sábado, abril 24, 2021

a arte de começar

 «Para mim, João Jorge nasceu na noite em que o mataram, nas hortas a caminho da Vila Chã. A minha avó materna dizia que, naquela madrugada, ouviu gritos vindos de perto do cemitério e, mesmo antes de ter ido à varanda, curiosa e apavorada e sem acender a luz, soube logo que acontecera uma grande desgraça. Até ao fim da vida, quando falava de João Jorge, repetia os passos daquela madrugada distante, ia até à varanda, apontava para o lugar onde antigamente ficavam as hortas e dizia que naquela noite amarga, enquanto lavava a loiça, ouvira uns gritos assustadores, como se estivessem a matar porcos. No dia seguinte -- e disto lembro-me perfeitamente -- carregada com os sacos de compras, ofegante e muito vermelha, nem esperou para entrar em casa: "Mataram aquele teu primo, o João Jorge", disse.»

Bruno Vieira Amaral (1978), Hoje Estarás Comigo no Paraíso (2017)

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