o inimigo número um dos pássaros: o garoto. O garoto, com efeito, pilha o ninho do gaio, do pombo, da torda, da rola, trepando como um esquilo pelos fustes mais lisos. Mas a este não se atreve ele. Só um gato poderia levar a pirataria a bom termo. O ninho por fora confunde‑se com o meio, em sua cor, aspereza, emaranhado, e por dentro é macio como um regalo. Os pais marantéus forraram‑no com tudo o que de sedoso lhes forneceu a Natureza ou puderam bifar ao bicho‑homem.»

Aquilino Ribeiro, "O Homem da Nave" (1954)