sábado, dezembro 31, 2022

os meus votos para 2023

que a Rússia dê uma lição aos patifes dos americanos, como está a dar, e que os palhaços que andaram a envenenar a opinião pública mundial sejam apontados a dedo, sem contemplações para os patetas dos nossos políticos, sem vergonha na forma como se mostram vassalos obedientes desses mesmos poltrões; 

que o grande Lula salve o Brasil (e a Amazónia);

saúde para todos, a começar por mim.

12 músicas de 2022 - #12. «Warning Signs» (Band of Horses)

quinta-feira, dezembro 29, 2022

uma III República doentíssima

 É fácil dizer que isto  está podre (eu próprio sou um dos que). Podre, o sistema político, não sei se já estará -- afinal, uma imprensa mais ou menos livre ainda comete estragos, viva o Correio da Manhã (!), mas que está doentíssimo, creio ser uma evidência.

De há muito que os partidos do sistema (PS, PSD, CDS) são cliques de interesses particulares, e os elementos saudáveis que por lá ainda andam não têm força para que aquilo se auto-regenere -- são, de resto, os primeiros a levar um encosto. O resto: o PCP, partido de nicho, cada vez mais, tem pelo menos o mérito de ser a consciência crítica do regime; o Bloco de Esquerda anseia por ser sistémico; a Iniciativa Liberal poderia ser uma boa ideia de refrescamento do espectro partidário, noutro enquadramento jurídico-político; um aborto como o Chega não passa de um sintoma do estado da questão.

Ninguém acredita que o sistema tenha em si os anticorpos que lhe permita sair desta mistela de políticos profissionais saídos das juventudes -- de Costa a Passos Coelho --, deste conúbio execrável entre profissionais da política, escritórios de advogados e jornalismo de maus costumes, que deu nisto.

É pena, pois em nome da democracia e da comunidade (do povo, da nação o que quiserem), o melhor seria fechar esta III República e inaugurar a IV, expurgando o que nos últimos quase 50 anos concorreu para que, por exemplo, existam este casículos de técnicas de despedimentos alçadas a secretárias de estado com indemnizações milionárias -- tudo na estrita legalidade orquestrada pelos escritórios de advogados que gerem o país -- pagas pela mesma empresa, em falência, em que a dita senhora cortava vencimentos. Já para não falar em todas as outras embrulhadas, do secretário de estado de Caminha aos pés-pelas-mãos do ministro Cravinho, que tem muito o que se explicar. 

"um soalho grande como uma província"

«Embalado pelo chouto da burra, nas horas de caminho que nos separavam da aldeia eu fantasiava um soalho grande como uma província, atravessado por dezenas de linhas, com comboios e estações, um mundo de gente. Tudo isso em movimento, luzindo de cores, a correr, a apitar, a resfolegar, a deitar fumo, obedecendo ao meu desejo.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

12 músicas de 2022 - #9. «Nas Noites de Lisboa» (José Cid)

quarta-feira, dezembro 28, 2022

caracteres móveis

«E na confusão uns tantos, de exaustos, se deixaram ficar no cais, a ver o barco sumir-se pelo mar dentro, como se deles se houvesse despegado a derradeira fé na vida.» Manuel Ferreira, Hora di Bai (1962)

«É uma terra ainda assim grande, se formos comparar, primeiro em corcovas, alguma água de ribeira, que a do céu tanto lhe dá para faltar como para sobejar, e para baixo desmaia-se em terra fita, lisa como a palma de qualquer mão, ainda que muitas destas, por fado de vida, tendam com o tempo a fechar-se, feitas ao cabo da enxada e da foice ou gadanha.» José Saramago, Levantado do Chão (1980) 

«Perturbavam-se de prazer a trepidação da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio.»  Vergílio Ferreira Manhã Submersa (1954)

12 músicas de 2022: #8. «Must Have Been New» (dEUS)

terça-feira, dezembro 27, 2022

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 «É bem certo que conduzimos ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios.» Ferreira de Castro, do "Pórtico" de A Selva (1930)

«Nós não queremos morrer! Nós não queremos morrer!» Ferreira de Castro, do "Pórtico" de Eternidade (1933)

«Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor.» Ferreira de Castro, do "Pórtico" de Emigrantes (1928)

12 músicas de 2022 - #7. «Love Earth» (Neil Young with Crazy Horse)

segunda-feira, dezembro 26, 2022

12 músicas de 2022: #6. «In These Times» (Makaya McCraven)

" recto como a luz rectilínea dos seus olhos"

«Ana Paula refugiara-se num súbito mutismo, como receosa de se ter expandido em demasia naquela espontânea declaração que nenhum mau pensar inspirara e que só reproduzira a singeleza do seu sentimento, recto como a luz rectilínea dos seus olhos, leais e profundos.» Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)

"o trabalho persistente do caruncho"

 «Silêncio. Ponho o ouvido à escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.» Raul Brandão, Húmus (1917)

'o nada que é tudo'

«Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega e de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.» Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1846)

12 músicas de 2022 - #5. «I'll Love You Till The Day I Die» (Willie Nelson)

o "arrojo da gatunagem"

«A cercar os mimos viçosos da natureza a a muitos deles servindo de dossel, corria a vinha, toda armada em carvalho e arame, com espigões no muro branco que ele sozinho erguera, aos domingos, desde os alicerces à dentadura de vidros partidos -- veto indispensável ao arrojo da gatunagem.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

12 músicas de 2022: #4. «Dilúvio» (A garota não)

domingo, dezembro 25, 2022

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 «A glória de não consentir que a mentira e a ingratidão mandem nos homens e nos povos sempre valerá o mesmo ou, porventura, um pouco mais do que a triste vanglória dos incitadores da guerra e dos vendedores de canhões.» João de Barros, «Lealdade» (1948), Adeus ao Brasil (s.d. - póstumo)

12 músicas de 2022 - #3. «Coral no. 1» (João Pedro Coelho)

cara e coroa

Os super-heróis aparecem nos anos 30, como reflexo da ausência de resposta satisfatória das autoridades à criminalidade. Espécie de vigilantes mascarados, operam ao lado ou à margem da lei, perseguindo delinquentes aterrorizados, o que lhes dá uma aura no imaginário popular com a qual um Dick Tracy não pode competir.

Batman pertence a esse universo, mas tal como os seus colegas mais interessantes (Fantasma, Homem-Aranha, Demolidor) é demasiado humano. Em A Piada Mortal / The Killing Joke (1988), Alan Moore foge ao modelo maniqueísta do herói vs. vilão: o Joker, arqui-inimigo e personagem central desta história, ganha o estatuto de uma espécie de duplo do homem-morcego, cara e coroa de uma mesma moeda. Narrativa impecável, flui em dois planos: o da actualidade – a fuga do Asilo Arkham e a perseguição levada a cabo pelo caped crusader, em que o Joker faz todo o mal para ser encontrado; e uma acção pretérita que nos conta a origem do criminoso, presenciada pelo Batman. À subtileza do argumento junta-se o desenho superlativo de Brian Bolland: nunca o Joker pareceu tão horrível e tão frágil; e o Batman, saído há 80 anos do lápis de Bob Kane, está terrivelmente espectral, ao nível dos melhores artistas que o serviram, a começar por Neal Adams.


Batman – A Piada Mortal

argumento: Alan Moore

desenhos: Brian Bolland

cor: John Higgins

Editora Abril, São Paulo, 1988

(Setembro, 2019)





12 músicas de 2022: #2. «Age of Anxiety I» (Arcade Fire)

sábado, dezembro 24, 2022

Feliz Natal!

Marge

 

12 músicas de 2022: #1 «Against the Wind» (Cat Power)

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«Era com efeito notável e interessante o grupo a que nos tínhamos chegado, e destacava pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares -- que abundam nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial.» Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1846)

 «Não obstante,  dizia-se pelo povo que tinham pendurado os grevistas um a um de cabeça para baixo nas traves do calabouço e os tinham vergastado a todos horrorosamente...» José Marmelo e Silva, Adolescente Agrilhoado (1948)

«No convés, lavado de fresco, Juvenal Gonçalves, o busto flectido sobre a amura, ressuscitava a pretérita visão, com tanta pureza emotiva como se, realmente, fosse a primeira vez que ali aproasse um navio.» Ferreira de Castro, Eternidade (1933)

sexta-feira, dezembro 23, 2022

quinta-feira, dezembro 22, 2022

«O Violeiro»

falta de paciência (ucranianas CXLVI)

Hoje na rádio, ouço dizer que o Macron defende que a paz futura não pode ser deixada nas mãos de chineses e turcos...

Mas como é que este estúpido projecta um mínimo papel para a União Europeia, quando ele e outros governantes deram rédea solta à Ursula e ao atraso de vida do Borrell, já para não falar na flausina que preside ao PE, e se deixaram ainda ultrapassar pelos trânsfugas dos ingleses? Nem França ou Itália; a Polónia com uma conversa toda própria; a Suécia e a Finlândia com mais medo da Rússia do que da URSS, o que faz rir.

Os russos querem ver estas nulidades pelas costas, no que fazem muitíssimo bem.

é mais ou menos isto (ucranianas CXLV)



 

quarta-feira, dezembro 21, 2022

vinte mil e quinhentos milhões de dólares (20.500.000.000.000$) a 'ajuda'militar americana à Ucrânia -- o problema é que vão ter mesmo de derrotar a Rússia (ucranianas CXLIV)

 Entretanto, assistida a declaração do velho patife senil, penso se caberá na cabeça de alguém que os russos não sintam um profundo desprezo e asco ao verem aquela canalha a meter o bedelho emporcado em Kiev, Minsk, Moscovo... Não estou a ver. Vão ter mesmo de derrotá-los, no campo de batalha ou minando por dentro, como fizeram na Ucrânia, tentaram na Bielorrússia, no Cazaquistão e na própria Rússia, como os navalnys a que podem lançar mão. 

Ouvir Marcelo na Roménia, sem decoro a repetir histórias da carochinha. Patético.

«Louvação»

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«Em roda, sentados sobre almofadas de seda antiga, estavam homens de negro e mulheres de colo nu.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

«Fazendo sentinela à terra pródiga, duas cerejeiras contrastavam, pela sua frescura e opulência da folhagem, com a figueira árida -- apesar de tudo muito mais feliz do que a bíblica, pois Judas fora substituído por uma grande abóbora amarela, que pendia da primeira forquilha.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«Lá iam, cada qual à sua vida, ela para casa, onde o filhito a aguardava, amuado talvez por não ter ido ver o pai; o amigo à vida livre e fácil da boémia dourada, em que, mais discretamente do que ele, mas talvez com bem maior arte, se sabia conduzir sem se lhe sacrificar.» Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)

revisto: «Mickey's Christmas Carol»




terça-feira, dezembro 20, 2022

«Deus Lhe Pague»

«--Compreende?»

Assim começa o romance A Amante Holandesa (2003), de J. Rentes de Carvalho (1930), narrativa de qualidades assinaláveis, que não posso enumerar num mero post. De qualquer modo, subscrevo a opinião de Saramago, trazida à capa da minha edição: «O prazer  de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza.» 

Talvez não haja maior qualidade literária do que a expressão simples; e como é difícil e trabalhoso atingir a simplicidade na escrita...  Simplicidade sem simplismo, como é, ou devia ser, óbvio: a consistência de um escritor afere-se pelo que diz na forma como o diz. Quanto mais claro, o estilo, e quanto melhor souber sugerir, maior o escritor. Sem estas qualidades, nem sei se o qualificativo será bem empregue. Escrever é muito mais que alinhar palavras e encadear frases.

Por outro lado, A Amante Holandesa inscreve-se na tradição realista do melhor romance português. Contemporâneo na linguagem, é ao mesmo tempo expressão da nação que o pariu, o que a mim me interessa sobremaneira.

 Vamos pois a este incipit  minimalista: «--Compreende?»

O quê? Impossível dizer. Entramos mo meio de um diálogo que não é de circunstância, como nos assegura a interrogação. Quem? Não é possível identificar; quando e onde?, omisso; como e porquê?, idem.  Em resumo, nada nos é dado, a não ser  um diálogo em andamento.

O título não ajuda, a não ser indicar que a trama andará em torno ou terá como fundo uma mulher estrangeira, e que uma relação existe ou existiu entre ela e alguém.

A epígrafe reproduz uma passagem de uma carta do Marquês de Sade ao seu procurador: «Je ne suis pas heureux, mais je me sens bien.» -- frase que só por si daria um ensaio, e que sem acrescentar outra informação ao incipit, serve para adensar a atenção do leitor.

Que se trata de um diálogo entre o protagonista-narrador e Amadeu, dito "o Gato" -- uma personagem da nossa literatura --, amigo de infância, num reencontro de muitos anos, cujo tempo torna distante ou algo cerimonioso, na aldeia natal, em Trás-os-Montes, isso o leitor verá em seguida.

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segunda-feira, dezembro 19, 2022

«Coração Vagabundo»

a grande travessia

Arlindo Fagundes (Ovar, 1945) é um autor de BD veterano que milhares de portugueses conhecem, em especial pelas ilustrações da colecção «Uma Aventura». O terceiro álbum do seu herói, Pitanga, O Colega de Sevilha, coloca-o no centro de um dos maiores dramas dos dias de hoje: o tráfico de refugiados e migrantes ilegais, da costa de Marrocos às praias de Espanha.

Enquanto este texto é escrito, dezenas de refugiados e imigrantes, esperam há semanas, ao largo da ilha italiana de Lampedusa, autorização para desembarcar; alguns atiram-se ao mar, julgando que conseguem vencer as duas ou três milhas que os separam da costa; na ilha grega de Lesbos, milhares aguardam, numa espécie de limbo, que a vida prossiga, nos perigos que encerra um centro de refugiados... O Colega de Sevilha é, assim, um mergulho na actualidade que traz à tona uma velha discussão, a propósito doutras artes, mas também com cabimento na BD: a de esta poder ser igualmente bem servida se tratar de assuntos do nosso tempo. Hergé, de quem se fala aqui ao lado, é disso exemplo: boa parte da sua obra abordou temas candentes que lhe eram contemporâneos. E nem é necessário enveredar por vias panfletárias e politicamente comprometidas – basta tão-só mostrar. O livro de Arlindo Fagundes é, desse ponto de vista, extraordinariamente conseguido.

O protagonista desta história, Pitanga, “barbeiro de luxo ao domicílio” e motard aficionado, com o seu inconfundível cachecol branco às bolinhas pretas e t-shirt de riscas à Pat Metheny, tem laivos de anti-herói e um humor ligeiramente ácido. Pela pinta e pela pose, entra bem na categoria das personagens carismáticas da BD europeia, de Blueberry a Corto Maltese. Em bolandas em Tânger, e coagido por uma rede de traficantes a pilotar um desses pneumáticos a motor que costumamos ver sobrelotados nos telejornais, faz a travessia do Mediterrâneo com umas quantas dezenas de foragidos da África Subsaariana, muitos deles harragas, ou indocumentados – gente que queimou a identificação do país de origem, para que não se possa determinar se são refugiados de um estado em guerra ou meros migrantes económicos. São passageiros do desespero que não se limitam à parte negra do continente africano, mas também jovens magrebinos que fogem das suas aldeias, de um horizonte sem perspectivas de vida. Com Pitanga segue uma amizade recente, Mané, um simpático guineense com todo um passado de envolvimento na complicada e perigosa política da Guiné-Bissau – o tal colega de Sevilha

Trata-se de uma eficaz BD de formato clássico e muito bem documentada. A narrativa é fluida e aberta, deixando alguns pontos do argumento por esclarecer, quem sabe para outros assados, em próximo álbum. A organização das pranchas, oscilando entre oito e 14 vinhetas, não prejudica a fluência narrativa, para a qual contribui a desenvoltura do traço de Fagundes. Este é também o primeiro álbum a cores de Pitanga, com um óptimo trabalho de José Pedro Costa, tanto na garridice das claridades do sul, como no breu nevoento da travessia, páginas, aliás, de antologia no âmbito dos quadradinhos nacionais.


O Colega de Sevilha

Texto e desenhos: Arlindo Fagundes

Cor: José Pedro Costa

Arcádia, Lisboa, 2019

(Agosto de 2019)






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«Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos de amor que o tinham embalado.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

«E sumiu-se no corredor sombrio da hospedaria, de soalho enodoado e paredes transpirando imundície.» Ferreira de Castro, A Selva (1930)

«O comboio da linha do Sabor existia para meu prazer, era o brinquedo em tamanho grande que me tinham dado e que, num ar de excitação e festa, me levava para a aldeia ou dela me trazia.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

domingo, dezembro 18, 2022

«Unmade»

no Qatar e, já agora, também por cá


 

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«Ao voltar, num fim de outono, de demorado estágio em França e embevecido poiso nas suas catedrais, Luciano apaixonara-se subitamente pela Sé, nostálgico de Chartres, de Amiens e de Reims.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Estava um grande dia e ali se quedou mais tempo do que lhe era necessário para  rezar a tércia, consolado do sol que lhe varria o reumatismo dos ossos e, na terra de vessada, puxava para fora, verdinhos, dobrados como orelhas de gato, os rebentos primeiros do batatal.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

«Sob estas capas de vulgaridade, há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície.» Raul BrandãoHúmus (1917)

sábado, dezembro 17, 2022

quinta-feira, dezembro 15, 2022

quarta-feira, dezembro 14, 2022

que povo ucraniano? (ucranianas CXLIII)

No prestigiado circo em que se tornou o Parlamento Europeu, os palhaços resolveram dar o Prémio Sakharov ao "povo ucraniano", como se aquelas criaturas ligassem alguma coisa ao povo, ucraniano, ou outro.

E que será para estas luminárias o "povo ucraniano"? Os que se defendem dos russos de Putin ou os que se defendem do Zelensky e do Pentágono?

«E de súbito um sino»

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terça-feira, dezembro 13, 2022

«Canção Longe»

a arte de começar

«O comboio do sul parou na pequena estação sòzinha, perdida no descampado, entre grandes searas verdes já espigadas. Padre Dionísio, moço e ágil, saltou da 3.ª classe, poisou no chão a leve mala de viagem e olhou em roda, à espera que alguém se lhe dirigisse. Nenhum outro passageiro descera. Dois homens rústicos, tipos de guardadores de gado, de mantas e safões de pele de ovelha, ostentando militarmente cajados altos como armas em descanso, atentaram nele, curiosos, pasmados, mas sem quebrarem suas atitudes rígidas, indiferentes àquele estranho que chegava.» Manuel Ribeiro (1878-1941), A Planície Heróica (1927)

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«Eu experimentava uma vontade impaciente e desenganada de me descartar de mim próprio; sobretudo para fugir a não sei que obscura sensação de frio, terror, flacidez, que desde do princípio da noite me perseguia.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

«Os dois, enganados, pensadamente excitados, pelo estremecimento dos membros que se debatem, se estreitam, se torcem, talvez com ódio, talvez com amor, impacientes por se livrarem um do outro, mergulham num espasmo violento e traiçoeiro.» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932)

«Para o lado donde o rio vem são colinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde-negra, dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão os casais que dão àqueles lugares melancólicos uma feição mais viva e humana -- com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875)

segunda-feira, dezembro 12, 2022

«Foi Deus«

amor cão

A manga japonesa era, até ao fim do século passado, uma excentricidade no trabalho dos artistas de BD ocidentais. Hoje, pelo contrário, ganhou o seu espaço, e muitos são os desenhadores da Europa e das Américas que adoptaram esse estilo peculiar, a que os leitores mais tradicionalistas vão torcendo o nariz: aquelas pupilas anormalmente dilatadas ou ‘buracos’ no lugar das bocas são por vezes desagradáveis. É verdade que grande parte da manga se publica no âmbito da produção massificada, como, de resto, os comics norte-americanos; nas mãos de grandes autores, porém, e com um lastro secular remontando ao Japão medieval, a manga de qualidade compara com o melhor que se faz em qualquer latitude.

O Cão que Guarda as Estrelas (2008), da autoria de Takashi Murakami não participa da categoria da obra-prima, mas bem merece uma leitura. Fala-nos de um homem solitário e doente, um peso para a mulher, que entretanto pede o divórcio; e conta-nos também do cão dessa família e narrador desta história, chamado «Happy», prenda para a criança da casa, que, uma vez chegada à adolescência, deixa de achar graça ao bicho. Dono e cão, dois abandonados, empreendem então uma longa viagem de automóvel pela costa japonesa, em busca de uma solução para uma existência a partir de agora sem grandes saídas, salvo talvez no país da infância, ou seja, a terra natal do dono – “sou da infância como se é de um país”, escreveu Antoine de Saint-Eupéry, já piloto de guerra, não muito antes de juntar-se definitivamente ao Principezinho... Só que o leitor é confrontado desde a primeira prancha com a descoberta macabra pela polícia de um carro abandonado num campo de girassóis, onde jazem os corpos de um homem e um cão. Esta informação prévia não retira nenhum interesse à história, pelo contrário: o aliciante é o confronto com o caminho realizado pelas duas personagens, os encontros e as peripécias da viagem, até ao seu desenlace.

O cão que guarda [olha] as estrelas” é uma expressão popular no Japão, correspondente ao nosso “fazer castelos no ar”, significando a aspiração utópica a algo irrealizável; expressão com que o pessimista Takashi Murakami nos oferece esta crónica de uma felicidade perdida e nunca reencontrada.

Uma segunda narrativa, intitulada Girassóis, com outras personagens (cão e dono), também elas solitárias, acrescenta alguma poesia à situação inicial, correndo, porém, o risco da redundância. Fica, no entanto, vincada a intenção do autor, trabalhada em torno da importância dos animais de estimação nas nossas vidas cada vez mais atomizadas, e de como eles acabam por funcionar como um último vínculo na desesperança do abandono e da solidão.

Uma nota final para uma característica editorial, que se normaliza à medida que a publicação de BD japonesa vai ganhando mercado: esta manga lê-se de acordo com o padrão original, ou seja, da direita para a esquerda, iniciando-se a leitura pelo que seria a contracapa nas edições ocidentais, o mesmo sucedendo com a disposição das vinhetas em cada página.





O Cão que Guarda as Estrelas

texto e desenho: Takashi Murakami

edição: JBC Portugal, Lisboa, 2018

(Agosto de 2019)


domingo, dezembro 11, 2022

sábado, dezembro 10, 2022

sexta-feira, dezembro 09, 2022

Diana Krall, «This Can’t Be Love»




"entre os últimos ramos do pinheiro" - 3 parágrafos de Ferreira de Castro

«A pega, infatigável, ora procurando na terra, ora alcançando-se à copa eleita, continuava a construir o ninho. Era já uma grande mancha, um grosso volume de pauzitos seguro entre os últimos ramos do pinheiro.» Emigrantes (1928)

«Ia a dependurar o chapéu no cabide, mas deteve-se, preocupado, a ruminar a ponta do charuto.» A Selva (1930)

«Mas com o mar colérico ou tranquilo como agora, ventasse rijo ou corresse, à tona, ligeira brisa, o espectáculo seria sempre de surpreender e extasiar, após a viagem desoladora.» Eternidade (1933)

quinta-feira, dezembro 08, 2022

quarta-feira, dezembro 07, 2022

limites da igualdança

Uma carta enviada de Penela, a 6 de Janeiro de 1434, reflectindo o pensamento do Infante D. Pedro (1392-1449), já como homem do Renascimento, a propósito da sua concepção do lugar central e pinacular do soberano -- neste caso, o irmão, o rei D. Duarte (1391-1438) --, e que nos dez anos de regência, na menoridade do sobrinho (e genro), D. Afonso V, pretendeu exercer, limitando o poder senhorial e reforçando o da corte. Exercício que lhe custou a intriga e a inimizade do círculo real, o desterro e a morte, na batalha de Alfarrobeira, contra o exército desse D. Afonso V, o nosso último rei medieval

Monarca há pouco mais de meio, D. Duarte recebe conselho do irmão, a propósito do tratado de Cícero sobre a Amizade, que está a co-traduzir, dirigindo-se-lhe, obviamente, como vassalo fraternal, o que só o sangue permite, mesmo que observado o protocolo -- Muito alto e muito excelente Príncipe, e muito poderoso Senhor:

«[...]  outorgando-vos Deus o estado real, de que, a meu juízo, sois mais digno que homem que eu conheça, tirou-vos nome de amigo ao menos com vossos sujeitos, ficando-vos outro mais alto que é bom e gracioso Rei e Senhor. Porque não sinto que as obras de amizade se possam em seu perfeito grau usar entre senhor e servidores, porque a amizade traz obras de coração voluntarioso e livre. Pois como caberá isto no sujeito que a seu bom senhor é tão obrigado que lhe deve si e quanto possui, em tal maneira que lhe não fica por que possa livremente mostrar sua amizade? Parece-me ainda, Senhor, que o nome de amizade requer igualdança nas pessoas, e cada um verdadeiro amigo deseja de igualar seu amigo em benfeitorias e agardecimentos, e ainda vencê-lo em isto se puder.»

In Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965)

Nat King Cole, «Sweet Lorraine»




a arte de começar

«Ia já para três dias  que o tractor parara e a regadeira não vi pinga de água trasfegada do Tejo.» Alves Redol, Gaibéus (1939)

terça-feira, dezembro 06, 2022

Frank Sinatra, «You Go To My Head»




"O dia ainda vem longe."

 «Contudo, talvez ainda seja cedo. O calor da cama, o conforto dos colchões,  e aquele corpo, macio, tépido, convidam-no a esquecer. .O dia ainda vem longe.  E as pernas de Elói procuram as de Manuela.» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932)

"um pinheiro das dunas"

«Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e âmbar para afugentar a "sorte ruim", Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a seiva de um pinheiro das dunas.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póstumo, 1901)

domingo, dezembro 04, 2022

sábado, dezembro 03, 2022

caracteres móveis

«Duas vacas, guardadas por uma rapariga, apareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio, defronte da Alameda, corre junto de um silvado: entraram no rio devagar, e, estendendo o pescoço pelado pela canga, bebiam de leve sem ruído; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva tranquilidade dos seres fartos -- e fios de água, babados, luzidios à luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875)

«Desde pequeno que admiro os que, quando têm razão, são capazes de contrariar os outros.» Alves RedolFanga (1943)

«E no regresso era vê-lo todo ancho ao lado do pai magnânimo: tomava-lhe prontamente o candeeiro, pegava-lhe na mão poderosa, aconchegava-se-lhe (que calor tão bom espalhava toda a pessoa de seu pai!), fazia muitas perguntas sobre a Mina: "Continuavam lá os mesmos dois milhares de operários? Quase sem se verem uns aos outros? E onde comia tanta gente? Onde dormiam? Trabalhavam por debaixo das montanhas, a terra devia estar toda lurada! Como podiam passar quase todo o ano sem luz do Sol? E os tais comboios pelo ar? Ele gostaria muito de lá ir ver".» José Marmelo e Silva, Adolescente Agrilhoado (1948)

sexta-feira, dezembro 02, 2022

quinta-feira, dezembro 01, 2022

cenas da luta de classes num num 'cruzeiro de sonho', ou os feios, porcos e maus do capitalismo predatório


O cartaz anuncia "a comédia perfeita para o nosso tempo; e este é tão porco, feio e cruel, que o marxista da história é um bêbado, irresponsável como o nosso tempo.

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