terça-feira, fevereiro 18, 2025

o que está a acontecer

«Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...» Raul Brandão, A Farsa (1903)

«Avançava cautelosamente, inclinando a cabeça para não tocar no tecto. À medida que se aproximava da claridade exterior, via-se que se tratava de um homem novo. O polícia sabia a sua idade exacta. Mas não era necessário ler o papel que o polícia trazia no bolso: Januário de Sousa, filho de Ana Maria e de pai incógnito, etc.; bastava deitar o rabo do olho à sua pele morena, lisa e macia, que nem a água passada a ferro na popa dos barcos, para se ver que ele não tinha mais de vinte anos, apesar de os seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do mundo.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)

«Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa "o D. Galeão", descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto -- até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«No trabalho a que se consagraram os biógrafos, principalmente Storck e Teófilo, operou-se um fenómeno que, à falta de melhor, chamaremos de assimilabilidade. Do facto Camões, o que existia de certo certo era o poeta. Pouco se sabia do homem. Para atupir o fosso, vá de endossar-lhe todo o circunstancial próximo e conexo da época, sobretudo da vida literária de Quinhentos. Como ela, espécie de ursa Mariana de reis e potentados, se circunscrevia à Corte, havia que fazê-lo palaciano. De resto, vinha apontada detrás esta direcção, embora errónea de todo, mais expletiva que outra coisa, pelo dedo devoto de Manuel Correia, de Severim, e mormente de Faria e Sousa, que não compreendia que pudesse haver um homem de talento fora dos beirais do Paço e sem tricorne de plumas na mão.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões - Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)