sábado, fevereiro 16, 2013

(MOSCOVO, 1952 -- OS DESMEMORIADOS)


 Ilya Eremburg e eu chegamos silenciosos de uma conversa com figuras gradas nos altos escalões a propósito de nosso amigo Jan Drda, atendendo pedido que ele me fez em Praga de onde venho para receber o Prémio Internacional Estaline da Paz: o prémio me credencia. Estamos em Janeiro de 1952, vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas de Moscovo, emborcamos os cálices de vodca no apartamento da rua Gorki, Ilya me diz: Jorge, somos escritores que jamais poderemos escrever memórias, sabemos de mais. No abalo da conversa que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando.
Afirmação categórica não impediu que, alguns anos depois, durante o período de Krushtchev, ao se abrir uma pequena brecha no obscurantismo soviético, ao despontar de uma pequena luz no meio das trevas, o autor de Degelo publicasse sete tomos de memórias, sete, nada menos: no sétimo Zélia e eu figuramos, simpáticos personagens. E isso não é tudo, pois Irina me contou, em 1988, estar pondo em ordem os papéis do pai com o fim de editar vários volumes de memórias inéditas que ele não consegui publicar sequer durante a abertura de Krushtchev: Ilya sabia de mais.
Durante a minha trajectória de escritor e cidadão tive conhecimento de factos, causas e consequências, sobre os quais prometi guardar segredo, manter reserva. deles soube devido à circunstância de militar em partido político que se propunha mudar a face da sociedade, agia na clandestinidade, desenvolvendo inclusive acções subversivas. Tantos anos depois de ter deixado de ser militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a ideologia marxista-leninista que determinava a actividade do Partido se esvazia e fenece, quando o universo do socialismo chega a seu triste fim, ainda hoje não me sinto desligado do compromisso assumido de não revelar informações a que tive acesso por ser militante comunista. Mesmo que a inconfidência não mais possua qualquer importância e não traga consequência alguma. Mesmo assim não me sinto no direito de alardear o que me foi revelado em confiança. Se por vezes as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações, morrerão comigo.

Jorge Amado, Navegação de Cabotagem -- Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei (1992), Mem Martins, Publicações Europa-América, 1992,

2 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

E eu que pensava serem silêncios destes verdadeiras cumplicidades!

Abraço

Ricardo António Alves disse...

O pior é se as cumplicidades pesam na consciência.

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