quarta-feira, dezembro 19, 2018

salvar a democracia do coma em que se encontra ou a cuspidela de Manso Neto na cara de um sistema moribundo


Se na altura, a doença era visível, hoje os miasmas que dela emanam são pestíferos e letais. O melhor exemplo da captura da sociedade portuguesa e do Estado pelos interesses particulares e ilegítimos nem é o do alegado falhanço no caso do helicóptero do INEM ou da estrada de Borba, se bem que no que respeita à resposta aos mega-incêndios de 2017, entre sirespes e boys colocados em lugares de comando, aí a nódoa já tinge e atinge os partidos do sistema de então, em especial PS e PSD.

Um exemplo da bandalheira a que o Estado foi reduzido é a revelação de Manso Neto, da EDP, ontem no Parlamento: a EDP faz propostas legislativas no seu próprio interesse, e apresenta-as aos governos, que teoricamente têm a palavra final. Nada de que não desconfiássemos, intuíssemos ou, nalguns casos, soubéssemos. No entanto, a declaração do gestor resultou, na prática, numa cuspidela em cheio na cara do sistema.

Não precisamos de chegar à corrupção, à satisfação de interesses ilegítimos ou outras malformações de que padece o sistema. A primeira causa para esta ignomínia, para esta vergonha que faz corar qualquer democrata, é a ideologia propalada pelos partidos que representam a larga confederação de interesses que domina o país, representados pelas organizações do outrora arco da governação, com o PS, mesmo quando não capturado pelos tais interesses, a fazer o papel de idiota útil ao seu serviço, com a pseudoideologia do estado mínimo, e que mais não foi do que o escancarar das portas à rapacidade das companhias apostadas no parasitismo -- mesmo que, sem vergonha, propalem os seus corifeus, generosamente avençados, para os malefícios do sector público. Ainda agora, a propósito da Lei de Bases da Saúde, António Costa, o muito prudente, terá resolvido pôr nos eixos a nova ministra Marta Temido, que parecia estar a tornar-se demasiado saliente.

O Estado tem cada vez menos massa crítica. Os que pensam pela sua cabeça, os incómodos, são colocados nas prateleiras, sempre foi assim. No entanto, o seu emagrecimento, a não-renovação dos quadros, a falta de uma meritocracia para o qual contribuíram a um tempo, embora com peso diverso, um sindicalismo boçal e nivelador por baixo e a captura dos departamentos pelos profissionais da política emanados das juventudes partidárias & equivalente, faz com que os serviços não tenham capacidade, por ausência de quadros ou de condições, para responder aos desafios complexos que lhe são colocados. Daí o triunfo, há muito denunciado, dos escritórios de advogados a fazer as vezes dos inexistentes ou irrelevantes gabinetes jurídicos dos vários departamentos ministeriais. Que admiração, pois, que um governo -- neste caso o de Sócrates, mas a prática já vem muito de trás -- peça à EDP que legisle em causa própria? Tudo foi feito, em muitos casos conscientemente, para que chegássemos a este ponto.

O estado a que isto chegou, dizia o nobilíssimo Salgueiro Maia, a propósito do impasse e do apodrecimento da vida política portuguesa em 25 de Abril de 1974, Claro que a resposta construtiva nunca virá dos macacos de imitação e outros animais do Facebook, com a palermice em segunda mão dos coletes amarelos. Receio, no entanto, que o sistema já não esteja reformável, e que só encostado à parede ensaie uma regeneração -- o que não é crível.  E nessa contingência, a mudança poderá inflectir para aspectos que repugnam a quem pretenda uma sociedade livre e mais justa.

É cada vez mais necessária uma refundação democrática, uma IV República, que revisse e alterasse radicalmente as formas de representação e funcionamento do Estado. É claro que tal não vai acontecer, nem há condições para uma reforma pensada do sistema, por várias razões:  da fraqueza das lideranças (Rui Rio, pela sua honestidade e frontalidade é uma excepção, infelizmente num partido irreformável, pela sua natureza de federação de pequenos e grandes interesses; o PCP é outra coisa, em que reside o melhor e o pior da democracia portuguesa); ou a implicação profunda no actual estado de coisas (PS, o PSD tradicional, CDS), ou ainda a franca inconsistência, e por isso desimportância, como o Bloco.

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