domingo, maio 28, 2023

um destino honesto & outros caracteres móveis

 «O destino, que ambos se prometiam, era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivesse outros recursos: ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património.» Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862) - «Os olhos procuravam, em ansiosa interrogação, o mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sítio, no sítio em que ela, formando um cotovelo, furtava à vestia o seguimento ulterior.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868) - «Se a Igreja o não contava entre os vassalos da fé, possuía-o lubricamente pela sedução da sua beleza.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) - «Haviam decidido vir os dois, para que ele lhe desvendasse a terra em que nascera e, afinal, vinha sozinho, deixando-a sepultada num cemitério de Lisboa.» Ferreira de Castro, Eternidade (1933) - «Tudo que se chamava a vida, feita de hábitos, de banalidades, de alegrias e de dissabores,  de alguns afectos profundos, de muitos afectos ligeiros, dum ou doutro acto nobre, de tanto acto estouvado, de tanto dinheiro desbaratado e de tanta precisão de dinheiro, das injustiças com a mulher e dos arrependimentos, das discussões  do Martinho, das noites do Maxim's ou da roleta do Estoril, das escapadelas com a Maria da Graça  (inspecções à província em que a mulher fingia acreditar) -- tudo que se chamava vida, feita de tumulto, de fachada, de subterfúgios embora, mas que para ele findara no dia em que sob o seu vulto amarfanhado se haviam fechado as portas daquela prisão!» Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938) - «Olhou para o casarão engolido no escuro da quinta, apenas visível pela esteira de luz que vinha do quarto do avô quebrar-se na janela da saleta.» Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal (1944) - «Dá a volta à casa pela frente, vejo-a agora de costas, desliza como aragem pelo chão.» Vergílio Ferreira, Para Sempre (1983) - «Pareciam graves e austeras as pessoas das fotografias, como se nunca tivessem cantado e corrido, discutido, beijado e amado.» Helena Marques, O Último Cais (1992)

4 comentários:

Manuel M Pinto disse...

«Miss Burness, que não conhecia o Norte, chegou no “espada” em que a mandaram buscar, maravilhada do que via. Os montes, logo os vales com rios e riachos cristalinos a correr, como veludo cosido a retrós branco, e mais colinas e mais outeiros e pinhais vergados para o chão a trepar, e ermidas empoleiradas como pombas, estarreceram-na. Depois, cansada de contemplação, puxou do seu lanche e não se ocupou de mais nada que de saborear as laranjas.

Dizer que o palacete dos Marques Pinto lhe agradou seria faltar à verdade. Aquelas paredes a cal branca, com seus móveis arte-nova, e as meninas solícitas, revessavam uma candidez bucólica tão ensossa como inconsolável. Quando viu o seu quarto, tapetado a esteiras de Coimbra, sem fogão, vieram-lhe as lágrimas aos olhos.

A cada passo lhe saíam das azinhagas as vacas minhotas com a lira de Orfeu, sem cordas, na fronte, estas guapas descendentes da rena, e ela que em matéria de tal gado apenas conhecia as turinas do Landshire, cor de café com leite, desmaiava só de vê-las. Por isso o seu pescoço vermelho e glabro como o dos galos pelados se alçava em sobressalto para cômoros e bouças.»
Aquilino Ribeiro, "Arcas Encoiradas: estudos, opiniões, fantasias" (1953)

R. disse...

Fiquei curioso com esta miss...

Manuel M Pinto disse...

Ainda há mais...!
«Miss Burness, em despeito da rádio que acabou com a aprendizagem musical, ensinava os rudimentos de piano às meninas. Todas as meias manhãs a casa feliz dos Marques Pinto eructava as intermináveis escalas: Galinha choca no quintal, chocando os ovos do pardal…
Odiava o vinho verde! – que triaga para barqueiros! – o caldo de berças, o cozido à portuguesa, bom para cavadores, a água-pé, a broa de milho, o bacalhau com batatas, o saudoso fiel amigo, tão lastimado. Desta feita o Marques Pinto perdeu a sua compostura serena:
-- Queria corn-beef? Em Portugal não há disso.
Em despeito do seu medo às vacas de galhadura longa e bonita como dois alexandrinos, despedia sempre que lhe era azado pelas longas estradas, que todas elas chamava da Birmânia, por levarem ao desconhecido, cheias de episódios e de uma flora nunca sonhada. Dava o cavaquinho por amoras.
-- Tudo bonito mas tudo bárbaro, sinhorr Marques Pinto!
-- E nós todos por tabela com natureza?-proferia sorridente o patriarca.
-- Sim, o português é um bárbaro satisfeito. Todos vós sois grandes e importantes. Cada um é mais Salomão que os outros. Se sois pobres, não gostais que vo-lo digam. O rapazito moncoso indigna-se se o mandam assoar. Andais ainda mais cheios de presunção de que de água benta. Acima de tudo sentis-vos gloriosos pelo que sois e em Vasco da Gama. Mas eu vos digo, cavaleiros da Triste Figura, a cada passo vos enterneceis e daríeis o sangue das veias se não custasse sofrer a lanceta. Querr dizer, ninguém é mais dorido e social no vasto mundo, pelo menos na intenção.
Começaram a cair as folhas e Miss Burness, no palacete entre pinhais e vacas fulvas tomou-se de "spleen". Um automóvel foi levá-la a Lisboa mais depressa ainda do que veio.»
Aquilino Ribeiro, "Arcas Encoiradas: estudos, opiniões, fantasias", (1953)

R. disse...

Um olhar de 'explorer' sobre os indígenas.
Obrigado, o Aquilino é mesmo para se ler todo.