Mike Bloomfield. Há blues branco? Pergunta disparatada. Basta ir às discotecas com a respectiva secção para vermos que nem todos os músicos têm a tez escura... Há blues branco, há blues europeu (de John Mayall a Rory Gallagher), há blues tão branco que até é tocado por albinos, como é o caso de Johnny Winter, colaborador de eleição de Muddy Waters... Bloomfield foi um judeu de Chicago -- cidade dos blues, portanto --, guitarrista de outro judeu importante, um Zimmermann mais conhecido por Dylan; enquanto tal, é seu o dedilhar (também) eléctrico no álbum Highway 61 Revisited e na mítica «Like a rolling stone». Viveu e morreu num tempo que se esteve razoavelmente nas tintas para os blues; e ele respondeu com a progressiva degradação artística (faria música para filmes porno), e física, até ser encontrado morto por overdose no seu automóvel, ainda não completara os 38 anos. A ouvir, oh a ouvir!
quarta-feira, novembro 30, 2005
terça-feira, novembro 29, 2005
Caracteres móveis #50 - George Steiner
Somos bípedes capazes de sadismo indizível, ferocidade territorial, ganância, vulgaridade e todo o tipo de torpeza. A nossa inclinação para o massacre, para a superstição, para o materialismo e o egotismo carnívoro pouco se alterou durante a breve história da nossa estada na Terra. No entanto, este mamífero desgraçado e perigoso gerou três preocupações, vícios ou jogos de uma dignidade completamente transcendente. São eles a música, a matemática e o pensamento especulativo (no qual incluo a poesia, cuja melhor definição será a música do pensamento).
A Ideia de Europa
(tradução de Fátima St. Aubyn)
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segunda-feira, novembro 28, 2005
Antologia Improvável #79 - Mário Avelar (2)
HERBA SANTA
Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.
Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.
Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?
Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.
Cidades de Refúgio
Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.
Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.
Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?
Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.
Cidades de Refúgio
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JornaL
1) Hoje foi lançado no Centro Cultural de Cascais (Gandarinha) o livro de João Moreira dos Santos, Duarte Mendonça -- 30 Anos de Jazz em Portugal, editado pela Câmara Municipal de Cascais. Repositório essencialmente fotográfico, tem esse grande mérito de recordar uma história em que Cascais mais uma vez se destacou, graças ao sócio de Duarte Mendonça, Luís Villas-Boas. Pessoalmente, recordou-me o concerto mais recuado que a minha memória conseguiu alcançar: tinha 15 anos, e já se manifestava o pendor rocker: no Pavilhão do Dramático de Cascais -- que viria também a ser conhecido pela «Catedral do Rock», lembro-me duma tarde de blues, e da guitarra de Buddy Guy, (Buddy Guy / Junior Wells Blues Band), 11 de Novembro de 1979 (ver p. 90).
2) O jornalismo como grupo profissional sempre primou pela sua razoável indigência. A literatura tem-no referido abundantemente, basta uma referência à caricatura do Palma Cavalão, d'Os Maias. De Eça de Queirós a Fernando Pessoa, de Ferreira de Castro a José Régio, poucos terão sido os escritores de valor que não tenham de alguma maneira execrado, com verdadeiro nojo, a inanidade periodística. Também alguns plumitivos desassombrados o têm feito, como sucede com João César das Neves -- de quem normalmente discordo, mas cuja frontalidade não me desagrada. Neves, que traça um retrato negro dos media no DN de hoje, escreve o seguinte: «Ver o relato jornalístico de algo em que participámos é ficar, em geral, com a sensação de ouvir a única pessoa na sala que não percebeu nada do que ali aconteceu.» Ou como diria o Álvaro de Campos, com aquela qualidade chã dos algarvios: «Ora porra! / Então a imprensa portugueza é / que é a imprensa portugueza? / Então é esta merda que temos / que beber com os olhos? / Filhos da puta! / Não, que nem / ha puta que os parisse.»
3) A ler: José Fernandes Pereira (dir.), Dicionário de Escultura Portuguesa (dir.) (Caminho).
4) A ouvir: Rui Veloso, Espuma das Canções.
domingo, novembro 27, 2005
Boas maneiras
Johnny Rotten e o seu modo peculiar de cantar inclinado,
como se sofresse dos rins,
depois muito imitado
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Johnny Rotten
Correspondências #23 - Luiz Pacheco a Serafim Ferreira
Serafim
fui aprendido. Corolário lógico: depois de encafuarem os livros, segue-se o Autor. Infelizmente, não tenho a sorte do Urbano (ainda ontem vi a sua máscara torturada n'A Capital em «crítica» duma antiga fanchona dele, a Felizarda Botelho) ou do Sttau: quando vou de cana ninguém chora nem ninguém protesta. Tão-pouco os meus crimes são nobres, ditos cívicos, de cidadania... mas delitos comuns, taras sexuais. Adiante. 2 pedidos ao Menino Serafim: a) tem por aí uma notinha para mim? (o fim do mês tá à vista!). Em carta simples c/as últimas novidades do milieu literato. b) Boulle: para a semana recupero (desempenho) uma das duas máquinas de escritura. Gostava de rever o texto, mesmo que VV. não o queiram editar (resgataria a tradução).
fui aprendido. Corolário lógico: depois de encafuarem os livros, segue-se o Autor. Infelizmente, não tenho a sorte do Urbano (ainda ontem vi a sua máscara torturada n'A Capital em «crítica» duma antiga fanchona dele, a Felizarda Botelho) ou do Sttau: quando vou de cana ninguém chora nem ninguém protesta. Tão-pouco os meus crimes são nobres, ditos cívicos, de cidadania... mas delitos comuns, taras sexuais. Adiante. 2 pedidos ao Menino Serafim: a) tem por aí uma notinha para mim? (o fim do mês tá à vista!). Em carta simples c/as últimas novidades do milieu literato. b) Boulle: para a semana recupero (desempenho) uma das duas máquinas de escritura. Gostava de rever o texto, mesmo que VV. não o queiram editar (resgataria a tradução).
Cumprimentos ao Abreu, Armando e irmão do Vítor
e para si abraços do
Luiz Pacheco.
Cartas na Mesa
(edição de Serafim Ferreira)
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sábado, novembro 26, 2005
The Dreaming
Escrevendo sobre The Dreaming, o crítico da Rock & Folk Jean-Marc Bailleux comparou (R&F n.º 190, 1982) este álbum aos míticos Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band e The Dark Side of the Moon. Pois quanto a mim, o quarto disco de Kate Bush é melhor do que aqueles trabalhos dos Beatles e dos Pink Floyd. O Dark Side não resistiu ao tempo; ouve-se hoje mais por curiosidade que por necessidade; quanto ao LP dos Fab Four, conquanto eles não tenham feito discos maus, sequer medíocres, o Sgt. Pepper foi alvo dos maiores ditirambos, nem sempre justificados. Não é o melhor dos Beatles, embora lá exista -- como em todos os outros títulos -- um punhado de obras-primas: «With a little help from my friends», «She's leaving home» ou «A day in the life».
Regressando a Kate, já se viu, pelo que ficou escrito, que estamos a falar dum disco de excepção. Kate Bush -- que acabou de lançar um duplo CD, após anos de silêncio -- é, aliás, uma artista notável: compositora, letrista, cantora, instrumentista, coreógrafa, bailarina, actriz... Além disso, é muito bonita, o que torna tudo ainda mais agradável.
Os que lhe estudam a obra costumam referir-se ao que poderíamos chamar o estranho mundo de K. B. Ana Rocha, v.g., referiu-se, em artigo publicado há uns bons anos na saudosa Música & Som (n.º 61, 1981), à circunstância de «a fronteira entre o mundo adulto e o infantil [ser] frequentemente esbatida e diluída». E por mais evidente que surja o cosmopolitismo e a mundividência, existe esse ambiente de estranhamento, além de uma certa englishness que lhe povoa as canções.
Em termos musicais, The Dreaming revela o efeito provocado pelo terceiro LP de Peter Gabriel, em que Kate Bush participou -- como viria, dois discos mais tarde, em So, a fazer um inesquecível dueto com o ex-vocalista dos Genesis. Há composições em que essa inspiração me parece notória, sem subjugar a poderosa personalidade da autora de «Wuthering Heights».
É-me difícil destacar temas, de tal maneira estão conseguidos. A produção, também da sua responsabilidade, é um primor de contenção, bom-gosto, ideias bem arrumadas e, de novo, personalidade.
Uma referência para David Gilmour -- o músico que a revelou --, numa curta mas interessante participação em «Pull out the pin», uma das músicas soberbas deste disco.; e outra para o seu irmão, Paddy Bush, luthier e músico de grandes recursos, uma figura-chave no processo criativo de Kate.
Há vinte e tal anos que ouço The Dreaming regularmente, sem perda da capacidade de encantamento inicial -- a tensão e a estesia que nos proporcionam as obras de arte.
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sexta-feira, novembro 25, 2005
Antologia Improvável #78 - Papiniano Carlos
O POETA
Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.
Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.
Sonharam-te os abismos, e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.
Só em ti a beleza encontra forma.
Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.
Caminhemos Serenos
Seara e nuvem, barco e melodia
no coração das feras e das aves,
trazes a aurora em tuas mãos suaves
abrindo a noite, barco e melodia.
Lírio solar, estrada e cotovia
jamais sonhada pelas próprias aves,
a morte e a vida, a porta e as chaves
tudo em ti se confunde e anuncia.
Sonharam-te os abismos, e os morcegos
volvem-se em arcanjos e vêm, cegos
quando os fitas, pousar na tua mão.
Só em ti a beleza encontra forma.
Cantas! e logo a noite se transforma
no dia que faltava à Criação.
Caminhemos Serenos
JornaL
1) Miguel Cadilhe, um dos piores pesadelos do cavaquismo, comparou -- provavelmente com aquela verve de autómato que lhe é reconhecível -- o antigo mentor a um eucalipto: seca tudo sua à volta. Talvez, mas é a esse euclipto que o ex-ministro deve a relevância pública. Foi feio.
2) A Igreja não quer homossexuais ordenados padres. Vasco Pulido Valente escreve hoje no Público: «não me entra na cabeça que se proteste contra o Papa, porque ele é o que é e não o que a maioria agnóstica, ateia ou indiferente gostaria que ele fosse.» Eu cá, que sou ateu, acho muito bem que ele seja assim como é. E também me pergunto: para que raio quereria um homossexual ser ordenado padre? Francamente, não joga.
3)A ler: O Inimigo Público de hoje.
4) A ouvir: Janis Joplin, Pearl - Legacy (Sony/BMG); Paul Weller, As I Know (V2/Edel); Souad Massi, Mesk Elil, (Wrasse/Harmonia Mundi).
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quinta-feira, novembro 24, 2005
Caracteres móveis #49 - J. W. Goethe
A nós não seduziram as majestosas fachadas, / Nem a varanda elegante, nem o sóbrio pátio. / Por elas passámos apressados, e foi uma porta baixa e estreita / Que acolheu o guia, que acolheu o desejoso.
Erotica Romana
(tradução de Manuel Malzbender)
Erotica Romana
(tradução de Manuel Malzbender)
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JornaL
1) Cá se fazem, cá se vão pagando. Pinochet, o traidor de Salvador Allende, vai sendo incomodado pelos tribunais. Coitadinho. Já que, por uma questão de civilidade democrática, está guardado de sofrer as penas que infligiu a outros, ao menos que vá tendo uma velhice amargurada.
2) Manuel Alegre ao Público: «Se não aceitar ditaduras nem regimes totalitários, se lutar pela liberdade, se ter uma lógica independente e livre é ser romântico, então eu sou romântico.»
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Escrever na areia - A palavra
A palavra de Manuel Alegre contra a palavra de José Sócrates. Por mim, podem juntar à de Sócrates a palavra de Mário Soares, o palavrão de Jorge Coelho ou a palavrinha de José Vitorino. Qual a palavra que pesa? Nenhuma dúvida a esse respeito.
(Alterado)
(Alterado)
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quarta-feira, novembro 23, 2005
Resignação
Estudos, ensaios de leitura crítica, antologias e recolhas epistolográficas -- tudo isso damos à estampa. Falta-nos, porém, o talento do criador.
JornaL
1) Li apressadamente na livraria duas páginas do último de António Lobo Antunes, D'este viver neste papel aqui descripto -- as cartas enviadas a sua mulher. Soberbas. Não tenho dúvida de que se trata de um grande acontecimento cultural no sentido mais lato: a correspondência dum jovem alferes médico saudoso e apaixonado, atolado numa guerra tão estúpida que foi criminosa -- desde logo pela sua desnecessária estupidez. Um livro para a História. Tenho a certeza disso.
2) As cartas hoje publicadas pelo JL, de Fernando Assis Pacheco, Manuel Beça Múrias e Afonso Praça, mostram isso mesmo. Como há tanto material humano de primeira qualidade ainda a conhecer...
3) Miguel Real lança dois livros duma assentada: o ensaio O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa e um romance, a suceder ao excelente Memórias de Branca Dias: A Voz da Terra. Diz ele em micro-entrevista: «O romance histórico não deve reproduzir ficcionalmente a História, mas iluminá-la, abrindo-a a outras interpretações.»
4) A ler: Andrade Corvo, Perigos (Fronteira do Caos); Frederico Lourenço, A Odisseia de Homero adaptada para jovens; Graciliano Ramos, S. Bernardo (Cotovia); Miguel Real, A Voz da Terra e O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa (Quidnovi); Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Malva 62 (Quasi); Pedro Rodrigues, António Victorino d'Almeida Conta 50 Anos de Música (Quimera); Urbano Tavares Rodrigues, O Mito de D. Juan e Outros Ensaios de Escreviver (Imprensa Nacional); Paul Teyssier, A Língua de Gil Vicente (Imprensa Nacional); Miguel de Unamuno, A Vida de D. Quixote e Sancho (Assírio & Alvim).
5) A ouvir: Bach, Cantatas Profanas pelo Collegium Vocale de Gent, dirigido por Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi); Mafalda Arnauth, Diário (Universal); António Chainho e Marta Dias, Ao Vivo no CCB (Movieplay); Clã, Gordo Segredo ((EMI-VC).
terça-feira, novembro 22, 2005
Antologia Improvável #77 - Fernando Pessoa / Álvaro de Campos
Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite,
Cada um a vida das linhas das vigias illuminadas
E cada um sabendo do outro só que ha vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.
Livro de Versos
(edição crítica de Teresa Rita Lopes)
Cada um a vida das linhas das vigias illuminadas
E cada um sabendo do outro só que ha vida lá dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar.
Livro de Versos
(edição crítica de Teresa Rita Lopes)
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JornaL
1) E de repente, o Ariel Sharon torna-se(-me) personagem mais simpática. Será para durar?
2) Tomé Pinto em entrevista a Adelino Gomes, a propósito dos 30 anos do 25 de Novembro: «Quando se dá a ocupação das bases [aéreas], estamos num período insurreccional. Alguém sugere que se chame o Ramalho Eanes [.] Este diz a Costa Gomes que tem um grupo de oficiais que podiam tomar conta da situação. "Quem são"? Ele respondeu: "Estão comigo, eu sei quem é que são." Mas não revelou os nomes e ainda bem. O Presidente disse: "Então avance." Além dos Comandos, nós tínhamos outra unidade, muito esquecida, que é [o Regimento de Cavalaria de ] Estremoz. [...] Mas a primeira unidade que avançou não foi nenhuma destas, mas sim o CIAAC [de Cascais] do capitão Pinto Ramalho, hoje general. Foram de lá os primeiros pelotões a avançar.»
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segunda-feira, novembro 21, 2005
Caracteres móveis #48 - Guy Debord
No reduzido número das coisas que me agradaram, e que soube fazer bem, aquilo que por certo fiz melhor foi beber. Embora tenha lido muito, bebi mais. Escrevi muito menos do que a maior parte das pessoas que escrevem; mas bebi muito mais que a maior parte das pessoas que bebem.
Panegírico
(tradução de Júlio Henriques)
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domingo, novembro 20, 2005
Andante maestoso
Acabo de ver no Mezzo, por mero acaso, uma gravação de 94 da 5.ª Sinfonia do Tchaikovski, dirigida pelo Claudio Abbado. E como sucede sempre que ouço esta peça do grande russo fico num estado de grande exaltação interior, em especial no quarto andamento, arrebatado e portentoso, com aquele final impensável que não termina nunca. Qualquer coisa de único e genial -- tanto ou mais do que o Adagio lamentoso da sinfonia seguinte, a última por sinal, que termina também duma forma inusitada, em patético apagamento, como dias depois da sua conclusão se extinguiria o compositor dela, tristemente.
E pensar que em tempos umas nulidades críticas que, como de costume, não viam dois palmos à frente do nariz, acharam o bom do Piotr Ilich, acompanhado, de resto, do seu contemporâneo alemão Brahms, uns músicos dispensáveis. Parece que os pobres se aborreciam com a circunstância de alguma da música dele servir para bailes, se calhar de debutantes. Daí a classificarem-no em conformidade foi um passo...
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Antologia Improvável #76 - José Carlos Ary dos Santos (2)
QUEIXA E IMPRECAÇÕES DUM CONDENADO À MORTE
Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.
Passo a passo os encontro no caminho
Que os Deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram
Com angústia e com lama.
Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.
Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.
Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu que me corto a mim mesmo no pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.
Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.
Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.
Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.
Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
De serem inúteis e ficarem vivos.
Liturgia do Sangue / Obra Poética
(edição de Francisco Melo)
Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.
Passo a passo os encontro no caminho
Que os Deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram
Com angústia e com lama.
Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.
Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.
Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu que me corto a mim mesmo no pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.
Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.
Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.
Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.
Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
De serem inúteis e ficarem vivos.
Liturgia do Sangue / Obra Poética
(edição de Francisco Melo)
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sábado, novembro 19, 2005
Correspondências #22 - Raul Brandão a Teixeira de Pascoais
Amigo
Li ontem a Era Lusíada. Também penso pouco mais ou menos assim e há anos que preparo uma História de Portugal idealista. Nós começamos a morrer desde que começamos a descrer. Precisamos de encontrar Deus e de comungar todos a mesma hóstia. O pior é que é necessário que Ele se revele -- e, enquanto o não faz, vamos ao fundo...
Adeus. Obrigado pelo seu admirável livrinho. No fim do mês vou para a Foz, Cantareira, 61. Tem-me aí ao seu dispor.
Ad.or e a.º m.to agr.º
Raul Brandão
21 de Junho
1914
Correspondência
(edição de António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano)
sexta-feira, novembro 18, 2005
Fiat 600
ou 600 D, para ser mais preciso. É um carro de culto. Para mim, de certeza. Foi o primeiro que os meus pais tiveram depois do seu casamento, e foi o meu primeiro carro. Ainda não este modelo, mas o anterior, reproduzido abaixo, de que me não recordo, cujas portas abriam ao contrário, como acontecia com os automóveis antigos nos filmes... Diz-me o meu Pai que o compraram em segunda mão. Depois adquiriram este, já novo, moderno, último grito. Lembro-me bem dele, branquinho, dos estofos característicos da marca, encarnados e brancos (espreitem lá para dentro, pelo vidro!), da buzina roufenha, daqueles cromados à frente e de lado (vejam...), do emblema FIAT -- fábrica italiana de automóveis de Turim --, lindo, lindo...
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quinta-feira, novembro 17, 2005
Antologia Improvável #75 - Rui Knopfli (3)
CAFÉ DE PENUMBRA
Escasso como a praceta defronte,
como a ilha, como o céu estrangulado
pelo aperto dispneico das vielas.
Café de penumbra e pouca gente
antiga e parecida ao tédio da manhã.
Três funcionários públicos (guarda-
-fiscal um) e dois empregados
comerciais debitando sentenças
em surdina. Um pracista
à míngua de clientes e o lazer
de um poeta de passagem.
Na mesa dos fundos, sob o claro
quadrilátero da janela -- e para nossa
edificação -- um arabista paulatino
traduz do francês um texto urdu.
A Ilha de Próspero / Obra Poética
Escasso como a praceta defronte,
como a ilha, como o céu estrangulado
pelo aperto dispneico das vielas.
Café de penumbra e pouca gente
antiga e parecida ao tédio da manhã.
Três funcionários públicos (guarda-
-fiscal um) e dois empregados
comerciais debitando sentenças
em surdina. Um pracista
à míngua de clientes e o lazer
de um poeta de passagem.
Na mesa dos fundos, sob o claro
quadrilátero da janela -- e para nossa
edificação -- um arabista paulatino
traduz do francês um texto urdu.
A Ilha de Próspero / Obra Poética
quarta-feira, novembro 16, 2005
Figuras de estilo #14 - Ferreira de Castro e Eduardo Frias
O navio agora saía da barra: -- balouçava-se já sobre o crespo líquido do oceano.
E Cascaes, adormecida, vergastada pelo mar, dir-se-ia uma dessas povoações de pescadores que, vistas de noite, parecem cemitérios devastados.
A Boca da Esfinge
E Cascaes, adormecida, vergastada pelo mar, dir-se-ia uma dessas povoações de pescadores que, vistas de noite, parecem cemitérios devastados.
A Boca da Esfinge
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terça-feira, novembro 15, 2005
Hurrah!
Os olhos eram inexpressivos, mas a matrona tchetchena estava alegre como há muito lhe não sucedia. Encontrara finalmente o cadáver do neto. Tinha treze anos e brincava no jardim com as irmãs quando os russos passaram, e decidiram cortar pela raiz o potencial terrorista.
28-VI-2003
segunda-feira, novembro 14, 2005
Antologia Improvável #74 - Manuel de Freitas (2)
BUT NOT FOR ME (BILLIE HOLIDAY)
Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
[sic]
Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
[sic]
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Billie Holiday,
Manuel de Freitas
domingo, novembro 13, 2005
Correspondências #21 - D. Francisco Manuel de Melo a Manuel de Faria e Sousa
A Manuel de Faria e Sousa
pedindo-lhe o avisasse de certo secreto que lhe importava
Nenhua filosofia basta (não me oiçam os estóicos) para sossegar as inquietações de um ânimo ofendido. Porque os afectos podem-se temperar mas não se podem negar; e mais fácil é aos homens fingi-los ali onde eles não estão, que sumi-los onde estão, de sorte que se não enxerguem. Despois que V. M. me avisou tinha que dizer-me, ando batalhando comigo por ver se posso desmentir estes meus temores; e eles tomam novo brio na contenda. Nada tem de apetite, de necessidade si, o desejar saber este segredo. No tempo da peste não há mal que não seja contagioso. Senhor meu, que mais claro poderei confessar minha cobardia? Se porventura vileza, pode (como com alguns) ser merecimento. Eu não me posso comprimir sem que ouça, e peço a V. M. me diga o que tem para dizer-me (e bofé, Senhor, que estou tal que, até o que não me quiser dizer, estou para lhe perguntar). Bem pode ser que a adivinhação dos males me induza a esta curiosidade. Seja o que for, eu pergunto, e afirmo a V. M. que me vejo com assaz cuidado sobre as cousas de aquém e de além; porque de banda a banda alcança a minha má fortuna. Queira V. M. lançar-me o fio a este laberinto, ainda que seja o fio de ua regra, já que o tempo me não deixa ver a V. M., e dá agora em me perseguir, como os do tempo. De tudo livre Deus a V. M. e guarde muitos anos. Castelo, 23 de Setembro, 1637.
Cartas Familiares
(edição de Maria da Conceição Morais Sarmento)
sábado, novembro 12, 2005
Figuras de estilo #13 - Alberto Osório de Vasconcelos
O seu testamento é glorioso. Deixou-nos um famoso legado, composto de obras primas. 'Mérope' e 'Catão', reminiscências de Voltaire, temperadas pelo génio peculiar do autor; o 'Parnaso Lusitano', modelo de selecção; a 'D. Branca', episódio épico incomparável; 'Camões', elegia sublime; o 'Romanceiro', repositório de esplendores sem reproches; as 'Viagens na minha terra', desespero de folhetinistas e romancistas; 'Um Auto de Gil Vicente', áureo reflexo de uma época memorável; o 'Alfageme', tão português, tão nosso, que nos obriga a cantar com Froilão e a combater com Nun'Álvares; o 'Frei Luís de Sousa', drama de primeira ordem, modelo eterno do género; o 'Arco de Sant'Ana', tão cheio de alusões finíssimas; e, aos cinquenta anos, admirai berberes, curvai-vos moçárabes, batei nos peitos rapazes-velhos, aos cinquenta anos Garrett, sempre juvenil, escreveu de um jacto as 'Folhas caídas'!
Garrett, Castilho, Herculano e a Escola Coimbrã
sexta-feira, novembro 11, 2005
Antologia Improvável #73 - David Mourão-Ferreira (2)
LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
Um Monumento de Palavras
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
Um Monumento de Palavras
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quinta-feira, novembro 10, 2005
Bem-estar
Dou por mim a apertar um livro que me encheu a alma, com as duas mãos, sorridente e grato.
quarta-feira, novembro 09, 2005
Antologia Improvável #72 - João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)
A TERRÍVEL MANHÃ
«Que terrível manhã, que trágico descobrimento de
morte e de ódio se está preparando nessa infância...»
Miguel de Unamuno
«Visiones y Comentarios»
o crepúsculo desce
nesses hábitos de viagens infindas
a noite afaga os mitos
de que a revolta é sentido e abrigo
pão negro vinho fugaz para a memória dos vivos
ávida e inconclusiva
vem então o vento trazer
esse nu amanhecer dos corpos na praia deserta
expostos enfim à doce volúpia dos cães
e do esquecimento.
Exílio de Caim
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terça-feira, novembro 08, 2005
Caracteres móveis #47 - Anna Akhmátova
Entro no abandono das casas, / há pouco ainda conchego d'alguém.
«Ano 1940»
Só o Sangue Cheira a Sangue (Antologia)
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
«Ano 1940»
Só o Sangue Cheira a Sangue (Antologia)
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
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segunda-feira, novembro 07, 2005
Veleidades
Estudar um autor consagrado. Publicar um estudo penetrante, iluminador dos aspectos mais recônditos da sua vida e obra. Trazer a público os resultados do nosso trabalho, cientes de que se trata de material indispensável a. Sermos, ou termos sido durante anos, quase solitários a fazê-lo. Inversamente, com autor pasto para académicos & outros curiosos, ousarmos de tal maneira a inovação, a fuga ao lugar-comum, que a nossa investigação se torne obrigatória em qualquer bibliografia acerca de -- como que impressa a bold.
Ser como o criador de gado que marca o novilho a ferro com o seu monograma.
domingo, novembro 06, 2005
Antologia Improvável #71 - Francisco Costa (2)
CRISTO NA RUA
Todos os dias bate à minha porta
e aceita a esmola que lhe dou, que é nada!
E lá se vai, rojando na calçada
o passo vacilante, a sombra torta.
É a miséria mesma que o conforta.
Com o sol a prumo ou a chuva regelada,
mendiga sempre, palmilhando a estrada,
vergado ao peso da existência morta.
Hoje, aquecia as minhas mãos ao lume
quando ele veio, como de costume,
fitar em mim o seu olhar vazio.
E ao dar-lhe a esmola que ele não reclama,
mais uma vez senti a face em chama
e as labaredas me fizeram frio.
Última Colheita
Todos os dias bate à minha porta
e aceita a esmola que lhe dou, que é nada!
E lá se vai, rojando na calçada
o passo vacilante, a sombra torta.
É a miséria mesma que o conforta.
Com o sol a prumo ou a chuva regelada,
mendiga sempre, palmilhando a estrada,
vergado ao peso da existência morta.
Hoje, aquecia as minhas mãos ao lume
quando ele veio, como de costume,
fitar em mim o seu olhar vazio.
E ao dar-lhe a esmola que ele não reclama,
mais uma vez senti a face em chama
e as labaredas me fizeram frio.
Última Colheita
sábado, novembro 05, 2005
Correspondências #20 - Eça de Queirós a Alberto de Oliveira
Paris, 6 Agosto 1894.
Ex.mo e caro amigo:
Não me queira mal, ou esqueça o mal que me tenha querido por eu só tão tarde ter agradecido o elegante livro.
«O coração põe e a Vida dispõe»: e a minha tão tiranicamente se tem comportado que não me deixa tempo para cumprir uma obrigação logo que a ela se mistura muita devoção.
Foi com alvoroçada simpatia que abri as folhas das Palavras Loucas. Mas Loucas porquê? Através delas só entrevi Razão, e madura, ou na fácil véspera de amadurecer. E nelas próprias só vi precisão, limpidez e ritmo que são qualidades de Razão e das melhores. É por esta linda arte de bem-dizer que eu o quero sobretudo louvar, -- ou antes felicitar, porque a Prosa é um dom, e dos Deuses, como a Beleza. Enquanto às suas ideias -- não lhe parece que o Nativismo e o Tradicionalismo, como fins supremos do esforço intelectual e artístico, são um tanto mesquinhos? A humanidade não está toda metida entre a margem do rio Minho e o cabo de Santa Maria: -- e um ser pensante não pode decentemente passar a existância a murmurar extaticamente que as margens do Mondego são belas! Por outro lado o Tradicionalismo em Literatura já foi largamente experimentado, durante trinta largos anos, de 1830 a 1860 -- e certamente não resultou dele aquela renovação moral que Portugal necessita, e que o meu amigo dele espera. Tivemos xácaras e romanceiros, e lendas e solaus, e moiros, e beguinos, e besteiros, e sujeitos blindados de ferro que gritavam com magnificência -- «Mentes pela gorja, D. Vilão!» -- e uma porção imensa de Novelística popular, e paisagens Afonsinas com torres solarengas sobre os alcantis, e tudo o mais que o meu amigo reclama como factor essencial de educação... E de que serviu tudo isso para o aperfeiçoamento dos caracteres e das inteligências, ou sequer para a sua renacionalização? De resto, o movimento Tradicionalista, cuja ausência o meu amigo lamenta, ainda não cessou, está em torno de si. Tomás Ribeiro, Chagas e toda a sua descendência literária, são tradicionalistas. E esses «Príncipes Perfeitos» e Duques de Viseu, e Pedros Cruz , e D. Sebastiões que frequentam o palco de D. Maria não creio que tivesse chegado aí, de Paris, pelo sud-express. E o resultado?...
Não, caro amigo, não se curam misérias ressuscitando tradições. Se a França, depois de 1870, tivesse resumido o seu esforço em renovar na Literatura as Chansons de Geste , ainda cá estavam os Prussianos. O dever dos homens de inteligência num país abatido, tem de ser mais largo do que reconstruir em papel o Castelo de Lanhoso ou chamar as almas a que venham escutar os rouxinóis do Choupal de Coimbra.
Em todo o caso o grito do Tradicionalismo é um belo grito, sobretudo quando nos chega numa voz tão polida, e culta, e penetrante, e elegante como a sua. E aqui volto ao meu primeiro louvor, o da forma excelente, tão fina e luminosa, que reveste todo o seu livro. Quando se possui um tão belo instrumento, deve-se tocar uma ária mais larga e mais profunda que a do neo-medievalismo e do neo-trovadorismo. E, a propósito, o que é o Neo-Garrettismo? Estou com muita curiosidade de saber a que nova concepção do Universo, a que novo método Científico, ou a que feitio original do espírito crítico, deu o seu grande nome o mestre genial do Frei Luís de Sousa. Se o Neo-Garrettismo é um sistema que nos habilitará, a todos, a fazer Frei Luíses de Sousas e Autos de Gil Vicente, então, por Júpiter! sejamos todos neo-garrettistas com fervente entusiasmo! Para me explicar todas estas coisas e sobretudo para o ver e abraçar é que eu desejo vivamente que se realize a sua vinda a Paris, que há tempos me foi anunciada por um amigo. É para este Outono?
E o António Nobre? Sei que ele está em Paris: mas esse moço encantador, desta vez, nem sequer me quis dar o gosto de saber onde instalara os seus lares. Da sua morada, onde quer que ela seja, à minha, não haverá (dada a extensão de Paris) mais de meia hora de fiacre. Eu, porém, que sou um fiel ledor de Homero, sei quanto custa aos Deuses descerem do Olimpo. Já o dizia Hermeias (vulgo Mercúrio) a Kalipso, que como sabe, morava burguesmente numa ilha do Arquipélago: -- «Cuidas que não é uma grande maçada descer dos sólios estrelados, para vir a estes tristes sítios mortais, onde nunca se respira um bocado de bom incenso nem se bebe um bocado de bom néctar?». -- Mas nisto se engana o meu amigo, porque se eu o desejava ver era justamente para lhe repetir quanto o estimo, e para bebermos juntos um pouco de Médoc, que é o desconsolado néctar destes tempos. Quando lhe escrever ralhe com ele, docemente.
E, enfim, caro amigo, um bom abraço, depois desta tagarelice, e agora, e sempre, me creia, fielmente
Seu muito dedicado
Eça de Queirós
In Alberto de Oliveira, Eça de Queiroz -- Páginas de Memórias
sexta-feira, novembro 04, 2005
quinta-feira, novembro 03, 2005
Caracteres móveis #46 - Christo Saprjanov
Os homens esfaqueados nas costas eram bonitos, morriam com dignidade, aguentando-se bem. Não gritavam por ajuda nem rebentavam em lágrimas, mas cerravam os dentes e mordiam os seus bigodes negros. A morte adora os homens e os homens adoram a morte, ou deveriam fazê-lo. Torna-os mais homens do que os que estão vivos, com os rostos mais brancos, o cabelo mais negro e os corpos mais pesados. Na verdade, é uma pena estarem mortos.
Fome de Cão
(tradução, a partir do inglês, de Sílvia Sacadura)
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Sílvia Sacadura
quarta-feira, novembro 02, 2005
Antologia Improvável #70 - Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Amanhece
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia
Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
tropeço na claridade da primavera
e vou tomar café com muito açúcar
Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade
E quando tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te num gesto amplo de incertezas
o horizonte com barcos
O Afastamento Está Ali Sentado
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia
Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
tropeço na claridade da primavera
e vou tomar café com muito açúcar
Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade
E quando tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te num gesto amplo de incertezas
o horizonte com barcos
O Afastamento Está Ali Sentado
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Daniel Maia-Pinto Rodrigues
terça-feira, novembro 01, 2005
Origens
Se ouvirem o antigo cabeleireiro Chuck Berry, perceberão de onde vêm os Rolling Stones.
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Chuck Berry,
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