Jaime Santos, cujas opiniões demoliberais prezo, pois não divergem muito das minhas, comentou este post, levantando questões que me parecem úteis trazer para aqui, em vez de ficarem perdidas numa caixa de comentários. Para facilitar a leitura, intercalo as minhas observações com o seu comentário: o texto dele vai entre aspas e em itálico, o meu vai em redondo e a bold.
«Comparar, meu caro, Saddam, Assad ou o Estado Islâmico com o PSOE ou o PP é um bocadinho puxado, penso eu (mesma coisa a compará-los com Franco).»
Duas notas:
1. Não estava a pensar em Saddam ou no Assad (duas personagens muito diferentes), mas simplesmente na Turquia e no PKK, cujo enfrentamento vai muito para além (e para trás) da era Erdogan. Aliás, o Saddam está aqui a mais, pois tratava-se de um psicopata; o Franco e o Assad são dois ditadores que mantêm o poder e a unidade territorial dos respectivos estados pela força que for precisa. Não sei por que razão quer há-de você ser benevolente para com o generalíssimo pela graça de deus...
2. Não se trata de uma questão de grau de repressão -- porque, gostemos ou não, a repressão, mais bárbara ou mais civilizada, está sempre presente --, mas do princípio elementar da autodeterminação dos povos, que aos catalães está vedada.
(Isto leva-me a falar na ignorância atrevida e crassa de muitos comentadores da questão: quando esta se levantou no ano passado, ouvi uma corifeia, a partir do palanque merdiático que detém, comparar o problema com uma eventual vontade de secessão do Porto ou coisa que o valha, para significar a absurdez da situação, no seu vesgo modo de ver. É não ter a mínima noção do que fala; mas como além de falta de noção também lhe mingua a vergonha, continua por aí a perorar, provavelmente não repetindo o dislate, pois alma caridosa provavelmente chamou-lhe a atenção para o disparate). Há dias, não um comentador mas um singelo director de informação, punha a questão secessionista ao nível do Açores e da Madeira, achando que podia comparar o incomparável, não percebendo nada (ou não querendo perceber), misturando autonomias de natureza diferente). E o que ele devia perceber é que não há espanhóis; ou então: espanhóis somos todos, como lembrou D. João II aos Reis Católicos, os tipos que armaram este sarilho. Açorianos e madeirenses são tão portugueses como transmontanos e algarvios, e não se sentem outra coisa; a Espanha é uma entidade política artificial, imposta pela força das armas, ao longo dos séculos, uma unidade de que fizemos parte em várias situações e das quais saímos porque quisemos sair, ou não quisemos entrar, em várias ocasiões, sempre pela força das armas, em duas delas contra a legalidade, com D. Afonso Henriques e D. João IV (D. Afonso V também quis subjugar Castela e dela tornar-se soberano).
«Os meios devem ser ponderados à situação presente e a Espanha ainda não começou a meter pessoas indiscriminadamente na cadeia ou a torturá-las, ou o que seja (isso não impede as presentes condenações de serem exageradas e sobretudo injustas).»
Não, meu caro, as condenações não são exageradas; provavelmente as sentenças são impecáveis, porque de acordo com a legalidade do estado espanhol, mas profundamente ilegítimas, pois negam um direito básico de qualquer povo (daí a minha referência aos curdos), o tal da autodeterminação. E as leis mudam-se, é uma questão de bom senso, ou de força...
«Quando alguém se levanta contra uma ordem constitucional (porque a presume ilegítima) deve estar preparado para sofrer as consequências. Nessa medida, Junqueras ou Forcadell merecem muito mais a minha admiração que Puigdemont. Escolhem como Gandhi (ou Mandela que mais tarde se converteu à solução política do conflito na África do Sul), sofrer pelas convicções.»
Sim, deve estar preparado, mas essas considerações implicam um julgamento que não só não adianta nada, como é bastante fácil de enunciar a partir do teclado. O exílio não deve ser um mar de rosas; em segundo lugar, não sabemos que articulação terá havido entre os protagonistas; e por fim, o Puigdemont serve a sua causa em Bruxelas, e não creio que haja catalão que não o apoie.
E, deixe-me que lhe diga, a conversa da constituição é uma treta, pois na transição todos queriam ver-se livres do regime e aceitaram todos os compromissos para acabar com o franquismo. Falar de constituição nesta altura do campeonato é de um grande cinismo (não seu, mas dos políticos de Madrid).
«Relativamente ainda à acção violenta, o insuspeito Camus disse um dia que entre a Justiça e a sua Mãe (que vivia na Argélia), ele escolheria a sua Mãe. Eu faria exactamente a mesma escolha...
E, chame-me cobarde ou reaccionário, não vou criticar nenhum Espanhol ou Catalão (Pied-Noir ou não) que faça também essa escolha. E cuidado com aqueles que a fizerem. O terror, como bem mostra a História, não é normalmente só a arma de um dos lados... A Guerra Civil de Espanha foi tudo menos um conflito entre os bonzinhos e os mauzinhos... Cuidado com o que se deseja...»
O Camus era um individualista, e bem; também eu me considero tal. As nossas opções são sempre sopesadas entre a ética e as convicções, por um lado, e os custos e danos por outro. Cada um deve ter a liberdade de agir em conformidade com a sua consciência, sem entrar no tropel da manada. Mas tenho a certeza de que faria suas as extraordinárias palavras do José Martí: «Si no luchas ten al menos la decencia de respetar a quien sí lo hace.»
O "terror". Chamar terroristas a quem pega em armas para defender-se é o que faz o Erdogan aos curdos do PKK e os que lutaram contra o Daesh, era o que o Salazar chamava aos movimentos de libertação das colónias. Não, meu caro, não faço esse favor aos opressores, mesmo que sejam opressores 'soft' ou 'light'. Se um comando catalão atacar pelas armas a sede da polícia espanhola, não serei eu quem levantará a voz para os condenar, era o que faltava. Embora, como escrevi, considere mais produtiva e inteligente um movimento de desobediência civil essencialmente pacífico e simbólico, mas eficaz.
Terror é o que fez aquele islamita em Nice, que varreu dezenas de pessoas ao volante de um camião; ou os guerrilheiros da UPA, que massacraram colonos e indígenas, mulheres e crianças no norte de Angola, em 1961, ao contrário do MPLA, que assaltou uma cadeia onde estavam presos políticos nacionalistas / patriotas angolanos. Terror é condenar um líder político a 13 anos de cadeia.
Não, a Guerra Civil foi uma insurreição contra um governo democrático legítimo, chefiada por uma ratazana cujas ossadas vão ser despejadas daquele ignominioso Vale dos Caídos, o tipo que mandou fuzilar o Companys, presidente da Generalitat durante a II República. Não há mauzinhos nem bonzinhos; quando muito tipos do lado certo e outros do outro lado.
«Mas depois, existe um pequeno problema, aparte a falta de coragem dos Partidos Espanhóis que não querem abrir a caixa de Pandora dos referendos e se preparam para abrir a do separatismo porventura violento.»
Não querem, porque a direita espanhola é profundamente reaccionária e franquista, do aldrabão do Alberto Rivera (filho de colonos andaluzes que o Franco mandou para lá, que cortou o 'o' do nome para parecer catalão) ao gajo do Vox, a extracção é toda a mesma: o PP, o partido nascido do franquismo. Fui um pouco injusto com o PSOE, que quis de facto dar um salto a tempo para outro patamar político, mas sempre bloqueado pelos franquistas do PP. É a minha embirração com o Sanchez, de que me penitencio, em período eleitoral, embora não dê nada por ele, como político ou indivíduo (um tipo que plagiou a tese, não é?...).
«A maioria dos catalães votou, nas últimas eleições, em Partidos Unionistas, a maioria presente no Parlement deve-se a um sistema eleitoral não proporcional e o mesmo se passou na anterior eleição que deu o Parlement que declarou a independência. Fazer um referendo sem sequer se dispor de uma maioria parece-me um bocadinho forçado...»
Creio que está a incluir nessa alegada 'maioria' o Podem, que em bom rigor não é unionista nem separatista (o que faz a propaganda...) E se é como você diz, não percebo por que razão os 'arriba españa' não viabilizam o referendo, gozando do seu triunfo em todas as frentes, e passam pela vergonha de serem desprezados em países civilizados. Aliás, tem-se visto quem vem para a rua em Barcelona, a defender a integração: aqueles embuçados de braço levantado em saudação fascista. Não era preciso ver, já se sabia, mas assim é mais eloquente.
«Quanto à vida ser feita de crises, bom, eu contrariamente àquele escritor francês, prefiro o aborrecimento à barbárie. O aborrecimento tem futuro, a barbárie não tem nenhum...»
Ora, somos dois! Mil vezes o aborrecimento da vida burguesa e medíocre dentro dos carris. Mas, lá está, não irei criticar quem se revolta contra a indignidade. Viver de joelhos deve ser muito aborrecido, e por vezes também deve custar a olhar para o espelho. Li já há uns bons anos uma entrevista dum escritor catalão que se assumia como independentista, e lembrava, com indignação, de como no seu tempo de criança e jovem, estava proibido de aprender a sua língua na escola. É realmente desagradável andar agachado.
Deus queira você tenha razão nesse optimismo quanto à falta de futuro da barbárie. Mas, como tenho dito, os catalães é que sabem. E note que não tenho nenhum preconceito contra os castelhanos, muito pelo contrário; mas as coisas são como são.