Póvoa de Varzim, pela manhã
4/3/68
Ramiro:
Já recebi duas cartas tuas, pelo menos, -- a última de há quase um mês. Esta demora não significa que eu te esqueça! Bem pelo contrário, lembro-me constantemente de ti, de vós os três. Significa apenas que atravesso um período de grande trabalho, que a minha corespondência aumenta sempre, etc., etc. A minha casa editora resolveu que este ano seria «o ano de José Régio», e manda-me provas sobre provas de livros a reeditar. Como, nestas provas, me não limito a sublinhar as gralhas, pois sempre corrijo o texto, dá-me isso bastante que fazer. Também retomei colaborações jornalísticas; além de estar escrevendo o sexto volume de A Velha Casa e... vá lá uma novidade!: preparar um novo volume de versos! Supunha que já não publicaria mais livros de poesia; mas a experiência da doença, do sanatório, etc., acumulou no meu sub-consciente material que exige expressão mais ou menos poética. Enfim, o artista nem sempre faz o que quere: faz o que de momento pode, aproveita o que lhe vem. Como, portanto, escrevo agora bastante, não tenho desenhado nada. Os desenhos são, de certo modo, um substituto da literatura, um outro modo de expressão, quando a literatura se me torna esquiva. Também me faltas tu, à noite, com a tua calorosa curiosidade pelos desenhos que eu fizera... Não quer isto dizer que eu os deixasse de fazer: apenas estão à espera de novas ocasiões propícias.
Tens muita razão de, como sobrinho meu, te achares com direito (embora o não digas bem assim) a receber os meus livros. Vou, pois, começar a mandar-tos; aos poucos, e sobretudo os que foram ou vão sendo reeditados nas Obras Completas, pois as edições primeiras ou até simplesmente anteriores rareiam cada vez mais. Algumas até já atingem elevado preço! (1)
Comecei por falar de mim, e era de vós que eu tencionava começar por falar. Saboreei a breve mas viva evocação que fazes de vossa casa; (e o verbo saborear deve ter surgido aqui por uma subconsciente associação, pois me dizes que cheira a fritos, que a Fátima está fazendo fritos...). Também apreciei e agradeço a fotografia em que estás tu, ela, e o meu boneco na parede. Não se pode dizer que essa máscara faça uma companhia muito gentil, mas enfim... é uma lembrança do «ti Zé». Gosto de saber que estás contente, que vos sentis felizes. Ainda bem, oxalá que assim seja sempre! Claro que o casamento não é um perpétuo idílio (mesmo sem «pieguice») e até a Primavera é atravessada por nuvens e momentos sombrios. Não é de um dia para o outro que as pessoas verdadeiramente se conhecem. Mas também penso que a Fátima é boa rapariga, sei que tu não és mau rapaz, e um amor sólido que a intimidade irá confirmando acaba sempre por desfazer as nuvens... Também estou contente, em suma.
Agora umas notícias breves:
-- A «casa da madrinha Libânia», própriamente minha ao presente, está mais arrumada: Fiz nela uma espécie de exposição, embora provisória, de coisas a que depois darei um arrumo definitivo. Espero recomeçar as obras sem grande demora, e para as levar até cabo. Depois te falarei de isso.
-- «Os habitantes daquela Casa» devem ser estreados brevemente em Lisboa. Entretanto vai à Espanha a um festival de curtas metragens. Tem agradado bastante.
-- Recebi nova proposta para representação do Jacob e o Anjo, pela companhia que já no ano passado se propusera representá-lo. Fiz um grande esforço... e, embora nos mais lisonjeiros termos com que me foi possível dourar a amarga pílula, recusei autorização. Não me parece que essa Companhia e a sua casa de espectáculos reunissem as condições necessárias para um possível, mesmo relativo agrado junto do público. Principia por que o Rei, a Raínha, o Anjo-Bobo exigem certo aspecto físico (vejo-os em grande!) que não encontro nos actores da dita Companhia. Isto... sem falar no Talento necessário à interpretação desses difíceis papéis. O meu caso (das Três peças em Um Acto) é que parece que será representado em Lourenço Marques. Aqui está proibido, e lá não.
Bem, basta por hoje. Dá lembranças ao teu pai, e diz-lhe que gosto de o saber convivendo assim com a jovem família. Cá recebi, e gostosamente retribuo, os beijos da Fátima, e para ti o abraço do teu velho
Tio Zé
(1) Não seria razão para eu tas não mandar... se tivesse exemplares!
In Boletim, n.º 1, Centro de Estudos Regianos
(direcção de Eugénio Lisboa)
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