quinta-feira, setembro 29, 2022

a arte de começar mais depressa

 «Prelúdio (A música das ondas)». «Dispensou a cadeira de rodas e atravessou o portão do hospital cambaleando.»

«Amizade». «Quase toda a manhã é o mesmo suplício: quando chego na portaria, a vizinha gorda do trezentos e dois já está esparramada no banco de madeira, tendo ao lado o seu irritante cachorrinho peludo.»

«Gosto de enxofre». «Uma mulher entrar sozinha no bar, escolher a mesa, se sentar e pedir uma cerveja são coisas que nunca se vê por aqui.»

«Caminhos». «Diante da banca de jornais e revistas, o homem parece petrificado, os olhos grudados na primeira página do jornal que estampa a manchete MARADONA ESTÁ MORTO».

«O pedido». «A mulher está sentada na varanda, xícara de café e latinha de biscoitos de maisena no colo.»

«Cicatriz». «Seu Júlio disse que o homem cultivava cavanhaque grisalho e tinha uma cicatriz no rosto que ia do nariz até perto da orelha.»

«A primeira vez».  «Eu jogava futebol de botão no  piso da sala quando a ambulância freou na porta de casa.»

«Como num quadro sacrossanto». «Deus me perdoe, mas parecia que eu estava diante do quadro da Virgem e o menino Jesus -- o delegado repetia.»

«Estação Fim do Mundo». «-- Quanto é a a bala de tamarindo? -- pergunta o homem.»

«Café fraco». «Do jeito que me cataram em baixo da marquise, me despejaram aqui, sem uma palavra sequer, de explicação ou de consolo.»

«O amor é mais frio que a morte».  «Não há nada mais triste do que cemitério em dia de chuva.»

«O último post». «Eu poderia ter resolvido o assunto no tuíter, com menos de cem caracteres, algo como Quando vocês acabarem de ler isto aqui, eu terei acabado com tudo, mas ficaria faltando alguma coisa.»

«Mortos na cabeceira». «E esse medo de ir para a cama?»

«Herança». «A nuvem avermelhada manchava o céu desde o começo da manhã, prometendo que o dia não seria como outro qualquer.»

«Mangas vermelhas». «Marcaram encontro para o fim da tarde e pegaram o caminho da chácara.»

«Ternura». «A filha do velho recomendou que eu não usasse roupas "pronunciantes".»

«Queima de arquivo.» «A dupla formada por repórter e fotógrafo que fazia o plantão da madrugada na redação -- num tempo em que ainda havia plantões, jornalistas e redações -- me tirou da cama antes do galo cantar.»

«A última lembrança».  «Ele disse que não queria me ver nunca mais, nem pintada de ouro.»

«Decisão». «Foi dele mesmo a decisão de se mudar para a casa de repouso -- Solar da Amizade, estava escrito na placa de madeira -- e também a escolha do asilo.» 

«A crooner do Norte». «Hoje eu me lembrei de você, Cauby.»

«Deus sabe». «Quando minha mãe vinha com a trouxa de roupas descosturadas ou precisando de remendos, eu já ficava nervosa.»

«Tempos difíceis». «Cenário: Ponto de ônibus.»

«Cada um sabe de si.» «Lucinha chega ao trabalho com uma mão no olho e outra na boca, cobrindo o hematoma no supercílio e o machucado no lábio.»

«Cruzamento». «Ainda lembrava como se tivesse acontecido ontem do dia em que ela chegou com os olhos duros, aquele mesmo par de olhos que já amolecera tanto antes dos seus.»

«Os caçadores e a caça (Um conto de Natal)». «Na volta da escola, caminhando às margens da belíssima lagoa que ilumina e transluz no crepúsculo, o menino vê o homem passar correndo.»

«A vida é troca». «A vida é dura, doutor.»

«Mais cedo ou mais tarde o teto desaba». «A cena se passa no ano de mil novecentos e setenta e um.»

«Ainda tem sol em Ipanema». «De mãos dadas, Sergio e Clara pulam das pedras do calçadão para a areia morna e caminham para o mar.»

Luís Pimentel, Ainda Tem Sol em Ipanema (2022)

Prémio Ferreira de Castro / 2021

apresentação: Museu Ferreira de Castro, 30-IX-2022, 18 h.

(estão todos convidados)


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