segunda-feira, fevereiro 10, 2025

a autobiografia de Eric Hobsbawm - .I impressões gerais

Terminei há pouco a leitura da autobiografia de Eric Hobsbawm (1917-2012), Tempos Interessantes -- Uma Vida no Século XX (2002). Nascido em Alexandria, filhos de um judeu inglês e de uma judia austríaca, a infância e adolescência decorrem na Viena pós-imperial, terminando na Alemanha hitleriana, onde se torna jovem comunista, e da qual se desterra para o seu país, a Inglaterra, onde tinha família que só então conhece, pouco depois da ascensão nazi.

Hobsbawm foi um dos grandes historiadores do seu tempo, aliando a análise marxista de base a um espírito simultaneamente crítico e criativo e não-dogmático. Pertencem-lhe ou desenvolveu conceitos como o da dupla revolução (Revolução Industrial e Revolução Francesa), "invenção da tradição", "o longo século XIX" (1789-1914) ou o "curto século XX" (1914-1991), nas suas obras mais emblemáticas: A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 (1962), A Era do Capital: 1848-1875 (1975), A Era dos Impérios (1875-1914) (1987) e A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991)  (1994). Foi também pela atracção pela cultura popular e pelo ethos dos marginais que escreve a esplêndida História Social do Jazz (1959) ou  Bandidos (1969), entre outros títulos.

Nestas memórias assume erros de avaliação, como observador-historiador e como político-intelectual. Crítico acérrimo do estalinismo, mas sem nunca cair na apologia do capitalismo ou inflectir para a direita, como sucedeu com tantos intelectuais, à medida que a leitura se desenrola estamos sempre à espera que ele anuncie a sua desvinculação do Partido Comunista da Grã-Bretanha, ao qual aderiu em meados da década de 1930: por exemplo, a tomada de Budapeste pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em 1956 (que entre nós está na origem do abandono do PCP por Mário Dionísio). Quando verificamos que ele se mantém no PCGB -- a seu modo, é claro, e como intelectual de espírito objectivo -- por ocasião da Primavera de Praga e a repressão da liderança de Dubcek e do seu "comunismo de rosto humano", percebemos que ele nunca abandonará o Partido -- com maiúscula. No fundo, é o partido que se extingue (em 1991) com ele lá dentro. Percebe-se: velho comunista, renegar o partido seria, na minha interpretação, renegar-se a si próprio e ao trajecto em que consolidou o seu edifício historiográfico: mantendo-se marxista, mantém-se no Partido Comunista, no entanto com outra distensão, diferente da do jovem militante dos anos 30 a 50. Percebe-se também que se sente atraído pelo eurocomunismo de Berlinguer, criando fortes laços com o PCI, nomeadamente com Giorgio Napolitano, intelectual que viria a ser Presidente da República já neste século.

O meu desapontamento prende-se com ausência de referências a Portugal -- apenas duas, uma das quais certeiríssima, ao caracterizá-lo, num parênteses de um capítulo sobre a Espanha, como um "país enclausurado". Não aparecer o 25 de Abril e a revolução que se lhe segue é lastimável (nessa altura andava por outras paragens, mas ainda assim). Não aparece Cunhal, para o qual suponho não tivesse já grande paciência, mas duvido que não se entusiasmasse com Vasco Gonçalves e muito provavelmente com a Reforma Agrária. Há referências indirectas à Guiné Portuguesa e aos "criminosos da Unita"; o Brasil, com um pouco mais de sorte: Prestes, Kubitschek, Niemeyer e principalmente Lula, com quem priva, deliciado com a ascensão do PT. Também não aparecem os escritores, como os comunistas mais internacionalizados, Jorge Amado ou José Saramago, já Nobel e, pela igual ausência, parece que já não terá dado pelo Pessoa do Livro do Desassossego, cujas primeiras traduções na língua inglesa datam de 1991.

Judeu nascido no dealbar do seu short century, meio inglês-meio austríaco, e no olho do furacão nazi quando o extermínio começava, comunista num irrelevante PCGB, historiador assumidamente marxista e de largo alcance, excepto para lá da Cortina de Ferro, onde só foi traduzido na Hungria (sem esquecer a Iugoslávia, outra realidade, em esloveno), noutro post farei uma recolha de frases destes Tempos Interessantes. 

(ver também aqui, Hobsbawm a propósito de Louis Armstrong)


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