segunda-feira, setembro 30, 2024
tempo de romance
«O chantre estimava-o. Chamava-lhe "Frei Hércules". / -- "Hércules" pela força -- explicava sorrindo -- "Frei" pela gula. / No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cónegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra: / -- É a última pitada que lhe dou.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)
«Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas de opinião. / Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
«Arrastava-me até casa, subia às apalpadelas, despia-me rezando fragmentos de velhas orações; e adormecia dum sono que parecia não dever ter fim. Mas outras noites, cansava-me: Depois de ter começado as minhas deambulações onanísticas -- sentia que me seria impossível prosseguir. Resolvia, então, renunciar, e acabar a noite como qualquer outro.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)
«Foram pouco a pouco erguendo-se para o céu, avolumando-se, os vultos das duas serras. Eram agora duas ilhas extensas, negras de cor, encosta a pique sobre o mar, o que aparentavam ser. / Mas no mar não há visões definitivas. Atrás de uma logo outra se forma, todas diferentes, variadas. Ilhas de ainda há pouco não sois mais agora do que os baluartes soberbos, altaneiros, da terra que vos destacou para indicar caminho ao mareante.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)
«De quando em quando, o desânimo vencia-o -- o desânimo e as sezões. / Se a terra fosse sua, quantas vezes se deixaria ficar na poisada a refazer o corpo. Mas se não andasse, quem havia de cuidar daquilo?... / Nunca patrão algum lhe atirara remoque por desmazelo no trabalho. Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» Alves Redol, Gaibéus (1939)
5 versos de Carlos de Oliveira
«No alto choupo torcido / da invernia e da seca, / enchiam de raiva os olhos / -- que os olhos vivem de raiva / na solidão da charneca.»
«Gândara», Turismo (1942)
domingo, setembro 29, 2024
sábado, setembro 28, 2024
uma actriz fulgurante
sexta-feira, setembro 27, 2024
tempo de novela
«Um indivíduo assomou-se à janela duma das carruagens paradas e escarrou com estrépito. / -- Vê lá quem vai passando...! -- disse doutra janela uma voz rouca, num modo meio repreensivo meio de escárnio. / Rosa Maria fora obrigada a correr uns passinhos, e o embrulho da velha Leocádia escorregou-lhe; sentiu-se dolorosamente vexada, pensou: «Se a minha mãezinha fosse viva...» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941)
«A mulher volvera à sua lembrança. Continuava a vê-la sentada ao sol, os pés sem tocar no chão, as pernas a badalar, a irem e virem sob o banco, como se estivessem num trapézio. Dir-se-ia que as suas pernas tinham, nessa hora, uma felicidade independente do tronco, todo um desejo de folgar que começava dos joelhos para baixo.» Ferreira de Castro, A Missão (1954)
«Infelizmente, corcovo -- do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade aos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)
entretanto, Netanyahu anda à solta em Nova Iorque
Bem fez a Mongólia, que mandou o tpi à fava quando Putin a visitou. O mesmo, aliás, deveria ter feito a África do Sul, por ocasião da cimeira dos BRICS, e como Lula já garantiu que fará (mas o Lula é alguém). Ou seja: a Mongólia deu-se ao respeito, como deverá fazer qualquer país que não passe por republiqueta das bananas. A farsa do tpi é tal, que Netanyahu anda à solta em Nova Iorque
Por falar nisso: ontem quando cheguei estava Montenegro a falazar na ONU; aguentei 30 segundos e não retive nada, a não ser banalidades. Aliás, o pensamento de Montenegro sobre questões internacionais deve estar ao nível do café da esquina, nada que ele não possa emendar (Cavaco, por exemplo, aprendeu no posto). Ao menos que aprenda também e não seja uma nulidade tipo António Costa, como teremos ocasião de ver já a partir de Janeiro.
quinta-feira, setembro 26, 2024
tempo de romance
«Esta conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos. A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos Bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhe o pior dos males, a perversão moral.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)
«Outrora não teria hesitado e, zape-zape, pinheiro arriba, iria ver em que estado se encontrava o novo berço e voltaria, depois, pelos ovos ou pelas avezitas ainda implumes, as pálpebras cerradas e o biquito glutão semiaberto ante qualquer ruído. Mas, hoje, só se fosse em pinheiro baixo e de gaio ou de rola, que eram bons com arroz.» Ferreira de Castro Emigrantes (1928)
«Eram dois estes filhos -- Pedro e Daniel. -- Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; -- a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda exagerar a curvatura de certos contornos a ampliar-lhes as dimensões transversais, como já no pai acontecia.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)
«De bordo, em curvas alternando com segmentos de rectas, o tanque era, de em par com o lineamento da escaleira que poucos passos dali conduzia à capela, duma ordenança mais harmoniosa que as rendas por minha mãe tecidas. Sobre ele erguia-se a figueira de muitos anos, sombreando o lugar a que a presença de S. Francisco dera um perfume místico de lenda.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918)
«Neste jardim, que só os cónegos velhos frequentavam em manhãs de bom sol morno no intervalo do serviço religioso, não passeava a esta hora ninguém; e dos claustros, igualmente desertos, subia o silêncio de ruínas mortas, entrecortado pelo murmúrio argentino dum turíbulo que oscilava, com isócrona cadência, por detrás da capela-mor, nas mãos diáfanas duma criança grave.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)
quarta-feira, setembro 25, 2024
um destroço optimista na ONU
Quando um velho destroço, marioneta da indústria armamentista, cujos fios se foram partindo com o mundo a olhar, em falência cognitiva e passo acelerado para a reciclagem -- quando esta anedota que pouco difere dos antecessores, a não ser na decrepitude, balbucia na A-G da ONU que está "optimista", depois de ser um instrumento azado para pôr o mundo a arder; após uma retirada humilhante e trágica no Afeganistão; o gritante falhanço da estratégia de enfraquecer a Rússia, à custa do sangue da Ucrânia, apesar das pias proclamações; com a miserável política hipócrita de sustentação do governo bandoleiro-religioso de Israel -- quando este este indivíduo, que votou favoravelmente o massacre no Iraque, com base numa mentira que só os atrasados mentais não viram e que deveria estar há muito pantufas calçadas a rezar o terço, pedindo perdão pelos seus muitos pecados de assassino, diz estar "optimista", todos temos razões para temer.
2 versos de José Régio
«Julgo-me Cristo numa cruz, Camões num hospital, / E o supremo dandismo da desonra me inebria.»
«Jogo de Espelhos», As Encruzilhadas de Deus (1936)
terça-feira, setembro 24, 2024
a malta é jovem
Um cínico diria que o magistério seria uma profissão extraordinária, não fora a existência dos alunos. Discorda-se do cínico: o problema não está nos discentes, mas na circunstância de alguns trazerem como bónus alguns pais muito pouco recomendáveis à saúde. Também há os simulacros de professores, cuja verdadeira missão é a de ganhar o ordenado enquanto sonham com uma reforma por invalidez. No princípio de tudo, porém, estão burocratas do ministério, entretidos com as suas carreiras e progressões nas ditas, trabalhando para as estatísticas que lhes são impostas pelos políticos de turno. Destes, uns são comissários do partido e outros, tipos bem intencionados, com ideias completamente diferentes dos antecessores no cargo, pondo-as em prática até chegar quem lhes suceda. Por isso, os estudantes costumam ser as primeiras vítimas deste carnaval, seguindo-se os bons professores e os pais conscientes, espécie ameaçada.
Feito o exórdio, comece-se por dizer que o professor Álvaro é um baril, e houvesse necessidade de filho nosso precisar de explicações de Geometria Descritiva, já saberíamos a que porta bater. Mas o professor Álvaro é também autor de BD e cartunista (além de arquitecto de formação) e teve a boa ideia de se inspirar no seu ganha-pão para aplicar o talento que lhe assiste na recriação da sua circunstância profissional – embora tal esteja longe de ser o exclusivo da matéria-prima a que recorre para o trabalho bedéfilo.
Conversas com Putos e com os Professores Deles é o terceiro livro desta série. Deixamos os docentes em paz – os muito bons dificilmente são parodiáveis, os maus são paródia triste – e vamos à maralha de 15, 16, 17 anos e às suas lindezas: do acne, terror das miúdas, à javardolice flatulenta dos rapazes; dos futebóis aos jogos e consolas (ou as gajas); da seca da matéria e da cabulice – as cenas com os alunos passam-se normalmente em contexto de explicação –, a temas mais sérios de política e sociedade, sempre com o enviesamento da auto-suficiência das opiniões fortes e supostamente definitivas, pois os putos é que sabem...
Álvaro (Parede, 1970) é particularmente feliz na captação das expressões que resultam de diálogos que atingem o mirabolante (por vezes nem se trata de diálogo mas de resmungos, quando não grunhidos): do surpreendido ao irritado, do facecioso ao conformado, do enfadado ao malicioso. Não se pense, porém, que o autor comete a feia acção de fazer nome e fortuna (pelo menos crítica) à custa daqueles infelizes. Não, ali há empatia e pundonor profissional, ambos especialmente necessários, quando aos professores de hoje (aos bons e até aos maus) é cometida pela sociedade não apenas a importante função de ensinar, mas também, quantas vezes, a ingrata tarefa de educar, competência que mingua a muitos paizinhos, sempre prontos a exigir dos docentes o suprimento do que a eles lhes falha.
Conversas com os Putos e com os Professores Deles
argumento e desenhos: Álvaro
edição: Insónia, São Domingos de Rana, 2019
(Novembro, 2019)
4 versos de Carlos Queirós
«Encosto a fronte à vidraça / E sofro, como um castigo, / Que leve a morte consigo / Tudo o que é feliz e passa.»
«Adagio cantabile», Desaparecido (1935)
segunda-feira, setembro 23, 2024
domingo, setembro 22, 2024
sábado, setembro 21, 2024
serviço público - Viriato Soromenho Marques, «Às portas do Inferno»
Texto demasiado importante nesta altura do campeonato, com a perigosíssima Úrsula em rédea livre, sem que os dirigentes dos maiores países da UE tenham estofo (político e intelectual) para afirmar a União Europeia como parte (preferencialmente da solução), mas como uma espécie de Hotentócia do imperialismo americano. (Os negritos são meus)
«O maior arsenal militar da Rússia, na região de Tver, a cerca de 500km da fronteira da Ucrânia, foi atacado na madrugada de dia 18. Kiev afirma terem sido drones a causa da destruição, mas a hipótese de mísseis de longo alcance e o local do seu lançamento continuam em aberto.
Recordemos a cronologia recente. Dia 13, em São Petersburgo, Putin fez uma declaração inequívoca dirigida aos EUA e à NATO. A permissão a Kiev de atacar alvos na Rússia com mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow e Scalp franceses, com mísseis balísticos táticos norte-americanos Atacms, ou outros semelhantes, equivaleria a uma declaração de guerra. O uso destes mísseis implica o envolvimento de pessoal da NATO, em especial dos EUA, pois é ele que acede aos protocolos e dados de satélite que permitem não falhar o alvo.
Dia 14, a reunião em Washington entre o PM britânico e o presidente Biden foi inconclusiva quanto à autorização de uso daquelas armas por Kiev. Contudo, nesse mesmo dia, o almirante holandês Robert Bauer, chefe do Comité Militar da NATO e o chefe das FFAA checas manifestaram, despreocupadamente, o apoio a essa autorização de uso.
Dia 17 foi a vez do SG da NATO, Stoltenberg, ter afirmado ao jornal The Times, numa toada provocatória, que a declaração do presidente russo era um bluff: “Putin anunciou linhas vermelhas muitas vezes, mas nunca escalou.”
O ataque de dia 18 pode significar que a NATO autorizou o uso dessas armas, sem o comunicar publicamente. Esse silêncio não se destina a enganar a Rússia, mas a manter os cidadãos da NATO no véu de ignorância programada em que nos encontramos há quase 3 anos.
No campo de batalha, as coisas correm mal para as forças de Zelensky, tanto no Donbass como na região russa de Kursk, ainda parcialmente ocupada por tropas de Kiev. O que está na ordem do dia é a existência de um estado de guerra, ainda que não-declarado, entre a NATO e a Rússia. Há uma mudança abissal. O objetivo da guerra passa a ser o de infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. O apoio militar defensivo à Ucrânia passou a ser claramente ofensivo. Colocámos as armas da NATO, manejadas e programadas pelos nossos especialistas, com a informação dos EUA, a mais detalhada do mundo, a destruir infraestruturas militares críticas da Rússia, esperando, como Stoltenberg faz crer, que a Rússia encolha os ombros…
Há muita gente brilhante temendo a possibilidade de a Humanidade ser destruída ou dominada pela IA (Inteligência Artificial). O que está a acontecer no Ocidente, com aventureiros a fingir de estadistas e militares incompetentes ao seu serviço, não vai nesse sentido.
O nosso maior perigo existencial é a EN (estupidez natural). Essa mistura tóxica de ignorância arrogante, de agendas preenchidas escondendo indigência intelectual e alergia ao pensamento crítico, de carreirismo tenaz imbuído no conformismo de rebanho… é isso que domina na esclerose das organizações, como sucede hoje na NATO e UE.
Com imperdoável ligeireza, os líderes do Ocidente substituíram as lições da Guerra Fria, por um temerário aventureirismo. Espetaram uma baioneta no coração da dissuasão nuclear: o imperativo de escutar, compreender e negociar com o adversário para que ele não se transforme no inimigo que abraçaremos na destruição mútua assegurada.
A NATO está ufana da sua enorme superioridade em população (980 contra 144 milhões) e material de guerra convencional sobre a Rússia. Recalcou, todavia, o facto de que a Rússia nunca cairá sozinha. Num cenário de derrota convencional, ela teria capacidade, apenas com uma fração dos seus 1710 mísseis nucleares operacionais, para aniquilar não só os Exércitos, mas também os alicerces da civilização na UE e EUA.
A maioria esmagadora dos cidadãos no Ocidente recusam o suicídio. Como é possível que os nossos Governos e Parlamentos deixem a questão da vida ou morte dos povos do Ocidente entregue a incendiários aprendizes de Dr. Strangelove, como Stoltenberg? As portas do inferno já estão abertas. Vamos em frente?»
Viriato Soromenho Marques, no Diário de Notícias de hoje
o que vai acontecer
«Mas que ganhara com a profissão de lavadeira, além desses conhecimentos de cultura geral? Unicamente as mãos encardidas de lixívia e os dedos vermelhos, cheios de calos, mortos à sensibilidade. / A Alice poisou a trouxa de roupa suja, que trazia à cabeça, junto do riacho. As pernas tinham varizes de tanto andar.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) § «O gado é a vida da gente de Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos meses de veraneio a terra fica nua e pode gerar. No Inverno veste-se de branco e adormece. Pastores e rebanhos pernoitam no quente dos currais, e o dia é da serra, na pista do verde.. Semanas e semanas, o gado no coberto, por culpa dos nevões, sem poder emigrar para o vale.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949) § «Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada.» machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)
sexta-feira, setembro 20, 2024
ucraniana CCLXIV: da desinformação na imprensa portuguesa
Depois de ter lido no Público, há uma semanas, que o partido de Sarah Wagenknecht era mais ou menos de esquerda na economia e políticas sociais, e mais ou menos de direita, entre outros exemplos de que me esqueci, por ser anti-Nato -- o idiotismo populista jornalístico em elevado grau... --, li há dias, no Diário de Notícias, um exemplo de desinformação russa ou instilada pelos russos: a ideia de que que a Rússia nunca entrará em guerra com a Nato por sua iniciativa.
Qualquer bivalve percebe que uma acção dessas acarretaria a resposta que se imagina; ao querer apresentar a tese de que isto constitui propaganda russa para desmobilizar os "europeus", estão a ser eles próprios agentes de desinformação -- sabendo-o, pois não se pode ser tão estúpido, a partir de certo patamar. Além disso, a prosápia de Trump sobre o tema não convenceu ninguém com dois dedos de testa, a começar pelos então apoiantes de Biden. A este embuste, que os plumitivos ajudam a espalhar, chamamos o quê -- jornalismo de referência.
Claro que há exercícios de prospectiva: quem sabe o que acontecerá daqui a duas gerações, ou até no próximo ano? Ninguém. Daqui a duas dúzias de meses, pode até ter deixado de haver UE, ou a Rússia como a conhecemos hoje -- ou mesmo os Estados Unidos. Mas isso não é jornalismo e muito menos informação.
tempo de romance - Manuel Ribeiro
«No espaço quadrangular, entre o claustro e a abside, tinham talhado, num período recente de desobstruções, um adorável jardim com os clássicos arruamentos de buxo enquadrando modestos canteiros de rosas e gerânios. Alguns pés de glicínias trepavam resolutamente, enroscando-se nos botaréus e nos muros rugosos ou seguindo a linha sinuosa das arcadas.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)
tempo de novela - Camilo Castelo Branco
«O rapaz tartamudeou, tiritando de medo. / -- Perdeste, ladrão? Vai em cata dela, e, olha lá: se a não trouxeres, não me apareças mais, que te arranco os fígados pela boca. / E deu-lhe dois valentes pontapés à conta. / Este João da Laje era um homem de princípios menos maus, assentados em religião e pátria: havia matado dois franceses doentes nas ambulâncias retardadas, e acreditava que o fantasma era a alma do capitão-mor e não a égua branca do vigário.» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)
quinta-feira, setembro 19, 2024
tempo de romance - Machado de Assis
«Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
quarta-feira, setembro 18, 2024
tempo de novela - Branquinho da Fonseca
«Durante este mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais parado possível. Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... Se soubessem como é bom! Como dá uma calma interior e como as ideias adquirem continuidade e nitidez!» Branquinho da Fonseca, O Barão (1942)
tempo de romance - Júlio Dinis
«Como homem de família, não havia também que pôr a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices -- que lhe não estavam no génio -- mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)
tempo de novela - Aquilino Ribeiro
«Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer. / Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)
terça-feira, setembro 17, 2024
tempo de romance - José Régio
«O cansaço atirava-me então contra qualquer muro. exausto como um pobre animal vencido. E na lúcida consciência da minha humilhação, da minha fraqueza, e da minha loucura, saboreava não sei que travor de triunfo. Uma espécie de libertação me sobrevinha. Eu experimentava uma vaga satisfação de destino cumprido!» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)
carne para canhão
O pregador estrito, de salmo na boca e Bíblia na mão, é um dos tipos característicos do género western. Morris, por exemplo, dedicou-lhe um dos últimos álbuns de Lucky Luke, e o nosso Vítor Péon congeminou uma curiosa figura de reverendo-pistoleiro que não terá passado dos esboços. No álbum desta semana, um desses espécimes é a personagem secundária tóxica da narrativa – à frente de um bando de sicários – e também agent provocateur ao serviço de interesses não muito pios. Em 1861, o Kansas, estado recente, tornara-se palco da luta entre esclavagistas do Missouri, a leste, e antiescalavagistas do Nebraska, a norte, uma vez que as autoridade estaduais dispunham do poder de optar por um dos sistemas, graças a uma lei de 1854, apontada como uma das causas da Guerra da Secessão, prestes a deflagrar. Markham, assim se chama a criatura, levanta as populações em comícios acalorados contra os malditos esclavagistas, “que recusam o progresso industrial e as novas leis alfandegárias (…), necessárias à recuperação financeira do nosso grande país”; ao mesmo tempo que, obcecado pelo pecado, e em especial com as mulheres “adúlteras”, corre as cidades para fazer “justiça” com as próprias mãos, sendo o companheiro abatido e a mulher levada para o celeiro onde é chicoteada até à morte, O pregador deixa a sua assinatura no local: uma folha das Escrituras com a parábola da mulher adúltera, presa por um crucifixo invertido e encimada por uma conveniente bandeira da Confederação. Esta criatura temível está, porém, marcada pela perseguição, de que vai tendo suspeitas: um cavaleiro misterioso de quem nada se sabe, vai na sua peugada, pelo rasto de crime que deixa. Ninguém sabe de quem se trata e nós, leitores, também não. Algumas reminiscências partilhadas dizem-nos que ainda criança se viu órfão após o massacre dos pais – que aparecendo num relance não tinham aspecto de colonos, antes citadinos. Criado pelos índios, o xamã ensinou-lhe a tirar partido das propriedades das plantas que afastam os espíritos malignos e o protegem do dom congénito, benção ou maldição: a capacidade de ver o passado de quantos se cruzam no seu caminho.
Lonesome, de Yves Swolfs (Bruxelas, 1955), autor também da série Durango (1980), com um traço soberbo e dotes de fisionomista, engendrou uma personagem fragmentada, à procura de si própria, Ágil com as armas e arguto, se há coisa de que desconfia é do bicho-homem, sentimento aligeirado quando se depara com uma prostituta honrada ou um jornalista destemido. Jornalista em cuja boca Yves Swolfs pôs a amarga visão que tem do poder político-finaceiro, sempre por detrás das catástrofes, a Guerra da Secessão, mas que assenta que nem uma luva na que está em curso na Europa: “Falo-lhe de uma casta que nunca sofrerá as consequências da guerra devastadoras que nos prepara... mas da qual, pelo contrário, tirará o melhor partido!...” Ao contrário da carne para canhão, que geralmente nem sabe o que lhe está a acontecer.
Lonesome – 1. A Pista do Pregador
texto e desenhos: Yves Swolfs
cor: Julie Swolfs
edição: Gradiva, Lisboa, 2021
(Maio, 2022)
segunda-feira, setembro 16, 2024
tempo de romance - Joaquim Paço d'Arcos
«-- E deste lado também! -- brada por estibordo uma outra voz triunfante. Não era miragem, invenção de olhos ansiosos de ver. Era verdade igualmente. / Dum lado os cumes de Sintra, do outro os píncaros da Arrábida, e entre eles o mar, o mar imenso, tranquilo, parecia que adormecido. Em linha recta, traçada entre os dois cumes pela vante divisados, seguia o Angola, sem dúvida alguma já no acerto do seu cálculo.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)
tempo de novela - José Régio
«Tapando-lhe a estação, havia outro comboio na primeira linha. Mas as carruagens ficavam tão altas que Rosa Maria desistiu de subir, assim carregada, e atravessar para o outro lado. Pôs-se a andar ao longo das carruagens. Soprava, a espaços, um vento seco e álgido, violento, contra o qual baixava a cabeça de lado, avançando a custo.» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941)
tempo de romance - Ferreira de Castro
«A pega, infatigável, ora procurando na terra, ora alçando-se à copa eleita, continuava a construir o ninho. Era já uma grande mancha, um grosso volume de pauzitos, seguro entre os últimos ramos do pinheiro. / Estendido onde a sombra lhe parecera mais agradável, Manuel da Bouça seguia o trabalho da ave e recordava o tempo da infância, já distante, em que vasculhava veigas e montes à busca de ninhos, só pelo prazer de os descobrir e disso se vangloriar ante o rapazio do lugarejo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
as declarações (parcialmente) acertadas de Nuno Melo, o portuguesismo de cu para o ar e uma sugestão de borla
Nuno Melo esteve formalmente correctíssimo sobre a pergunta que lhe fizeram a propósito da vila alentejana de Olivença. Aliás, nunca poderia ter dito outra coisa, algo que os jornalistas, patriotas de cu para o ar, além de indigentes (um truísmo), criticaram, pois a Espanha --, oh a Espanha, que passa a vida a falar de Gibraltar, embora ocupe Ceuta e Melilha, além de Olivença, sem esquecer a questão das autonomias, pode ficar melindrada. O respeitinho é tão bonito.
Embora formalmente o ministro tenha razão, a posição de Portugal poderia e deveria ser outra, para além deste formalismo bocejante. Se o Direito diz que Olivença é portuguesa, e a força diz que é espanhola, a posição do mais fraco -- um pouco como sucedeu a propósito de Timor-Leste em relação à Indonésia -- (a posição de Portugal) deveria ser a de defender um referendo naquele concelho, comprometendo-se os dois estados a respeitar a decisão do povo. Chama-se autodeterminação e é a única forma democrática e aceitável de resolver diferendos desta natureza. Seja em Olivença, nas países ocupados pelo estado espanhol, no Donbass e na Transnístria, no Saara Ocidental, no Tibete ou nas Falkland / Malvinas. Porque, como dizia o Trovador, o povo é quem mais ordena. Não é? Claro que a Espanha nunca o aceitará, mas isso já se sabe.
domingo, setembro 15, 2024
tempo de novela
«O "bagatelle" deixou a lata, pousou uma das mãos sujas sobre a escada e olhou para o beiral: / -- Vou pintar a palavra "Missão" no telhado, por causa dos bombardeamentos... / -- Muito bem. É preciso -- apoiou Mounier, sempre com um tom descuidado e já a afastar-se.» Ferreira de Castro, A Missão (1954) § «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté dos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra -- eu cá nunca me avistei com ele -- mas a verdade é que a neve vinha com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)
sábado, setembro 14, 2024
tempo de romance
«O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio -- que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «De três bicas, manando de rosáceas num pano de gracioso corte, com o entablamento coroado por pirâmides e um frontão em que se vazava uma guarita de santinho, apenas uma escorria no tempo da seca. Se pelos meses de águas vivas todas três brotavam, na tristeza das horas sem luz, à borda do silêncio revessado pelo convento, seu gorgolão era grave como uma salmodia de monges.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.» Alves Redol, Gaibéus (1939) § «As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os Godos tinham abraçado abraçando o Evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)
sexta-feira, setembro 13, 2024
ucraniana CCLXIII: o que vale é que os nossos generais-falcões estão aí para nos sossegar. E se os russos responderem?
1. Não sei o que se irá passar quando Starmer se encontrar com Biden. Sempre receei este momento: perante a possibilidade de Trump ganhar as próximas eleições, os neocons que funcionam com democratas e republicanos arriscarem, em desespero, subir a parada. Os ingleses, cães-de-fila dos americanos.
2. Entretanto um dos maiores criminosos de guerra vivos, Dick Cheney, declarou apoio a Kamala Harris, como se houvesse dúvidas sobre o que é o partido democrata. Aterroriza-me mais a influência deste facínora e doutros do mesmo jaez, que o aldrabão do Trump, com a sua campanha dirigida ao gado eleitoral, a propósito da dieta alimentar dos imigrantes.
3. Quando foi eleito, Zelensky, que não era o candidato dos americanos, prometeu trazer a paz à Ucrânia. E trouxe: a paz dos cemitérios.
4. Cenários para o cumprimento da ameaça: ainda consigo achar graça às ameaças de Medvedev. Claro que, subindo a parada, os russos não atacarão a Grã-Bretanha, nesta fase. Prevejo, nesse caso, duas possibilidades, para além de cenas malucas no ciberespaço, o pão-nosso-de-cada-dia: uma ameixa nuclear táctica em solo ucraniano, com um alvo muito bem escolhido (Lviv, quem sabe? Seria uma mortandade...); ou uma acção contra a Inglaterra directamente proporcional à sabotagem dos Nordstream. Acredito mais nesta possibilidade.
5. O que vale é os nossos generais-falcões, Isidro e Arnaut, nos garantirem de que isto é tudo paleio dos russos, ou seja, vão comer e calar, ou ladrar e não morder. Não sei. Parece que os russos já têm dinheiro para comprar botas, e aumentaram as importações das máquinas de lavar...
quarta-feira, setembro 11, 2024
vária
«Viajáramos a Nova Iorque para participar do Congresso Internacional do Pen Club, não comparecemos a nenhuma sessão, tampouco às festividades, não ouvimos um único discurso, relatório, comunicação, não soubemos dos debates. O que, na opinião de nosso compadre João Ubaldo Ribeiro, também ele convidado e presente ao Congresso, foi vantagem que tirámos da dupla pneumonia. Vantagem e das boas -- afirmou o romancista ao nos visitar.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990) § «Tomamos pela grande estrada d'Albert, uma recta sem fim, que corta uma planície vastíssima, por onde as searas, nos distantes tempos da paz, espalhavam com volúpia a alegria sussurrante das espigas gradas, fontes de felicidade e de fartura.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, 29-III-1917, Repórters e Reportagens de Primeira Página, II § «A esta hora, por esses campos, nem vocês imaginam o que os melros dizem de alegre e o que as borboletas vivem de contentes.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)
tempo de romance
«Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua.» Alves Redol, Gaibéus (1939) § «Depois de ter corrido a cidade, recomeçava: Preferia os becos, as sombras, os cantos e as escadinhas escusas. E envolvia no mesmo ódio furibundo as luzes dos cafés e os raros transeuntes normais que recolhiam. Era pela antemanhã que o meu delírio atingia o auge.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) § «-- Lá está! -- grita uma voz, louca de alegria. Era certo. Pela proa, um pouco aberto por bombordo, despontava de facto no horizonte um pequeno recorte de costa, ilhota perdida ou cimo de monte, cume de serra afinal.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933) § «À esquerda, para lá ainda da falda do outeiro, esbranquiçava, por entre a ramagem estática, o casario da aldeia. Desse lado, certamente de debicar os brincos vermelhos das cerejas, um gaio vinha, de quando em quando, esconder no pinhal o cromatismo da sua plumagem. "Chuá! Chuá!" E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) § «O destoante casario campeava, porém, já fora da catedral e formava, com o seu largo abraço saindo-lhe discretamente dos flancos, uma como que cintura defensiva lançada à roda da venerável cabeceira do templo, onde resplendia ainda o diadema estilhaçado das capelas góticas.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)
terça-feira, setembro 10, 2024
segunda-feira, setembro 09, 2024
o menino Ferreira de Castro
As terras têm o seu património, natural, etnográfico, arquitectónico. O legado literário em geral dá-lhes, porém, mais densidade. Amarante, com Pascoais, Vila do Conde tem Régio e o irmão Júlio/Saul Dias, Rio Maior e Ruy Belo, a Vila Franca de Xira de Alves Redol. Oliveira de Azeméis tem Ferreira de Castro, e a autarquia editou, no ano seguinte ao centenário do seu nascimento, uma BD para as crianças, da autoria do conterrâneo Manuel Matos Barbosa (1935), um nome do cinema de animação e do documentalismo.
Castro tem excesso de biografia: aos 12 anos emigrou sozinho para o Brasil, sendo enviado para um seringal na Amazónia. Dessas experiências extrairá matéria para dois extraordinários livros, que irão renovar o romance português, abrindo portas ao neo-realismo: Emigrantes (1928) e A Selva (1930). Porém, verdadeiro escritor, não se ficaria por aqui: Eternidade (1933) encerra um fundo existencialista numa narrativa de cunho social; A Lã e a Neve (1947), friso romanesco que é talvez o seu romance mais perfeito; ou A Missão (1954), uma novela que é uma jóia de problematização psicológica.
Como se fosse pouco, este autodidacta, foi durante décadas o escritor português mais traduzido, duas vezes proposto para o Nobel da Literatura, entre muitos outros factos que aqui não cabem. Mas o cerne dessa vocação está na primeira infância, na aldeia natal de Ossela, e Matos Barbosa, com um traço límpido e tons suaves, foi feliz em mostrá-lo.
O José Vai à Escola
texto e desenhos: Matos Barbosa
edição: Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, 1999
(Novembro, 2019)
tempo de reportagem
«Com seu sorriso sardónico e o olhar enviesado, não hesitou em responder-me: / -- Eu cá só lá vi pedras, carros, automóveis, cavalgaduras e gente!» Avelino de Almeida, «Como o sol bailou ao meio-dia em Fátima», O Século, 15-IV-1917 § «Sinto-me perdido num cortejo de sombras. Stelio, Foscarina, Francesca de Rimini, as virgens, a Gioconda, aglomeram-se, à minha volta, em multidão. Sinto em mim, de mãos postas, todas as imagens do poeta. Esta hora silenciosa é, para mim, a cidade morta de Gabriel... / Abre-se uma porta.» António Ferro, «O"Século" ouve Gabriel D'Annunzio», O Século, 7-XII-1920 § «Levanto-me, envergo pela primeira vez o meu uniforme de soldado português e em menos de meia hora fico pronto para a primeira viagem ao front. Toma-se à pressa uma pequena refeição matutina. Depois, é a abalada rápida, sob a chuva miúda e fria que não deixa de cair, para o campo de batalha do Somme -- esse cemitério imenso onde foram sepultadas pela artilharia britânica vilas e aldeias, das quais não existe nada hoje, absolutamente nada.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, 29-III-1917
domingo, setembro 08, 2024
serviço público: Viriato Soromenho Marques, o jornalismo analfabeto e a liberdade de procriar
"Quem tem medo de Sarah Wagenknecht?"
Nas vésperas da eleições alemãs, li, no inevitável Público -- a partilhar estupidezes sobre a guerra da Ucrânia com os também fatais Expresso, DN, etc. -- uma pèrolazinha dum qualquer jornalista analfabeto como a que segue: aquilo a que chamaram populistas de esquerda, nomeadamente ao partido que ficou em terceiro lugar nas duas eleições de há uma semana, caracterizava-se por aqueles serem "mais ou menos" de esquerda em matérias económicas e sociais; e "mais ou menos" de direita por posições anti-Nato (sic!), contra a venda de armas à Ucrânia, supostamente anti-emigração (VSMarques explica), etc.
Com que então, ser anti-Nato agora é ser-se de direita?! A criatividade involuntária do analfabeto compete com a do putedo comunicacional que trabalha para o Trump, ao transformarem a campanha antiaborto, numa causa pela "liberdade de procriar"...
O manicómio não é apenas woke, atinge também a beataria e os lunáticos evangélicos, pasto de votos para Trump e seus espertalhões.
o que vai acontecer
«A Alice lavara toneladas de camisas, uma pequena montanha de cuecas e sabia segredos curiosos: as ceroulas do presidente eram cor de rosa com uma fitinha preta e podia provar que, quando se dera a revolta para mudar o regime, S. Ex.ª, apesar do calmo sorriso que ostentava, tinha-se assustado.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) § «O lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queiró, arriba de Zebrais. É terra de pastores, encravada entre penedos. Os homens vivem ali, esquecidos dos outros homens, a cuidar dos rebanhos e a ver crescer os pastos.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1948) § «Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)
serviço público: "Conhecimento e liberdade"
"Porque não é livre quem não sabe distinguir o verdadeiro do falso." Paulo Guinote concluía assim a crónica da passada segunda-feira no DN, a propósito de um exemplo prático, num telejornal qualquer, de equiparação entre ciência e pseudociência, entre a razão e estados de espírito, "sensibilidades", tendências, inclusões que levam a oclusões, mas das cerebrais, de efeitos semelhantes às outras.
vária
«Janeiro de 1918 / Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo; não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida.» Raul Brandão, Memórias I (1919) § «Estava no Funchal havia quinze dias. Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola. O antigo ministro da União Sagrada era, nesse tempo, uma figura discutidíssima.» Artur Portela, «Como se perde uma "reportagem"», Uma Hora de Jornalismo (1928) § «Regressado do Brasil pela quinta vez, aqui trago de novo o meu testemunho de observador imparcial mas, tanto quanto sei e posso, compreensivo, perante o incansável ritmo de progresso que a esse grande país deu a sua posição hegemónica na América do Sul.» João de Barros, «Brasil de hoje», Diário de Lisboa, 21-VI-1946, Adeus ao Brasil (póst.) § «Eu bem na sinto! Eu bem na sinto!, apesar das fuligens do céu mal-humorado e da ventania que me apupa, através das frinchas das janelas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendências inexauríveis da seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por forma que já não é ficção o caso do homem que ouvia crescer erva nos campos, visto que eu há quinze dias ouço, no recanto onde vivo, sob uma umbela vermelha de paisagista, o burburinho da natureza que se revigora e emplumesce, numa dessas orgias de cor que faziam rir o olho azul de Rousseau e punham emoções na palidez fatigada de Huet, o paisagista da ilha verde de Seguin.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893) § «As notas que compõem esta navegação de cabotagem (ai quão breve a navegação dos curtos anos de vida!), à proporção que me vinham à memória, começaram a ser postas no papel a partir de Janeiro de 1986. Zélia e eu nos encontrávamos num quarto de hotel em Nova Iorque, ambos com pneumonia -- os dois, parece incrível --, febre alta, ameaça de hospital.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990)
sábado, setembro 07, 2024
tempo de romance
«Esta evocação do meu mestre acudia-me ao espírito sempre que, nos dias de sol, me era grata a frescura daquele remanso, à beira do mosteiro. Sobre o tanque, que se vedava para a rega, noite dia a fonte antiga levava a chorar. A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Ao Leitor» «Que Stendhal confessasse haver escrito um dos seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) § «Era miguelista -- e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no de uma cólera irracionável: / -- Cacete! Cacete! -- exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho. / Nos últimos anos tomara hábitos sedentários e vivia isolado -- com uma criada velha e um cão, o "Joli".» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «Ali por fins de Agosto era um tal entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de o ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) § «Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quase desaparecera, e os homens do norte haviam-se confundido jurìdicamente com os do meio-dia em uma só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e polícia romanas.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)
sexta-feira, setembro 06, 2024
Augusto M. Seabra, Carl Barks e eu
Muito já se escreveu e disse, e continuará a escrever e dizer-se sobre o impressionante Augusto M. Seabra o crítico por antonomásia, que ontem morreu. Tudo o que já li sobre ele faz jus ao que sempre li dele, muito intermitentemente, uma vez que nunca fui muito à bola com os jornais em escrevia, Expresso e Público, mesmo que se trate das duas grandes referências do jornalismo das últimas décadas, hoje uma sombra do que em tempos foram, e o que foram foram-no por causa de um (grande) jornalista, Vicente Jorge Silva. Eu, sempre antigo, era mais Diário de Lisboa (o extraordinário quotidiano, de Joaquim Manso a Mário Mesquita).
Adiante.
Com familiares comuns, estive uma vez em sua casa, há cinquenta e dois anos. Quase duas décadas mais velho que eu, era um tipo muito simpático. Presenteou-me com uma revista Tio Patinhas que trazia (e traz, porque ainda a tenho) uma daquelas histórias do Carl Barks que faziam sonhar todas as crianças e jovens, e tantas vocações aventureiras despertou -- cientistas, antropólogos, arqueólogos, líricos, viajantes, sonhadores... -- eu na última categoria, modestamente espero: «O segredo da Atlântida».
Aqui fica, em sua memória, que é também minha.
tempo de novela
«E o Manco teima e diz, com a ponta do cigarro requeimado ao canto da boca: / -- Jesus Cristo há-de voltar para nos dar a terra. / -- Voltar?! / -- Os pobres hão-de ser sempre pobres. / E o Fortunato: / -- Sempre. Sem pobres acabava-se o mundo. / -- O mundo é dos probes!» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931) § «Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora: / -- Ai D. Augusta, que anjo que é! / Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. "Enguiço" era com efeito o nome que me davam na casa -- por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880) § «Era por 1813, meado de Agosto, quando o pastor chorava encolhido, a um canto do curral, e pedia ao padre Santo António com muitas lágrimas que lhe deparasse a cabra perdida. / João da Lage, o amo, assomou à porta da corte, e bradou: / Perdeste alguma rês?» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)
quinta-feira, setembro 05, 2024
ucraniana CCLXII: paulatinamente, eles tornam aceitável, não a guerra, mas a ideia de que estamos em guerra e da sua inevitabilidade
Eles há muitos, alguns são até militares. Hoje ouvi duas dessas duas personalidades.
O comandante João Fonseca Ribeiro, na RTP3, dizendo basicamente isto: o próximo ano será de grandes decisões, e não é altura para líderes políticos "medrosos", uma vez que há que esperar que a Rússia ataque o ocidente europeu; ou então prevenir esse ataque. (Subjacente está a lengalenga de que a Rússia se prepara, mais cedo ou mais tarde para atacar países Nato, o que nem as criancinhas ou mesmo a minha cadela acreditam, por muito teatro que faça Trump.) Suponho que, para devem os países europeus (hoje citados por Zelensky) já autorizar o emprego do armamento ocidental no ataque, esquecendo-se de dizer que muito desse armamento é operado não por ucranianos, mas por militares ocidentais -- algo que um imbecil como o Borrell nem se preocupa em elucidar os cidadãos da UE. Presumo também que para Fonseca Ribeiro os medrosos sejam: Biden, Scholz, Starmer e Macron; e que os exemplos a seguir sejam as formigas aterrorizadas do Báltico ou quem sabe o insigne Boris Johnson, estrénuo representante dos nossos valores democráticos e liberais.
A segunda personalidade ouvida, desta vez na cnn-Portugal, Diana Soller (tinha de ser) disse que a China por enquanto não é um perigo militar perceptível, ao contrário da Rússia, que está em guerra contra os europeus. -- Como se sabe, foi a Rússia que se expandiu e não os Estados Unidos, via Nato. O mundo de pernas para o ar...
E por aqui me fico, reforçando que o propósito destes comentadores, ou pelo menos parte deles, é a de que vamos lentamente assimilando a necessidade do sacrifício. Em que grau, cada um saberá (saberá?).
Isto é inaceitável, e deve ser contraditado por todos quantos acham que há mais a fazer do que sermos joguetes dos americanos. E não digo isto por "pacifismo"; se há coisa que os portugueses fazem bem é a guerra, apesar de bisonhos. Da Guerra Colonial, em que éramos ocupantes seculares, recuando à Lusitânia que resistiu a Roma por mais de um século, se há coisa que este povo sabe fazer é bater-se -- mas, por favor, fazê-lo em nome dos interesses de outros por causa dos anões políticos que temos tido, vai um passo que só a inépcia e -- agora sim -- o medo, comandante Fonseca Ribeiro -- explicam.
quarta-feira, setembro 04, 2024
ucraniana CCLXI: Mongólia, Poltava e UE
O enorme prestígio do TPI saiu grandemente reforçado com a decisão mongol de ignorar a farsa e os farsantes. Como eles se devem rir. Eu rio-me. Mesmo quando oiço o nosso general Isidro a falar em mais um atentado às democracias, ou às ideias liberais, ou lá o que fosse o que ele queria dizer. Até porque o suprassumo do "liberalismo", os Estados Unidos, não só não pertencem ao TPI como trataram de acautelar os seus cidadãos: nenhum americano está sob a alçada do TPI, já nem me lembro que que administração tal foi decidido. USA! USA! Democracy for ever!
Na Batalha de Poltava de 1709, o exército da Suécia imperial de Carlos XII foi destroçado pelo da Rússia imperial de Pedro o Grande. Há algumas horas, dois mísseis Iskander russos rebentaram com uma academia militar ucraniana. Na versão oficial, 50 mortos e mais de 200 feridos; na versão russa (ouvi-a há pouco ao coronel Mendes Dias, pois o que nos servem não é jornalismo, mas propaganda que já nem consegue disfarçar), 200 mortos e mais de 500 feridos. Acontece que nesse instituto estariam a dar formação vários oficiais suecos, preparando a tropa ucraniana para manobrar os aviões para recolha de informações que a Suécia irá ceder à Ucrânia. Bingo! Não há-de a vigarista da ministra dos estrangeiros alemã, essa fraude que lidera os Verdes e que já despareceu dos parlamentos estaduais que foram a eleições no Domingo -- não há-de esta fraude clamar contra Putin...
Vamos rir-nos um pouco mais:
Annalena Baerbock (a fraude verde): "A brutalidade de [Vladimir] Putin (Presidente russo) não conhece limites", criticou a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, na sua conta da rede social X (antigo Twitter), acrescentando que ele "tem de ser responsabilizado". ("Notícias ao Minuto")
O almirante Kirby, o tipo que chorava frente às câmaras quando os russos bombardeavam a Ucrânia: "É um terrível lembrete da brutalidade [de Putin]", considerou hoje o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby." (idem)
E ainda o pateta substituo inglês, agora do Labour: "O chefe da diplomacia britânica, David Lamy, condenou também na rede social X o ataque mortífero russo àquela cidade ucraniana, afirmando tratar-se do "mais recente ato de agressão doentio da guerra hedionda e ilegal travada por Putin na Ucrânia"." (ibidem)
Entretanto a desavergonhada UE, em roda livre, sem ninguém que ponha a mão na Úrsula e no seu Borrell, "lamenta" que a Mongólia não tenha detido Putin. Desculpem, mas para além do abuso de poder destes primatas da comissão, estaremos nós em guerra com a Rússia e ainda não nos disseram? Recuso-me a acreditar que esta estrutura tão liberal, democrática e transparente tome determinadas decisões nas costas do povo europeu.
segunda-feira, setembro 02, 2024
serviço público: um grande texto de Carlos Matos Gomes
Um grande texto a propósito do que designou por "desratização" dos palestinos pelo wagner dos americanos, esses monumentais filhos-da-puta (o qualificativo é meu), a tropa israelita.
Mas o que lava mesmo a alma, e daria vontade de rir, a pensar nas carinhas de antónios-costas e outros rangéis, não fora tudo isto tão trágico, é o que escreve sobre a guerra da Ucrânia:
"A guerra da Ucrânia está já em estado de vida aparente. Foi desencadeada com base num mau estudo de situação em que os desejos de alguns aparatchiks que serviram as administrações democratas e republicanas confundiram desejos com realidade. Cometeram o erro que a sabedoria dos índios traduziu no aforismo: não se deve cutucar a onça com uma vara curta. Hoje não há qualquer hipótese de implantação de uma base americana na Ucrânia e do que se trata é de encontrar uma saída sem humilhação — o episódio de Kursk é exemplar. Resta Israel como carta ao “ocidente global” na fachada atlântica do seu teatro de operações com a China, quando o confronto passar para o Pacífico."
domingo, setembro 01, 2024
um duro coração de manteiga
Na vinheta inicial, sob um sol de canícula, um abutre de longas asas estendidas voa com a cabeça inclinada para o solo; a seguir, em grande plano, vemo-lo a fixar o olhar em algo; depois, a carcaça de um cavalo sendo devorada por um bando de aves; no quarto quadradinho, com o mosquedo a voltear, a carniça é arrancada pelos fortes bicos concebidos para retalhar. A partir da segunda vinheta, filacteras sem o apêndice característico transmitem-nos as reflexões de alguém: «As pessoas não gostam de nós. / Há quem diga que é porque passamos o nosso tempo no meio de cadáveres. / Transmitimos a morte como outros transmitem bexigas. / Também consta que cheiramos mal e que podemos dar azar. / Vá-se lá saber onde foram buscar isso! / A verdade é que as pessoas não gostam de nós. / E ainda bem.» Quinta e última vinheta da primeira prancha: um homem ainda novo, de barba cerrada, vestido de escuro, sentado de caneca na mão e cigarrilha na boca, encostado à carreta que lhe pertence, completa agora o seu pensamento: «Também não gosto delas.» É Jonas Crow – um gato-pingado, um cangalheiro – o herói desta série. Acompanham-no “Jed”, um abutre de asa embriada que Jonas não teve coragem de matar, e os dois cavalos da carroça funerária: “Zephyr” e “Cobalt”.
Pela amostra deste primeiro álbum, publicado originalmente pela Dargaud Benelux, em 2015, a saga de Jonas Crow tem tudo, autores e assunto, para vingar. O texto é de Xavier Dorison e o desenho de Ralph Meyer, ambos parisienses de 1971. O primeiro é argumentista exímio (O Terceiro Testamento, sequelas de XIII e Thorgal); Meyer, tem um lápis ágil e espectacular, além de abundantes recursos expressivos. Diga-se, a propósito, que a semelhança fisionómica com Mike T. Blueberry é, mais do que intencional; é um elo que os autores criam – por razões que nesta fase não são claras – à melhor BD western. A cada um a possibilidade de especular...
Crow é uma personagem, é a personagem: solitário, misterioso (transporta uma história consigo), de mão leve com a artilharia e raiva interior que o tornam temível, além de um coração de manteiga, capaz dos gestos mais altruístas – e também divertidos, como aquela citação da “Epístola de São Paulo aos Californianos”… Se o Duke, de Hermann e Yves H., de quem já aqui falámos, é um pistoleiro que não gosta de armas, Jonas Crow é uma máquina de matar que odeia violência... Aliás, o que não falta é um conjunto de personagens fortes, que tornam este western intenso e áspero, embora a violência não seja gratuita, antes uma exigência da própria trama, dotada destas personagens específicas: um antigo garimpeiro às portas da morte, dono duma cidade, ganancioso e cruel, uma jovem governanta inglesa hierática e sensual, um criado de casa ressentido, uma velha chinesa perspicaz, um xerife venal, e por aí fora, em intriga estonteante.
Undertaker – 1. O Devorador de Ouro
argumento: Xavier Dorison
desenhos: Ralph Meyer
cor: R. Meyer e Caroline Delabie
edição: Ala dos Livros, Benavente, 2019
(Novembro, 2019)