sábado, dezembro 30, 2023

caracteres móveis

«Coitada da criatura, andara com ele ao colo e, pois que tinha direito quando menos a amenidades, qualquer remoque ser-lhe-ia insuportável.» Aquilino Ribeiro, Volfrâmio (1943)

«Tão centradas na ideia do fim, as religiões formam exércitos de seres humanos impressionáveis, sensíveis às imagens de catástrofes, às histórias de cataclismos.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013) 

«Tinham fechado mais cedo, porque os santos eram dias alumiados, e, talvez também pelo hábito de sair só depois da uma hora batida, se sentira atraído pelo ruído da rua.» Alves Redol, Os Reinegros (c. 1944/1972) 

música para salvar o ano #8. NOW ANT THEN (The Beatles)

histórias curtas

«Atirada de vinte e cinco metros, talvez aí há quarenta anos, cortando a noite em duas metades (a primeira caiu ao rio e a segunda andou à deriva até surgir a madrugada), a navalha entrou na garganta do Norberto.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) «Nos exames não se podia rir, senão baixavam as notas.» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984) / «O falar eu no vinho, no queijo e nas azeitonas não induza porém o leitor em erro; não vá pensar que seja o tio Zé das Candeias algum contador de histórias mercenário ou capaz de fazer chantagem com o muito que sabe para me extorquir estes petiscos da gastronomia rústica.» A. M. Pires Cabral, O Diabo Veio ao Enterro (1984)

sexta-feira, dezembro 29, 2023

música para salvar o ano #7 - EL REGALO QUE ME HICISTE (Salvador Sobral)

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«Algumas noites, repetindo o costume da infância, sentávamo-nos no banco à porta da casa da minha avó, vazia desde que ela faleceu.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

«Aos sete anos, sem o saber, era um milenarista, deslumbrado pela ideia do fim do mundo.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)

«Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro.» José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000)

música para salvar o ano #6. - DEEP END (PAUL'S IN PIECES) (The National)

quinta-feira, dezembro 28, 2023

vermelho e negro

«A ter de empunhar uma espada, que ela sirva para fazer triunfar algo que possua signos inéditos, algo que constitua uma nova aspiração; embora esta venha a fenecer em breve, como sucedeu na Rússia.» Ferreira de Castro, «Sadoul e Wrangel», A Batalha (1924)* / «Abrem-se nesta hora as válvulas dos instintos inferiores e os vícios ejaculam-se, em série.» Jaime Brasil, «Carta do Povo sobre a loucura do Carnaval», A Batalha (1924)** «Eliseu Reclus, com o seu vasto saber, desprezava honrarias -- não fingia desprezar, desprezava-as -- vivia pobre, preferia a companhia, a convivência dos operários, dos camaradas em ideias, dos discípulos de boa vontade; não confundia a legalidade com a justiça, nem a autoridade com a razão; e, ainda por cima, proclamava-se abertamente um libertário, um anarquista.» Emílio Costa, «Recordando», Seara Nova (1930)***


* Ecos da Semana -- A Arte, a Vida e a Sociedade (edição de Luís Garcia e Silva, 2004); ** Voz que Clama no Deserto (edição de Elisa Areias e LCS, 2007); *** Eliseu Reclus (edição de EA e LGS, 2006).

música para salvar o ano #5 - COUSIN (Wilco)

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«Abalara até ao Rossio, embora cansado do trabalho do armazém, mas mais cansado ainda dos maus modos dos primeiros-caixeiros, piores no trato do que os patrões, convencidos de que chegariam mais depressa a sócios da casa.» Alves Redol, Os Reinegros (c. 1944/1972)

«Duas mãos ternas e jeitosas, vermelhas e antes do tempo deformadas, passeiam sobre as roupinhas húmidas do borrifo, alisam-nas, empunham de novo o ferro que muitos anos de uso poliram: são elas, em toda a casa, o único sinal de vida.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)

«Partia do princípio que, vindo para Malhadas, era como um bombeiro com obrigação a qualquer altura de acudir às misérias dos labregos, se pobres, alguns, dignos de amparo, e encalacrados da vida muitos, não poucos, mariolas de alto bordo.» Aquilino Ribeiro, Volfrâmio (1943)

quarta-feira, dezembro 27, 2023

música para salvar o ano #4. ANGRY (The Rolling Stones)

101 contos

«D. Branca  vivera com os pais no século XIX e com o resto da família no século XX, sempre na mesma casa e fornecendo-se sempre dos mesmos estabelecimentos de mercearia e de outras trivialidades prementes.» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «Depois, estendeu o braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações de pesca, em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre as nuvens.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «Esperei minutos, horas, antes de me decidir por aquilo que desde logo me pareceu indicado: uma intervenção com os medonhos ferros que são o pesadelo das parturientes e das famílias aldeãs.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

música para salvar o ano #3. AVALANCHE (Tomara)

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«Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa -- mesa imensa de pés torneados, coberta com uma colcha de damasco vermelho, e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da "História Genealógica", todo o "Vocabulário" de Bluteau, tomos soltos do "Panorama", e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900) 

«Os amantes conservam-se afastados um do outro, desde que se desprenderam cuidadosamente, para não darem a impressão que tinham vontade de se afastar.» João Gaspar Simões, Elói ou Romance numa Cabeça (1932) 

«Os homens, mesmo os mais timoratos, aplaudiram a resolução -- e em quase todos eles existia, secreto, o desejo de imitar o audacioso.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

terça-feira, dezembro 26, 2023

música para salvar o ano #2. - A NOITE DO MEU BEM (Celeste Rodrigues)

vermelho e negro

«Enquanto pela triste força dos factos, pela influência da tradição, pela obediência inerte dos espíritos, pelo adormecimento das consciências, pelo amedrontamento das almas, pelas predominâncias estéreis, pela força dos interesses pequenos, pelo afrouxamento dos sentimentos livres, pelo abaixamento moral, por tudo isto, os interesses deste território foram desprezados, os desenvolvimentos impedidos, as livres consciências esmagadas, a acção abafada, as administrações descuradas, todos os elementos fecundos sufocados, um jornal que procure representar o Direito, a Justiça, a Razão, o Princípio, a consciência Moral, não será por certo inútil.» Eça de Queirós, O Distrito de Évora (1867)*«Ex-escravos, lançados em plena evolução da ciência que neste último século tem tomado um desenvolvimento colossal, os negros educaram-se, viram quão iníqua era para eles a sociedade americana, compreenderam os seus direitos, que são iguais aos dos brancos, e enquanto os não alcançarem , os motins não cessarão e o sangue não deixará de correr pelas ruas.» Mário Domingues, «Colonização», A Batalha (1919)** /  «Que tu fosses republicano até o cinco de Outubro vá; mas é lá possível que ames hoje a república como a amavas danes?» Manuel Ribeiro, «A um herói da Rotunda», O Sindicalista (1911-12)***

* Prosas Esquecidas, edição de Alberto Machado da Rosa (1965) ** / A Liberdade não se Concede, Conquista- se.Que a Conquistem os Negros!, edição de António Baião (2023) / *** Na Linha de Fogo  Crónicas Subversivas (1920)

domingo, dezembro 24, 2023

Feliz Natal!


 

o tempo das amas e criadas, e outros caracteres móveis

«Criadas estrangeiras e fortes moçoilas espadaúdas conduziam ao banho as crianças, que saltavam pelo saibro do caminho.» Conde de Sabugosa, «A aliança inglesa», De Braço Dado (1894) «Durante o Inverno, as mais das vezes, o Oceano batia, por tal forma enraivecido, na muralha negra das rochas, que isolava do mundo aquele milhar de habitantes, cujas vidas se consumiam entre disputas, tédios, quesílias e saudades pelos ausentes, uma carta que recebessem servindo a estirados paleios com os vizinhos, toda a população, afinal.» Assis Esperança, «O dinheiro», O Dilúvio (1932) «Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das regas -- chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia cautelosa.»Eça de Queirós, «Singularidades de uma Rapariga loura»(1874), Contos (póst., 1902)

sábado, dezembro 23, 2023

Charlie Parker, «Scrapple From The Apple»

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«Arreadinha de fresco, penteada, amanhecia outra a Micas Olaia.» Aquilino RibeiroAndam Faunos pelos Bosques (1926) «E que salutar eflúvio, que transfusão da vida nova ele realizaria nesse organismo debilitado por tão frequentes crises, cujos terríveis efeitos gerações ignaras ou negligentes não tinham sabido atalhar, quer favorecendo o descalabro, quer recompondo ineptamente!» Manuel RibeiroA Catedral (1920) Raul Brandão: «Não há velhas com cartas na mão; há orgulho, soberba, inveja paciente.» Húmus (1917)

sexta-feira, dezembro 22, 2023

Béla bartók & Joseph Szigeti, Sonata para violino e piano ("A Kreutzer") Op 47 (Beethoven)

o vómito do medicamento

 Estou enojado com esta história das crianças brasileiras, o aproveitamento do chega e da il. Aliás, o meu post de ontem teve tudo a ver com isso mesmo. Que gente miserável...

Fica aqui dito que

1) Os pais fizeram o que qualquer progenitor faria; quem disser o contrário é velhaco e mentiroso;

2) O filho de Marcelo, diante deste caso extremo, que suponho desesperado, fez o que qualquer pessoa decente também faria: não se escusou a ajudar (a não ser que me venham dizer que houve contrapartidas em dinheiro ou géneros, o que até agora nunca foi referido).  Quem disser o contrário, revela ser indiferente à dor dos outros, e até um bocado pulha.

3) Tomando as declarações do Presidente pelo valor facial, este fez o que qualquer um no seu lugar faria, e que, de resto, ele afiança que faz, e eu acredito, até porque não implica nenhuma responsabilidade particular. Não iria tratar diferentemente o filho dos restantes cidadãos, até pelo assunto em causa.

Nunca ouvi até agora uma notícia desta badalhoquice de noticiário televisivo sobre se as meninas melhoraram ou não (mas pode ser falta minha), parece que sim; o que sei, e não foi desmentido, é que não passaram à frente de ninguém.

Pode dizer-se que o nome abre portas rapidamente; assim é, felizmente para as crianças em causa e infelizmente para os cidadãos portugueses. O que se deve exigir a este Estado enconado por burocratas e papéis é que trabalhem e se faça uma terraplanagem nas intermediações estùpidocratas de todos os mangas-de-alpaca que tornam a vida das pessoas num inferno: doentes, imigrantes, tudo. Sobre esta porcaria de organização burocrática do Estado a todos os níveis, é que o jornalismo deveria afinar a pontaria, o resto é farisaísmo rasteiro e oportunismo á chega.

"ventre estafado" e outros caracteres móveis

«Os seus olhos vorazes eram mais temíveis do que esse ventre estafado de esforços vãos, do que a bacia que se opunha à vida.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Pelas estradas, ao largo, chiavam estridentes os carros, precedidos pelo andar  saracoteado das raparigas, que, de pés descalços, saia curta, aguilhão ao ombro, e negro chapéu de Avintes, falavam aos bois pequeninos, jungidos pela alta canga rendilhada.» Conde de Sabugosa, «A aliança inglesa», De Braço Dado (1894) / «Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse d sua vida.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)

quinta-feira, dezembro 21, 2023

Bob Dylan, «With God on Our Side»

o eleitorado do Chega

Não me merecem respeito nenhum. Temos duas categorias: o lumpen  social, os feios, porcos e maus -- pobres, invejosos e iletrados, nutridos a futebóis, concursos e soft porn televisivo e pasquins de mexericos; e uma minoria rancorosa, saudosista do 24 de Abril, que usa e serve-se do mesmo lumpen; tipos sem vergonha que votavam no CDS e no PSD, e que obviamente passaram a ver muito maior utilidade neste calígula verbal. É interessante ver quem são os financiadores do Chega: li há dias num jornal qualquer: o grupo Melo, cada vez mais donos disto tudo outra vez, o Champalimaud dos Correios, empresa pública lucrativa, privatizada pela figurinha do Passos Coelho; o Barraqueiro, entre outros cujo nome se me desvaneceu.

Acabar com os tachos e a corrupção -- dizem os pendões do partido, certo? Ahahah, caralho!..., Por vezes até me apetecia vê-los chegar ao poder, para ouvir outra vez estes animais que lhe vão dar o voto dizerem: 'É tudo a mesma cambada!...' O que talvez venha a suceder, a chegada ao poder, mais ano menos ano, se sobreviver ao ligeiro crescimento que vai conhecer nas próximas eleições. Isto se ao pobre do Montenegro não acontecer ganhar a eleições, o que só sucederá se outra bomba nuclear táctica for largada em cima do PS e de Pedro Nuno Santos, com todas as condições para mastigar e cuspir o presidente do PSD num debate: o que não é de todo mau, pois a direita está na mão de arruaceiros: Montenegro, Ventura, Rocha e até Nuno Melo, que vai ao colo do PSD e não irá debater.

de volta, e outros caracteres móveis

«Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi com delícia a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos nos pés assisti às ceifas dos milhos.»  Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901) / «E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a aumentar, a calar através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia!» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868) / «Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que prescrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhe as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982)

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quarta-feira, dezembro 20, 2023

"na hora em que os campos rescendiam" e outros caracteres móveis

«Era sempre no Verão que um paquete português os arrebanhava, e precisamente na hora em que os campos rescendiam aromas da vegetação verde-bronze, e as árvores vestiam seus braços nus, oferecendo sombras acolhedoras.» Assis Esperança, «O dinheiro», O Dilúvio (1932) / «Tudo quanto era navalhas, canivetes, facas, punhais de prata, adagas marroquinas, bisturis e outras lâminas de paixão, ou de vertigem, nascia, de preferência à noite, na mão do Toledo das Rondas, que procurava, a larga capa negra esvoaçando ao vento, gravitando num turbilhão de obsessões, vagabundos, amnésicos, esquizofrénicos, outros homens sem bússola, ou sem emprego, prostitutas e gatos, os mais independentes, nas ruas banhadas por um luar insuportável, o luar de antigamente, que morava na Rua do Capelão, juncada de rosmaninho.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) «Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no fundo.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)

terça-feira, dezembro 19, 2023

João Gilberto & Stan Getz, «Vivo Sonhando»

hora de admoestações e outros caracteres móveis

«Descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmã, e beijar a mão ao pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se ele caísse em novas extravagâncias.» Camilo Castelo BrancoAmor de Perdição (1862) 

«Sacerdote do Cristo, ensinado pelas largas horas de íntima agonia, esmagado o seu coração pela soberba dos homens, Eurico percebera, enfim, claramente que o Cristianismo se resume em uma palavra -- fraternidade.» Alexandre HerculanoEurico o Presbítero (1844) 

«Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura.» Almeida GarrettViagens na Minha Terra (1846)

segunda-feira, dezembro 18, 2023

The Beatles, «Please Please Me»

a Rua da Cedofeita, e outros caracteres móveis

«Cedofeita é uma rua estreita onde o sol entra por favor, abrangendo de luz os parapeitos dos primeiros andares das casas» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «Não tomarei muito mais tempo ao leitor antes de entregar a palavra ao tio Zé das Candeias, retirando-me discretamente para a condição de cronista, fiel tanto quanto puder, que só pedirá palavra quando se tornar indispensável.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1984) / «O Luisinho percebeu que, com aquela, o Frei José queria era que ele fosse para o convento, mas, francamente, ele não achava que o convento fosse uma vida melhor: levantavam-se muito cedo, não brincavam a nada, antes pelo contrário porque andavam sempre muito sérios e muito tristes.» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984)

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domingo, dezembro 17, 2023

honra, escrúpulo e outros caracteres móveis

«E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu carácter uma ideia simpática, porque os Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de escrúpulo.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura», (1874), Contos (póst., 1902) «E embora as linhas físicas dele não se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê do seu todo, sugeriam a ideia de homem habituado a trilhar as estradas do mundo, de varapau na mão, ao assalto da vida.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) «O Frei José, nas confissões, dizia-lhe que Jesus Cristo chamava alguns eleitos "para uma vida melhor" e que ele ouvisse o santo apelo de Deus.» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984)

bom discurso de Pedro Nuno Santos, mas

obviamente não votarei PS, por duas razões: é um partido minado pelo tifo do asqueroso wokismo, com o qual ele, PNSantos, parece conviver bem; por outro lado, nada me indica que contrarie a posição de pura subserviência à Nato, praticada pelo antecessor, apesar de a nossa margem de manobra como membros da aliança ser estreita. Uma nota para a expressão "europeísmo crítico", por si usada. A UE precisa de europeístas críticos como de pão para a boca. Se isto significar alguma coisa na boca de PNSantos, só o saberemos depois. Quanto ao resto, vi uma convicção que me pareceu genuína. Espero que sim, até porque ele será muito provavelmente o próximo primeiro-ministro, com entendimentos à esquerda, espero que com o PCP. Ter o PS à solta só com o Bloco, o Livre e o PAN, amigos do Zelensky e da lavagem ao cérebro da sexualidade das criancinhas, apesar de a passividade do PC neste ponto deixar muito a desejar. Deveriam tomar o Putin como exemplo, e travar a brincadeira; mas, para ser franco, não estou ver. Parece-me que PCP vê o wokismo como uma borbulhagem que passa com uma terapêutica adequada, o que creio ser um erro grave; e, claro, escaldados com o balir do rebanho a propósito da Ucrânia, não lhes deve apetecer estar na berlinda por assuntos que reputam como secundários. No entanto, estou inclinado a dar-lhe os voto. Diante deste panorama, a quem mais?

sexta-feira, dezembro 15, 2023

comércio espiritual, e outros caracteres móveis

«Ali rezavam e pediam em troca do milagre da sua ventura e prosperidades: toma lá, dá cá em vésperas de abaladas para as Américas, os emigrantes doloridos a quem uma vida de privações e desconforto incitava à fuga.» Assis Esperança, «O dinheiro», O Dilúvio (1932) / «E ali fiquei, humilde, embrutecido, perante a comadre escura que me vigiava.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Há também o tio João Vicente, mas esse é mazombo de todo e não se presta a grandes conversatas: sim, não, às vezes um bô era! enfático -- pouco mais arranco daqueles setenta e cinco anos ensimesmados e sorumbáticos, como que zangados com a vida.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1985)

quinta-feira, dezembro 14, 2023

quanto mais pequena a Ucrânia, mais facilmente entrará na UE (ucranianas CCXIX)

A impostura foi tão grande, que faz de conta que a UE não comprou a abstenção da Hungria, faz de conta que a Hungria não está lá a fazer nada, faz de conta que a Ucrânia está com os dois pés na UE. Tudo é mentira, mas que importa se se faz de conta que é verdade? Como toda esta guerra, de resto, a não ser para os mortos e as restantes vítimas.

O que me parece realmente real é que a Ucrânia que eventualmente vier a entrar na UE, será um estado muito menor, menor do que hoje é.

atracções obscuras e outros caracteres móveis

«A navalha era do Norberto, até tinha as suas iniciais no cabo, mas foi atraída, por obscuros motivos hipnóticos, para a mão do Toledo das Rondas.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) / «Depois dos achaques, D. Branca ficava cor de cera, parecia pronta para embarcar no comboio mistério da morte.» Ruben A., «Branca», Cores (1960) / «Uns farrapos ténues de nevoeiro, últimos vapores da natureza  que se espreguiça num acordar glorioso, cardavam-se lentamente nos pinheirais, em cujo fundo escuro destacava a construção aguda da capela da Granja.» Conde de Sabugosa, «A aliança inglesa», De Braço Dado (1894)

quarta-feira, dezembro 13, 2023

Carlos Ramos, «Vielas de Alfama»

"um problema de parto e de cortesia" e outros caracteres móveis

«A família trazia consigo um problema de parto e de cortesia: dois médicos estavam nessa tarde em Monsanto, lado a lado, à mesa duma boda.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) «Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia para pegar no livro.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) «Para as criadas, nos momentos assim, a vida com D. Branca era negra.» Ruben A., «Branca», Cores (1960)

"Assassinos da Lua das Flores"





1. Leonardo Di Caprio, retumbante, ofusca De Niro, se tal é possível.
2. Foi preciso chegar quase aos sessenta pata ouvir falar nos osage.
3. A América é sangue e rapina, entre outras coisas também menos más. Scorsese mostra-o com melancolia.
4. A cena do incêndio, não esquecerei, por muito que ainda possa viver.
5. Quantas vezes já aqui escrevi que o Martin é o meu realizador preferido?
6. Mesmo assim, o filme parece ter meia hora amais. Quando o vir de novo, confirmarei.

terça-feira, dezembro 12, 2023

a navalha do Norberto e outros caracteres móveis

«Depois, os homens falavam alto e as mulheres ficavam grávidas, as gaivotas rasavam o cais, alisando a pedra, subindo subitamente, enquanto o Norberto afiava mastros, virados para o céu, com a navalha que um dia se lhe cravaria na garganta.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) «Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e eu reparei então nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de couro.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)«Terra aproveitável, aqui e além deitada em poisos, apenas encostas magras, declives que morriam em pequenas planícies cortadas a pique sobre o Oceano revolto.» Assis Esperança, «O dinheiro», O Dilúvio (1932)

segunda-feira, dezembro 11, 2023

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 «Como não tinha tempo para despedir as chatices pagava aos cigarros para conversarem com elas.»  António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984) / «José desagua em Zé: a semelhança articulatória entre o  e o z tende a fundir numa só as duas sílabas, numa espécie de haplologia bizarra, quando se fala correntemente, sem os salamaleques e oxalás devidos ao senhor José.» A. M. Pires Cabral, «O saco», O Diabo Veio ao Enterro (1985) / «Que de facto poucas vezes se terá visto cabelos tão negros em inglesa tão branca -- uma variedade de inglesas bem mais perigosa que a das espanholas que teimam em ser loiras.» Conde de Sabugosa, «A aliança inglesa», De Braço Dado (1894) 

101 contos portugueses - #7

«A aliança inglesa», do Conde de SabugosaDe Braço Dado (894).

A estória (com final feliz) duma inglesa em término de lua-de-mel numa praia do Norte, que vê a felicidade conjugal ameaçada por uma carta duma amante enviada ao marido português, não me saiu da cabeça, mesmo que a tenha por duas vezes rejeitado para esta minha lista. A angustiada jovem esposa impôs-se-me, e um parágrafo em especial, no meio duma rebentação estival à beira-mar.

O incipit: «A sua vaidade de mulher bonita lisonjeava-se com a convicção de ter fixado o coração volúvel e a imaginação impressionável do noivo; a consciência da própria superioridade dava-lhe a certeza de ter definitivamente tomado posse do espírito do marido, fortaleza tantas vezes atacada, e outras tantas espontaneamente rendida, nas batalhas alegres de uma mocidade jovial.» 

sábado, dezembro 09, 2023

a propósito de António Guterres, o que menos interessa para agora

 Apenas para dizer que o Secretário-Geral da ONU honra os portugueses; e, já agora, desonra quantos o criticam na questão israelo-palestina.

terça-feira, dezembro 05, 2023

a arte de começar mais depressa

 «O rebanho». «Olhares a ressumarem medo, a voz rastejando um tom humilde, o garotelho, oito anos anémicos, vestido a farrapos, prosseguia: -- A mãe diz que é tarde!»

«Ruínas». «-- Podia demorar-se mais...»

«A inimiga». «Ela recuperava forças.»

«O vencido». «-- E o filho?»

Assis Esperança (1892-1975), Funâmbulos (1925)

domingo, dezembro 03, 2023

ainda o aeroporto de Beja

 Enquanto esperamos que uns quantos (ir)responsáveis que venham a ser eleitos decidam do novo aeroporto. a partir do relatório de uma comissão técnica independente que afastou (com ligeireza?) a solução Beja, uma pessoa altamente competente e sem papas na língua, João Joanaz de Melo, é mais uma que avança com a infraestrutura alentejana como complementar ao de Lisboa. Sobre Santarém não sei nada, mas sei que os ecocídios e outras malfeitorias , seja Alcochete seja Montijo são inadmissíveis. A não ser pelos tais (ir)responsáveis que dizem, entre outras barbaridades, que Portugal perde milhões de euros todos os dias por não decidir entre duas opções péssimas.

quinta-feira, novembro 30, 2023

o homem que queria saber tudo

Se o registo é BD, também posso fazer a boutade de chamar tudólogo a um dos maiores pensadores da humanidade, Aristóteles (384-322 a.C.), sistematizador de quanto o conhecimento da mundo antigo produzira, passaando pelo crivo da experiência e da razão. Ética, Metafísica, Poética, Ciências Naturais, Filosofia. Discípulo, admirador e dissensor do grande Platão, admiração e estima que lhe foram retribuídas. Uma BD de 213 páginas com um texto fluidíssimo e um découpage exímio de Tassos Apostolidis e desenhos de Alecos Papadatos, que conseguem a proeza de conjugar informação sem laivos de didactismo, com humor e acção. Não é uma coisa em forma de BD, mas BD em estado puro.

Enviado pela Gradiva.

Charlie Parker, «Embraceable You»

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«E lá fora, indiferente à música fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo, à jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionistas e ao pasmo da minha admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque de patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um andor às arrecuas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Fraco de sangue, embora até ali sobranceiro por causa dos seus interesses nos caminhos-de-ferro,  e na finança, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida à caixa do banco de que era director e accionista.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961) / «O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante de folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) 

terça-feira, novembro 28, 2023

Sandór Falvai & Tibor Parkanyi, Fratres (para violoncelo e piano) (Arvo Pärt)

a arte de começar

 «Estava ali havia um bom pedaço vindo da esquina até defronte do prédio onde ela servia, enervado de esperar tantos minutos, pois já lhe assobiara o sinal combinado e ela ainda não aparecera, nem sequer à janela, aquietando-lhe a dúvida que começava a preocupá-lo.»

Alves Redol, Os Reinegros (c. 1944; póst., 1972)

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«Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga, ofereciam travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidas pelo fastio pegajoso das moscas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Um homem pode andar por cá a vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido.» José Saramago, Levantado do Chão (1980) / «Uma voz canta ao longe, na dispersão do entardecer.» Vergílio Ferreira, Para Sempre (1983)

segunda-feira, novembro 27, 2023

domingo, novembro 26, 2023

os bobos desta corte

 Elisabete Tavares, jornalista, na mouche.

sexta-feira, novembro 24, 2023

João Gilberto & Stan Getz, «Só Danço Samba»

o amor é forte como a morte

Sempre achei o snobismo uma falha de carácter em que muitos se comprazem, a começar por mim quando, raramente espero, caio na armadilha de ser snob, que horror! Sine nobilitate, sem nobreza, diz-se, certa ou erradamente que está na origem da divertida palavra. Si non è vero...

O snobismo em arte, então, é exasperante -- pobres criaturas que se atabafam a esconder aquilo de que realmente gostam em troca do alarde do que os outros esperam que gostem, que infelizes devem ser nessa vida clandestina que se impõem, Tom Waits pr'aqui, Robert Wyatt (será?) pr'acolá, mas o que lhes faz soltar o pèzinho é o Tony Carreira, a até levam a mãe ao piquenicão do Continente.

Teresa Radice e Stefano Turconi são uma dupla nos fumetti  italianos e também na vida real. O leitor português pôde lê-los nas revistinhas Disney -- as Comix, de boa memória e péssima administração. São orgulhsos autores de histórias do Mickey, do Pato Donald, do Tio Patinhas, etc.; mas são também autores de BD para um público adulto. Sim, com um muito agradável erotismo, mas não é disso que estou a falar. Um livro que li há pouco, Il Porto Proibito -- inédito em Portugal, mas não em Espanha, nem em França -- como és belo, meu Portugal, citando Luís Cília --, uma história de marinharia e amores para além da morte, passada em navios, numa casa de órfãs e num bordel, merecedor de uma exegese que aqui não cabe.


Teresa Radice & Stefano Turconi, Il Porto Proibito

Bao Publishing, Milao, 2015




quadrinhos


 

quinta-feira, novembro 23, 2023

101 contos

«A família veio por aí acima, entregue ao passo conformado daqueles heróicos jericos de Monsanto, que galgam e se firmam nos pavorosos declives dos caminhos.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-me na ideia de que o "facto", o "caso" daquele homem, devera ser grotesco, e exalar escárnio.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902) / «Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos -- barcos de cera e pequenos quadros, ingénuas pinturas feitas sobre madeira.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)

um interessante problema posto por Woody Allen no seu último filme, a natureza dos gestores de fundos de investimento





Subespécie particularmente vil, do mesmo grupo dos traficantes, dos lobistas, dos especialistas em "comunicação", são os gestores de fundos de investimento, que geram dinheiro a partir do dinheiro, ou seja, do nada, e que nada vale quando estoiram as bolhas em que flui. É o capitalismo mais miserável e predador, porque é cego e não quer saber, atirando-nos a todos contra a parede -- incluindo os próprios, espécie suicida, como se vê em todas as grandes crises, como o crash  de Wall Street, em 1929, ou a chamada crise do subprime, desencadeada em 2007. 
Neste delicioso filme do cancelado realizador da pátria da democracy, o gestor de fundos de investimento não é apenas o banal coiso que ajuda os ricos a tornarem-se mais ricos, mas também um valente cornudo. O resto é o acaso.

Carlos Ramos, «Sonho fadista»

quarta-feira, novembro 22, 2023

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«A alma do gafanhoto, naquele dia, aproximou-nos dele.» Jorge de Sena, Sinais de Fogo (póst., 1979) / «Se você procurar bem na sua infância, Austin, há-de encontrar nela um gato sarnento que lhe roçou o lombo nas pernas cinquenta ou sessenta vezes, e isto, segundo Molero, marcou a sua vida.» Dinis Machado, O que Diz Molero (1977) /   «Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas.» Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas (1972)

terça-feira, novembro 21, 2023

João Gilberto & Stan Getz, «Desafinado»

a pobre pólis ou o país que não presta

estas tricas sobre quem disse o quê a quem entre Marcelo e Costa -- já não estava habituado a estas figuras;

a luta pela conquista do poder no PS entre Carneiro e Santos (o outro já se sabe o que é; este, aposto que vai ser outro cordeiro da Nato -- muito me admiraria que viesse dali uma noção do peso político simbólico e de influência internacional que um velho estado pode ter). Quanto a lítios e aeroportos, PNSantos também já deu provas do que é capaz;

a incompetência deste país de aparências. em que é preciso que um descendente de um judeu português seja feito refém para que a puta da papelada ande; e que uns luso-palestinos sejam mortos (uma mãe e duas crianças) para que os sobreviventes sejam evacuados para o Egipto no dia a seguir;

oh, e as azémolas do Ministério Público, não só pelas sucessivas anedotas dos tropeços nos factos, como para aquele ter mais olhos que barriga, que até parece ser de propósito. O que tem a ver o lítio do Barroso com o centro de dados de Sines? por que razão juntam dois processos diferentes? Por tratar-se do mesmo ministro? É que enquanto cidadão comum que ainda não percebeu porque foram dentro o influencer (!) e o autarca, continuo também sem perceber como não há sangue na história do lítio, com a tal empresa a ser constituída uns dias antes, história manhosa a fazer lembrar a compra dumas máscaras antifogo a uma empresa com sede num parque de campismo. 

101 contos

«A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogada em arroz branco, com fatias escarlates de paio -- e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava defronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos -- se ele era de Vila Real.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902) / «Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor poético, fino, voejante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas que padroam as montanhas» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «E desde que a comadre confessara a inutilidade dos seus préstimos, justificando-se com a criança atravessada no ventre, nada havia ali a fazer salvo a ciência dum doutor.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

segunda-feira, novembro 20, 2023

e não me venham falar de propaganda

o grande cartoon desta puta desta guerra, no focinho de certos comentadores


 

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«Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja.» José Cardoso Pires, O Delfim (1968) / «Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os sobrados.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) / «Matara-o uma égua de pêlo-rato, desenfreada, ao atirar com ele de encontro a uma oliveira, na fúria dum galope.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)

domingo, novembro 19, 2023

sábado, novembro 18, 2023

Paul Englishby, Charlie Siem, «Six Pieces for Orchestra - Blade» (Tony Banks)

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 «Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de Julho ou os tufões regelados de Dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)

quinta-feira, novembro 16, 2023

Carlos Ramos, «Despedida»

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«Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril.» Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862)

quarta-feira, novembro 15, 2023

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«Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst. 1982)

antologia improvável #527 - José-Emílio Nelson

 

OBRAR, CARMINA


Quem vê o vate gabar nas vielas do Bairro

Que come, Bodas de Canaã, assim por alto, uma e outra e mais, à grosa,

Como naquela versalhada latina (Carmina)

E que ainda na retrete revê as dedicatórias,

Sabe que com a idade, saciado, o alarve, acabará

Por melhor obrar, obrar melhor.


A Festa do Asno (2005)


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 «As crianças ouviam os pais comentarem a novidade e achavam-na tão extraordinária como a morte.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

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terça-feira, novembro 14, 2023

Hamas e governo de Israel: nenhum tem desculpa

A Assembleia Nacional francesa irá visionar esta tarde um filme de 48 minutos que mostra os massacres perpetrados pelo Hamas  a 7 de Outubro, segundo o Libération, sendo certo que vários deputados não terão coragem de assistir, independentemente de serem pró Israel ou Palestina. Diz a notícia que equipas de emergência médica estarão em prontidão para o caso de ser necessário assistir parlamentares que se sintam mal; outros há que, tencionando ver, não põem de parte a hipótese de sair, antevendo já imagens do horror.

Talvez fosse útil fazer-se o mesmo por cá, também na Assembleia da República, para se perceber que nunca há só um lado.

De qualquer modo, se a intenção é virar a agulha da opinião pública ou as lideranças ocidentais, o governo israelita -- o primeiro responsável, o primeiro culpado da situação a que se chegou -- que se desengane quanto a algum tipo de absolvição. Um massacre -- mesmo que proporcional, sejamos também cínicos -- não absolve outro. 

101 contos

«A alguns quilómetros, para lá dos barrocais retalhados nas gargantas dos penedos, uma camponesa gemia há quatro dias as dores de parto.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para se activar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «Existe no fundo de cada um de nós, é certo -- tão friamente educados que sejamos -- um resto de misticismo; basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar -- para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista -- como um velho monge poeta.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)

antologia improvável #526 - Helder Macedo


Brilhavam três sóis

no fundo da noite

julguei que era o espelho

as luzes do carro

brilhando no gelo

mas estavam lá

suspensos da noite

até que um caiu

o outro apagou

ficou só um sol

ficou só a lua

ficaste só tu

luzindo suspensa

no gelo da noite.


                                                         Viagem de Inverno (1994)



segunda-feira, novembro 13, 2023

domingo, novembro 12, 2023

viver a vida imaginada

«Ali vivera muito, muito de vida vivida, outro tanto, ou muito mais, de vida imaginada: tão violentamente imaginada que valia por ter vivido muitas vidas. Ali, na Toca do Lobo, pois passava de cem anos que assim era o nome da casa: a Toca do Lobo

Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)

antologia improvável #525 - Manuel Matos Nunes

 ÀS QUINTAS-FEIRAS


Leio um poeta do Facebook:

A tua pele cor de canela

com sabor a gengibre e cardamomo.


Gosto de canela nos pastéis de nata,

de gengibre em certos pratos,

mas não conheço o sabor do cardamomo.


Talvez o poeta do Facebook

me possa dizer. Vou perguntar-lhe

pelo Messenger e fico à espera da resposta.


Quanto à tua pele, minha amiga,

podes vir mostrá-la às quintas-feiras

e se quiseres ser gentil ficar para jantar.


Tudo do melhor possível, assim espero,

mas escusas de trazer

canela. gengibre ou cardamomo.


Nada adiantava ao nosso caso,

além de que, se necessário,

há uma mercearia aqui mesmo ao pé da porta.


Insolúvel Flautim (2023)

sábado, novembro 11, 2023

a crónica de Viriato Soromenho Marques, sem tirar nem pôr

 «Democracia minguante», no Diário de Notícias  de hoje.

«The Only One I Know»

caderninho - La Bruyère

 «Há em arte um ponto de perfeição, como o há de excelência ou maturidade na natureza. Aquele que o sente e ama tem o gosto perfeito; aquele que o não sente e quer outra cousa, tem o gosto defeituoso. Há portanto bom gosto e mau gosto, e é com muita razão que se discutem os gostos.»


Os Caracteres (1687)

sexta-feira, novembro 10, 2023

e vão 4


 

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«A mãe, -- sentada ao pé da voltaire do avô, embrulhada no cachiné das noites compridas, com uma irritação a que o seu feitio romântico dava uma poesia desafinada, das pessoas que choram e riem sem ter de quê.» Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal (1944) / «Da cara magra pendiam-lhe duas bochechinhas disformes, os olhos paravam-se, raiados de sangue.» Manuel da Fonseca, Cerromaior (1943) / «Galgou o parapeito para seguir com a vista os vultos da mulher e do amigo, já mirrados pela distância, e que ao longo da estrada macadamizada se afastavam e à medida que se afastavam o deixavam mais só.» Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)

quinta-feira, novembro 09, 2023

Paul Englishby, 6 Pieces for Orchestra # 2. Still Waters (Tony Banks)

caderninho - Pascal

 «Há medida que se tem mais espírito, descobre-se que há mais homens originais. As pessoas vulgares não acham diferenças entre os homens.»

Pensamentos (1669)

quadradinhos

fonte

 

quarta-feira, novembro 08, 2023

caderninho - La Rochefoucauld

 «Aqueles que se dedicam demasiadamente às coisas pequenas, tornam-se geralmente incapazes das grandes.»

Máximas (1664)

jornalistas a sério

São aqueles que não tomam chá com o poder, com os poderes. Quando Sandra Felgueiras e a sua equipa revelaram a mixórdia do lítio, com concursos mal amanhados envolvendo milhões e destinados a empresas criadas 48 horas antes, o resultado foi o que se viu: as serventuárias que a chefiavam trataram de torpedeá-la com desvergonha. Uma delas anda por aí a fazer biscates selectos onde expõe a bonita voz da sua nulidade (apesar de uma multitude trendy  e oca protestar horrorizada na sua crassa estupidez por uma popularucha, a Felgueiras, que foi profissional, arrastá-la para a prateleira onde esta a queria meter); outra andou por aí na Ucrânia, a fingir de repórter quando não passava de altifalante da propaganda que o Pentágono preparara para levar a opinião pública ao seu moinho, no que foi eficacíssimo, graças a este tipo de araras. Espero que hoje a Felgueiras se tenha sentido bem vingada. 
Já vão tarde, e sem grande dignidade, ao contrário do que ouvi; embora o que esteja para vir, se o PSD ganhar, ainda seja pior.
(ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui)

terça-feira, novembro 07, 2023

felizmente, para o tpi , em Gaza não há "deportações" de crianças

 A máscara que envergaram na Ucrânia tem caído a muitos na Palestina. Não é preciso escrever mais; eles estão aí, impávidos.

caderninho - Marco Aurélio

«Tal como te parece o banho que tomas: óleo, suor, gordura, uma água turva, todas as espécies de sujidade: tal é qualquer parte da vida, tal é qualquer objecto dado.»

Pensamentos para Mim Próprio

segunda-feira, novembro 06, 2023

Charlie Parker, «Ornithology (Live)»

caderninho - Epicteto

 «Se [...] considerares teu apenas o que é teu de facto, e o que não te pertence tal qual é, jamais alguém te há-de subjugar, ninguém te fará impedimento, a ninguém culparás, com ninguém reclamarás, absolutamente nada farás contra a tua vontade, nenhum inimigo arranjarás, ninguém te molestará; nada, enfim, te fará dano.»

A Arte de Viver (trad. Carlos de Jesus)

mais um grande texto de Carlos Matos Gomes

[...] Israel justificou a resistência de todos os palestinianos e que a apreciação da prática política do estado de Israel não pode ser feita através do sofisma de escolher o menor de dois males [...]

 aqui

domingo, novembro 05, 2023

101 contos

 «À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo que, da banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos como se fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)

«E ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata sobre o côncavo silêncio nocturno, ou a opressão da electricidade que enchia as alturas, o facto é que eu -- que sou naturalmente positivo e realista -- tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874; Contos, póst. 1902)

«O curandeiro pode ser insultado na sua banca de barbeiro ou no instante aflito duma sangria de urgência; mas a comadre, a velha suja, talhada em pedra enrugada, sem sorrisos nem lágrimas, que espreita a nossa entrada no mundo, tem fama e pão certos até ao fim dos tempos.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

João Gilberto & Stan Getz, «Para Machucar Meu Coração»

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«E, provàvelmente, achando-a núbil e com ar fragrante de acácia em flor, rindo-se proferiu: / -- Não vá a tua desgraça mais longe, que agrados não te faltam para caçar homem.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926) / «Libélula inquieta no meio invariável, preso à nora de uma vida sempre igual, a notícia voou de boca em boca e, traspassando a aldeia, foi espalhar-se nas freguesias vizinhas.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) / «Sabia que ele descobrira a minha espionagem -- e que posava: o que só complicava de hostilidade irónica o meu interesse.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

se eu decidisse pelo Hamas...

Libertava todos os reféns civis, crianças, mulheres, velhos, estrangeiros e mantinha prisioneiros os militares, prisioneiros de guerra e os homens em idade de combater.

Depois, faria uma exigência simples: a abertura duma conferência internacional para a constituição de dois estados, de acordo com as resoluções da ONU, sob os auspícios da mesma ONU e países terceiros que agora me escuso de enumerar.

Claro que isto contaria com a oposição do Netanyahu; mas os cidadãos de Israel têm de saber o que querem: se continuam a votar num patife (que aliás se está nas tintas para os reféns) e toda aquela tralha religiosa a quem ele procura agradar, ou se o fazem engavetar e deitam fora a chave da cela.

Quanto maior a destruição que ele está a provocar na Palestina, mais estreito o futuro de Israel, o que será sempre uma pena.

sábado, novembro 04, 2023

antologia improvável #524 - Fernando Namora


EVIDÊNCIA


Poderão dizer que minto,

mas no dia em que a gente sabe

que peso era este

a pesar nos braços,

e se acorda a infância

que neles dormia,

nesse dia começa-se a morrer

mais depressa

e a assistir à morte

em cada instante recomeçada.

A infância foge dos braços

mas o peso continua:

é a vida que pergunta quando acaba.


Fernando Namora, Marketing (1969)

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sexta-feira, novembro 03, 2023

"não deviam ter começado"

 Marcelo é sempre tão rápido que fala primeiro e pensa depois: "não deviam ter começado", disse ele ao embaixador palestino. Estava a referir-se a 1948? Não, a 7 de Outubro de 2023 -- e aí não começou nada.

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«Esse povo anémico, com os ossos esticando uma pele morena, esperava ainda de mim a prova indiscutível que decidisse da minha reputação: um parto, por exemplo, com o seu assombroso mistério, as suas horas ansiosas.» Fernando Namora, «História dum parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

«Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, então muito sereno, com suas velas graciosas e fugidias.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)

«Os céus estavam pesados e sujos.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874; Contos, póst., 1902)

quinta-feira, novembro 02, 2023

Charlie Parker, «I Didn't Know What Time It Was»

antologia improvável #523 - Fernando Jorge Fabião


Sou um humilde vedor:

procuro os veios de água

          o ouro iluminado


Novembro é um mês alto

penso como a infância

é uma ilha absoluta


Abro um caminho e escrevo: o sol do teu olhar

é uma candeia acesa na minha vida

Uma rosa pensativa


Nascente da Sede (2000)

nem terroristas nem nazis, antes criminosos mastins de guerra

Deus me livre de ter simpatia pelo Hamas, sucursal palestina da Irmandade Muçulmana. Chamar-lhes terroristas e compará-los ao Daesh é uma patranha comunicacional da quadrilha do Nethanyahu, que vale zero: exactamente o mesmo quando se aplica a designação, por exemplo ao PKK curdo, ou, se quisermos ir à história, quando o regime do Salazar qualificava como tais o MPLA, o PAIGC e a Frelimo. Ou até, voltando à Terra Santa, o Haganah, durante o protectorado britânico. (Não esquecer que Menachem Begin, primeiro-ministro de Israel no final da década de 1970 pelo mesmo Likud, tivera a cabeça a prémio por parte dos ingleses.) Portanto, os locutores quando, repetindo a estratégia sionista-americana, violando o seu dever de isenção como alegados jornalistas, qualificam desta forma o Hamas, só mostram o quão analfabetos são. Tal não significa que o Hamas não tenha cometido um acto terrorista ao atacar e raptar civis, um acto sem perdão, que nenhuma malfeitoria de Israel justifica. Percebe-se por que o fez, mas não se perdoa. Todos os alvos militares e do estado são legítimo, todos os ataques a civis são um crime ignominioso -- e isto serve para uns como para outros.

De igual modo, qualificar com ligeireza a sanha veterotestamentária israelita como nazi, é duma estupidez inqualificável, exactamente simétrica à abusiva utilização da estrela de David que os nazis impuseram aos judeus por parte do embaixador de Israel no ONU, como, aliás, denunciou o director do Yad Vashem. Esta corja não recua diante de nada. 

Eu fui sempre contra à equiparação dos crimes do estalinismo aos do nazismo, crimes de natureza diferente cuja comparação só um asno ou um desonesto pode sustentar. O mesmo se passa com o massacre que Israel está a levar a cabo em Gaza: é um crime contra a Humanidade, e só isso é suficientemente grave, Mais uma vez: não é preciso chamar os nazis para dizer que a acção de Israel é um crime monstruoso. Perpetrado, de resto, por um ocupante. É preciso ser-se muito palerma para dizer que Israel está a defender-se: não: Israel está a retaliar e a punir os insurgentes que combatem a ocupação de território da Palestina. O 7 de Outubro não é mais do que um episódio sangrento de um processo que há um século começou torto e no qual nem as entidades árabes nem as israelitas têm as mãos limpas.

quarta-feira, novembro 01, 2023

"a cela dum solitário em recantinho do Céu" e outros caracteres móveis

«Alguém me acompanhava, alguém ou uma sombra, um como espectro semelhante à presença antecipada dum amigo que se espera -- e ainda não chegou.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) / «Ao seu lado, de pé, alta e morena, o rosto enrugado e as arrecadas quase roçando-lhe as faces, Amélia cismava, com os olhos fitos na mesa.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) / «Aquele corpo era luxurioso e fascinante, dos tais que se tornariam, com a bênção da Santa Madre Igreja, ou até sem a bênção, que diabo, a cela dum solitário em recantinho do Céu.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

Buddy Holly, «Don't Come Back Knockin'»

"quando há agências de comunicação que ‘amam’ jornalistas, e listam duas dezenas, então é porque há 200 que, escondidos, chafurdam na promiscuidade"

A frase é tirada de um editorial de Pedro Almeida Vieira, sobre o jornalismo de merda para leitores de quarto mundo num país grotesco.

caracteres móveis

«Algumas vezes, a morte estava ali entre mim e eles, troçando da minha humildade apavorada, e nem assim me davam um estímulo; duros, invioláveis, lá lhes parecia que um bom médico não precisa de ajudas.» Fernando Namora, «História dum parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

«Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)

«Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão -- e, com um livro sobre o braço, punha-me a caminho.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)

terça-feira, outubro 31, 2023

antologia improvável #522 - Fernando Assis Pacheco

 

3:


e vá-se-me dos dedos toda a agilidade escrevente

que eu já possa ditar só metade de versos


e que ao oitavo dia se me fujam

as referências do mundo visível


que eu dure sem préstimo lá ao canto

ao pé da telefonia, "o da manta de lã"


e as filhas venham casadas e com filhos

tentar amar esse madeiro podre


se a maldição for tanta que na morte

do entendimento se me vá teu cheiro


Memórias do Contencioso (1976)

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«E quem perdoa reencontrar fora de si o que já em si detesta?» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) / «Manuel da Bouça sentou-se à mesa de pinho, bordada já pelas agulhas do caruncho, e logo se debruçou, voraz, sobre a malga do caldo que a mulher lhe pôs em frente.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) / «Todo o corpo, entre fresco e madurinho, tão enfeitado de graças, que se dissera de fidalguinha, de pastora não. » Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosque (1926)

segunda-feira, outubro 30, 2023

quadrinhos

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caderninho - Ferreira de Castro

 «Sob a farda animaleja-se o coração dum autómato.»

 Mas… (1921)

domingo, outubro 29, 2023

antologia improvável #521 - Eugénia de Vasconcellos


PURO ACASO


Um texto não é uma casa.

Um poema não te protege de nada.

Não serve para nada.

Existe só porque sim --

como eu, como nós,

os construtores de coisas inúteis.

Que mistério é a vida.

Ou isso, ou puro acaso.

Livro da Perfeita Alegria (2021)



sábado, outubro 28, 2023

Carlos Ramos, «Toca o mesmo»

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«Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo, com uma friagem fina e seca e uma escuridão aparatosa.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos
«Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão -- e, com um livro sob o braço, punha-me a caminho», Ferreira de Castro, «O Senhor dos Navegantes» (1954)
«Vinham ao consultório fechados em meias palavras, avaliando dos meus dotes de mágico.» Fernando Namora,  «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)

antologia improvável #520 - Carlos Queirós


DESAPARECIDO


Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar'ceu...»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
-- Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desapar'ceu...»
Eu, o feliz desapar'cido!

Desaparecido (1935)

quarta-feira, outubro 25, 2023

antologia improvável #519 - Armando Taborda


VIVALDI, AS QUATRO ESTAÇÕES


Quando as estações

são música

não há alterações climáticas

que perturbem

as previsões meteorológicas da terra. 


Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1986)

caracteres móveis

«As rugas riscavam-lhe a cara porque tinha de estar sempre sério e isso é uma das coisas que faz pior à pele: as peles, quando se riem, fazem ginástica, o sangue anda mais depressa e as caras ficam como a erva quando chove miudinho.» António Alçada Baptista, Uma Vida Melhor (1984) / «E aquém dos barcos: as ondas tinham outra maneira de quebrar, o quebrar de antigamente, se é que sabe ao que me estou a referir.» Dinis Machado, Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Márquez (1984) / «E, se na palavra senhor  há reverência e submissão ao poder do ouro, do sangue ou da posição, na palavra tio, reluz não sei que luaceiro de afecto, de intimidade, da quente solidariedade dos humildes uns pelos outros.» A. M. Pires Cabral, O Diabo Veio ao Enterro (1985) 

António Guterres é hoje a voz da decência

significando a indecência de quantos atacam ou criticam (talvez por inoportunas...) as suas declarações na ONU.