terça-feira, janeiro 07, 2014

um negro no Panteão: a dignidade que lhe faltava

Quando estive no Panteão Nacional, na trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro (o maior prosador português do século XX), a visão dos túmulos de uns insignificantes presidentes da República (insignificantes, num contexto histórico de quase nove séculos, há que ter perspectiva...) foi uma espécie de anticlímax nessa significativa solenidade.
Se o Panteão pretende glorificar os maiores, a triste contigência amalgama a grandeza e a mediocridade; e assim, o que se pretendeu enaltecido acaba por trivializar-se. Ora Aquilino não merecia jazer ao lado de um tipo qualquer, cuja habilidade, astúcia ou outra qualidade prática guindou episodicamente a um mandato presidencial, mais ou menos (i)legítimo ou mais ou menos inócuo. Nem todos os chefes-de-estado tiveram as possibilidades e a ventura de D. Manuel I, cujo túmulo (ou jazigo) é, nem mais nem menos, que a igreja dos Jerónimos...
Também aqui prefiro a grandeza trágica da simplicidade e do isolamento, como o recato do féretro do Marquês de Pombal na Igreja da Memória ou a poética dissolução no nada que é tudo de Ferreira de Castro sob uma rocha numa vereda da Serra de Sintra.
Eusébio no Panteão, porque não? Lá repousa Amália, e também podia estar Carlos Paredes (se uma foi a voz de Portugal, o outro foi a música). Melhor: Eusébio negro da Mafalala está no panteão dum país de negreiros, que é talvez, e felizmente, o mais miscigenado da Europa: celtas e latinos, berberes e árabes, negros e judeus. Nesta perspectiva, que dignidade se dá ao Panteão Nacional e que lição nos oferece a História!

4 comentários:

beatriz j.a. disse...

Gostei deste artigo e estou muito de acordo. Não sei todos que estão no panteão, mas calculo que alguns 'compraram' o seu lugar lá enquanto ocuparam cargos políticos...

Ricardo António Alves disse...

Obrigado, Beatriz.

Carla disse...

Ainda assim, tenho as minhas dúvidas, se compararmos com outros que la deveriam estar.
Esta histeria colectiva que eclodiu na hora da morte arrepia-me pela negativa. Nunca gostei do excesso de homenagens póstumas e tudo isto me parece um excesso e um aproveitamento, pala além de um desrespeito por quem realmente perdeu uma pessoa amada.
Deviam deixar para daqui a cinco anos e, se os argumentos coerentes ainda fossem válidos, aprovar a trasladação.
Ou seja, Eusébio no Panteão? Por mim, não.

Ricardo António Alves disse...

Olá, Carla, até me apetecia escrever um post sobre o Panteão e quem lá está e não está. Mas como estou com pouco tempo, vou cingir-me ao Eusébio e àquilo que para mim ele representa, sem entrar em comparações e considerações sobre os outros.

Considero o desporto uma das mais significativas práticas humanas, idealmente no mesmo plano em que estão a ciência, a arte ou a política (e digo isto, sem fazer desporto nenhum...). Sendo assim, é natural e é justo que as comunidades destaquem e homenageiem os seus maiores atletas.
Ora o Eusébio não foi apenas um dos maiores desportistas portugueses; foi, e isso é incontroverso, um dos 10 melhores de sempre a nível mundial, no desporto que praticou (foi o futebol, mas poderia ser outro qualquer). Não creio (embora possa estar errado) que possamos dizer o mesmo a propósito de outro atleta português. Assim, para mim, é pacífico que ele venha a estar no Panteão (e também por razões que se prendem com a História de Portugal, como referi no post).
Para além disso, o Eusébio teve o condão (e quando digo condão, penso em algo que só a excepcionalidade traz consigo) de reunir a comunidade nacional como rara raríssimamente sucede: esquerda e direita, eruditos e analfabetos, ricos e pobres,crentes e descrentes benfiquistas e os outros. E isso foi um dom que o Eusébio teve. A comunidade a que ele pertenceu (e que se alarga a Moçambique e a Angola!...) reconhecer e agradecer essa dádiva da forma mais elevada que é permitida, só dignifica essa comunidade.

Estou completamente de acordo com a alegação do tempo (e tenho a certeza que não mudaria nada).

O folclore, a histeria, o aproveitamento mediático é consequência do que é a imprensa tv, jornais, salva-se a rádio, parece) hoje: é pior que má, é grotesca. Mas isso não atinge o Eusébio :)