domingo, fevereiro 02, 2025

o que está a acontecer

«A furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, de um escuro brilhante, quase negro. A banda esquerda dir-se-ia feita de uma só placa, inteiramente lisa; na outra havia um ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as más tentações, como os crivos, no fundo dos lavatórios, libertam a água suja de todos os elementos obstrutores.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)

«Alvas de neve e cuidadosamente dobradas, vão-se empilhando na mesa as peças dum minúsculo enxoval. / Duas mãos ternas e jeitosas, vermelhas e antes do tempo deformadas, passeiam as roupinhas húmidas do borrifo, alisam-nas, empunham de novo o ferro que muitos anos de uso poliram: são elas, em toda a casa, o único sinal de vida.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)

«O rapaz magro esteve um momento raspando o chão com a bengala -- e foi andando devagar ao comprido da plataforma. Reparara agora no rapaz do campo, que supunha ia a Lisboa embarcar para o Brasil: e, sensibilizado pela face tão desolada da velha, ia pensando que o Emigrante seria um motivo tocante de poesia social: daria quadros de cor rica -- os vastos azuis do mar contemplados duma amurada de paquete, as noites saudosas, longe, numa fazenda do Brasil, quando a lua é muito clara e os engenhos estão calados; e aqui no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando os correios...» Eça de Queirós, A Capital (1877/1925)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Da humildade de nascimento de Luís de Camões tornam-se porta-voz todos os actos notórios da sua vida. Mas já, àquela altura da História, origem modesta não implicava necessariamente incultura. Onde receberam a formação Gil Vicente, Mendes Pinto, Damião de Góis, Diogo do Couto, Pedro Nunes, Garcia de Orta, para não ir mais longe, figuras coetâneas no zodíaco das letras nacionais e saídos do matagal plebeu? Decerto que Luís de Camões não estudou o muito que soube e traduziu para 'Os Lusíadas' com os profissionais do 'Mal-Cozinhado'. É admissível que, ao tempo, um espírito ávido de saber e aberto viesse a completar a sua ciência de humanidades autodidacticamente como o fizeram, nos nossos dias, ao que parece, Alexandre Herculano, Oliveira Martins e Lúcio de Azevedo, por exemplo.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões - Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)