quinta-feira, setembro 28, 2017

História e ficção, mentira e verdade (Alexandre Herculano)

Alexandre Herculano procurou nos romances históricos uma abordagem às mentalidades de época que não lhe dava uma heurística que relutava extravasar o dado documental. Debalde procurou suporte que lhe permitisse suprir essa lacuna na sua fundamental História de Portugal (1846-1853); e mesmo para as obras de ficção, a procura de vozes do passado que lhe transmitissem a dolorosa pena do celibato, cuja desumanidade desde a juventude o perturbava, resultou infrutífera, como assinala no prefácio do Eurico:
          «Essa crónica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros, quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lájeas que cobriam os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges acheia-as vazias.»  Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero [1844], (ed. cit,, p.VI).

Fez, assim, apelo à idiossincrasia poética e ao escopo artístico, ciente de que o ficcionista de recursos tem a intuição que faltará ao historiador. A esta, junte-se a ideia supletiva do romancista como alguém que mede a temperatura do tempo, e por isso mais fidedigna a ficção do que obras contemporâneas, propositadamente concebidas para deixar um testemunho à posteridade. Podemos lê-lo num artigo da Panorama, cujo excerto magnífico foi transcrito por Vitorino Nemésio, na apresentação da edição crítica (1944):

«Novela ou História, qual destas duas cousas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas. Quando o carácter dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os monumentos, as tradições e as crónicas desenharam esse carácter com pincel firme, o noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o génio do povo que passou pelo do povo que passa. [...] Porque [os historiadores] recolhem e apuram monumentos que foram levantados ou exarados com o intuito de mentir à posteridade, enquanto a história da alma do homem deduzida lògicamente das suas acções incontestáveis não pode falhar, salvo se a natureza pudesse mentir e contradizer-se, como mentem e se contradizem os monumentos.» 
Este historiar da alma -- porventura a mais significante das historiografias -- remete-me para a maravilhosa Svetlana Alexievich, que assim mesmo se definiu: «historiadora da alma», aqui já não se socorrendo (exclusivamente) da intuição, mas também do testemunho vívido e vivido.

5 comentários:

Jaime Santos disse...

Tenho dúvidas se o novelista pode ser mais fiel do que o historiador. Pensamos, como Herculano, com base em conceitos, como a autonomia do indivíduo, que não existiam em épocas recônditas... É certo que a História é uma construção com base em documentos que nos dão uma visão parcial (nos dois sentidos) dos factos passados, que depende ainda da forma como os interpretamos, mas nunca seremos fiéis aos homens e mulheres de outrora de uma forma ou de outra, porque não sabemos verdadeiramente como pensavam...

R. disse...

Como o Herculano, tenho a convicção de que o ser humano é o mesmo desde tempos recuados. Eu diria que é o mesmo desde as grutas de Altamira e Lascaux, e mais do que os documentos, tantas vezes mentirosos, como ele afirma, a arte pode ser mais fidedigna.

Jaime Santos disse...

Pois, eu também acho, até da leitura de textos antigos, que existe muito de invariante no espírito humano, mas as ideias essas evoluíram. E se somos o mesmo ser que pensa, os conceitos que utilizamos são bem distintos de uma época para a outra, assim como as lições do passado que alguns de nós conseguem aprender. E se isso não faz toda a diferença, faz diferença.

R. disse...

No entanto, as ideias são uma camada fina que cobrem o animal, mesmo que racional. Creio que poucos conseguem sublimar essa circunstância. O amor, a morte, o medo, a vontade de domínio e poder, esses mantêm-se inalterados desde a mais remota antiguidade.

Jaime Santos disse...

É verdade...