domingo, fevereiro 28, 2021

caracteres móveis

Castidade: «Afinal o caso era banal, simples e puro como castidade de santo.» Ruben A., «Sonho de Imaginação», Páginas I (1949).   Comentário: Não há nada menos banal e complicado do que a castidade de um santo. A pureza é sempre dos que conheceram a sujidade.


Do eterno:
«O moderno é de sempre, o moderno é o eterno.» Fernando Lopes-Graça, Introdução à Música Moderna (1942). Comentário: O agora nunca vem com prazo de validade.


Matéria: «Exagerado em matéria de ironia e em / matéria de matéria moderado» Cacaso, apud Heloisa Buarque de Hollanda, 26 Poetas Hoje (1974). Comentário: o antidogmatismo, explicado com inteligência.


Misérias (1): «Sempre existiu esta tendência da arte para desculpar um certo tipo de pessoas imorais ou facínoras. É uma das misérias da arte, cobertas por uma auréola de glória.» Gregorio Marañon prefácio ao Lazarilho de Tormes,  (trad. Ricardo Alberty) Comentário: Sobre a novela picaresca e a glorificação de patifórios, em especial o Lazarilho, que considera magistral. Donde se conclui que a arte não se compadece com bons sentimentos.


Misérias (2): «a credibilidade da historiografia portuguesa dos Descobrimentos nunca foi grande» Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses (1990). Comentário: Matemático de formação, é herdeiro, de certa forma do positivismo de Herculano; muito útil para desmontar as patranhas em que somos useiros e vezeiros. No entanto, falta-lhe o golpe de asa de um Cortesão, Jaime, com a sua doutrina do sigilo. Mas prefiro um positivista a um patranhioteiro.




Progresso: «Muito tem avançado a humanidade desde aquelas remotas idades em que o homem, talhando no sílex as suas ferramentas rudimentares, vivia das eventualidades da caça e apenas deixava como herança aos seus sucessores um buraco nos rochedos, alguns grosseiros utensílios de pedra -- e a Natureza imensa, incompreendida, com que tinha de lutar para manter uma existência miserável.» Piotr Kropótkin, A Conquista do Pão (1910, tradução de Manuel Ribeiro) Comentário: O ponto de vista que legitima o optimismo. Como racionalista, preciso de agarrar-me a ele.


Timidez. «A juventude que então arvorávamos não convencia ninguém e uma timidez desprotegida impedia-nos todos os passos em direcção aos empresários.» Ferreira de Castro, do «Pórtico» de A Curva da Estrada (1950). Comentário: Castro reporta-se ao início dos vinte anos, e de como a frustração de mil e uma dificuldades -- entre as quais a de uma timidez desprotegida (estava só e era novo na cidade) fazendo com que abandonasse a escrita de teatro, que ensaiava desde os tempos do Brasil. Ganhou-se, pelo menos, um romancista. 



sábado, fevereiro 27, 2021

Arvo Pärt (1935), Ano per Anum para órgão (1980)




a arte de começar

 «O vento arrastou as nuvens, a chuva cessou e sob o céu novamente limpo crianças começaram a brincar. As aves de criação saíram dos seus refúgios e voltaram a ciscar no capim molhado. Um cheiro de terra, poderoso, invadia tudo, entrava pelas casas, subia pelo ar. Pingos de água brilhavam sobre as folhas verdes das árvores e dos mandiocais. E uma silenciosa tranquilidade se estendeu sobre a fazenda. -- as árvores, os animais e os homens. Apenas as vozes álacres das crianças, pelos terreiros, cortavam a calma naquele momento:

Chove, chuva chuverando

Lava a rua do meu bem...

Jorge AmadoSeara Vermelha (1946) 


1959: Just In Time - Frank Sinatra with Billy May, COME DANCE WITH ME! #3




sexta-feira, fevereiro 26, 2021

quadrinhos


Henry (carequinha  ou Pinduca, no Brasil)
Carl Anderson

 

quarta-feira, fevereiro 24, 2021

quadrinhos


José Projecto, Giraldo o Sem Pavor (rexto, Jorge Magalhães, 1986)

 

«Estava no Funchal havia quinze dias.

 Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola.»

Um episódio anedótico dos tempos heróicos do jornalismo, nem rádio havia, um retrato do espírito competitivo de então, em que era preciso dar a notícia primeiro.  Ou crónica de Artur Portela (pai) de um duelo jornalístico entre o Dário de Lisboa e o Diário de Notícias, para ler na íntegra aqui.

1957: Moon Dreams - Miles Davis, BIRTH OF THE COOL #3




terça-feira, fevereiro 23, 2021

segunda-feira, fevereiro 22, 2021

barbarismos

(Até me custa comentar isto, dada a insignificância. Vale tudo para cair  nas bocas do mundo, não é?...)

Num artigo leviano e mal pensado , de quem detém um mestrado em Gestão e um vasto currículo em cargos públicos mas que de História não sabe nada, comecemos pela expressão hedionda "mamarracho", normalmente uma observação bárbara de ignorância de boi frente a um palácio. É muito comum ser utilizada pela vox populi quando surge no espaço público um edifício arquitectonicamente disruptivo (passe a palavra medonha), que, obviamente, depois de a ele se acostumar passará a defendê-lo com unhas e dentes. 

Ora, o mamarracho  de Ascenso Simões, o Padrão dos Descobrimentos, cujo friso de personagens é absolutamente extraordinário (é preciso não ter a mínima noção de nada e/ou andar desesperado por ser falado), apresenta a particularidade de ter autores, a saber: Cottinelli Telmo e Leopoldo de Almeida; a direcção dos trabalhos e o interior coube a Pardal Monteiro e a envolvente a Cristino da Silva; entre os responsáveis pela estrutura esteve o grande engenheiro Edgar Cardoso. Além de apagar a memória histórica, Ascenso quer deitar para o lixo as obras de cinco artistas portugueses do século XX. 

Depois dos disparates contestando um pretenso Museu dos Descobrimentos, em abaixo-assinado por activistas disfarçados de historiadores, idiotas úteis e alguns ingénuos, e na sequência da importação saloia do conceito de racismo sistémico, que faz todo o sentido nos Estados Unidos, mas não cá -- onde, repetindo-me à exaustão não há racismo sistémico nenhum para com a comunidade negra (ao contrário do que se passa com os ciganos), mas um "racismo" classista incidindo sobre quem é pobre; e se há tantos negros pobres é porque estamos a falar sobretudo de imigrantes -- havíamos de chegar aqui, e acredito que ainda não vimos a estupidez toda. Um dos nossos grandes defeitos e problemas é o complexo de inferioridade provinciano que nos leva a querer estar sempre no pelotão da frente de tudo, quando ainda estamos na cauda em tanta coisa.

E volta ainda à carga com o alegado museu do Salazar, fazendo tábua rasa de quem está à frente do projecto e da necessidade histórica de se confrontar o passado; o que ele parece querer defender no artigo, mas porque não percebe nada do que está a falar e lhe dá jeito ser populista, está-se nas tintas para o caso.

Gosto sempre de falar das minhas origens afro, a minha bisavó Ida, brasileira mulata, que vivia na Baixa durante a República, e para salvaguardar casa e família daquilo a que chamavam "revoluções", mandava hastear a bandeira brasileira na fachada e assim ver-se livre de apuros. Tenho numa estante uma estatueta de um escravo, que me faz lembrar o negro Tiago de A Selva, do Ferreira de Castro, e em homenagem a esses meus ancestrais que foram escravizados.

Para Lisboa ser decente, ao contrário do que defende o deputado, não é remover a História, mas sim tê-la por inteira. Faça-se um monumento aos escravos, um memorial, como se fez aos judeus perseguidos, e aí sim, seremos uma capital mais decente.

1954: «Loveless Love», LOUIS ARMSTRONG PLAYS W. C. HANDY - #3




domingo, fevereiro 21, 2021

sábado, fevereiro 20, 2021

por que não te calas?

 


Este malabarista condena a violência, designando-a como um ataque à democracia, e a Espanha, diz ele, é uma democracia plena. É para rir, para quem não for "espanhol". Uma democracia plena não subjuga nações pela força e a democracia espanhola do Sanchez, do Iglésias, do Felipe VI, está mais próxima da ditadura do Mobutu do que da nossa ou da inglesa. 
No longínquo 1977, quando os Pistols editaram o God Save the Queen ("She ain't no human being") o máximo que aconteceu, salvo erro, foi a sua proibição na BBC; ou quando os Smiths lançaram The Queen is Dead ( "I say, Charles, don't you ever crave / To appear on the front of the Daily Mail / Dressed in your Mother's bridal veil?").  Quarenta e quatro anos depois um rapper é preso por patacoadas. É essa violência e outras de que este gajo devia falar

Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704)- UM CARNAVAL EM KREMSIER I.Trombet-undt Musicalischer Taffeldienst à 4




a arte de começar

 «Naquela noite de Março, desabrida e húmida, uma grande animação fervilhava alacremente ao fundo da rua do Salitre. Era em 1867. Frente a frente, as Variedades e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros, a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto. Quinta-feira, -- noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade. Enchente certa no Circo. De cada lado do portal da entrada, um semicírculo compacto de gente se agitava, tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro, e ambos por igual colados, premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão, e arredondando pela rua fora, numa irregularidade gritada e confusa, a toda a largura do macadam. Tudo queria bilhete. Havia chapéus tombados, ombros que penetravam à cunha, braços arpoando vigorosamente os alisares castanhos  dos postigos, mãos retirando triunfantes, muito erguidas, com um papelinho azul ao vento.» 

Abel Botelho (1854-1917), O Barão de Lavos (1891)

quinta-feira, fevereiro 18, 2021

Marcelino da Mata, Mamadou Ba, o presidente do TC e as luminárias do Ministério da Educação -- estou tão cansado

 De Marcelino da Mata sabia que era o oficial mais condecorado e pouco mais. Li algumas coisas en passant nos últimos dias, que familiares próximos terão sido mortos pelo PAIGC, talvez trazido à tona para equilibrar uns feitos  selváticos de que da Mata se vangloriava.

Vamos assentar no seguinte: uma guerra colonial é sempre um crime cometido por quem a promove, não os militares necessariamente, mas sem dúvida o estado. Crimes de guerra cometemo-los aos molhos, e até do outro lado, basta lembrar a selvajaria da UPA em 1961, A política portuguesa nas colónias foi criminosa. Ponto final parágrafo, não há discussão. É sempre um crime quando se nega aos povos o direito à autodeterminação, e daqui não há saída. É por isso que, com as devidas distâncias, o estado espanhol surge como criminoso na política de opressão que exerce sobre a Catalunha, não me venham cá falar em hungrias. E com a aquiescência da UE, já agora.

Mamadou Ba ao dizer que Marcelino da Mata está a expressar a sua opinião, com todo o direito; e se o que veio a lume é verdade com toda a razão. Eu não subscrevo o estilo, mas tem direito à sua opinião, tal como os palermas que assinaram uma petição para o deportar têm direito a fazê-lo, petição que nem será discutida, por asnática, além de inconstitucional. E queriam deportar o homem para onde, se ele é português? Arre! que são animais.

Outros animais são os que andam a vasculhar no cesto dos papéís do presidente do Tribunal Constitucional. Só tenho pena que ele tenha recuado um pouco, mas percebo, é presidente do TC, tem de resguardar-se. Mas se o presidente do TC começa a encolher-se por causa das ilgas...

Outras criaturas que já deviam ter ido borda fora são o secretário de Estado da Educação, cujo nome me falece na memória, e, lamento dizê-lo, o ministro Tiago Brandão Rodrigues, por conivente com um caso de perseguição aos dois alunos (duas crianças,...) cujo tribunal administrativo de Braga, numa sentença salomónica, obrigou a transitar de ano, uma vez que o interesse (superiores, pode ser?) destes dois rapazes prevalece sobre quaisquer outros. O que faz o Ministério da Educação? Recorre da sentença. E o ministro que o titula não tem condições para continuar ministro.


1958: «Don't Smoke in Bed», LITTLE GIRL BLUE #2




terça-feira, fevereiro 16, 2021

«Leitor de BD»

 



Karmela Krimm -- Ramdam Blues
Lewis Trondheim e Franck Biancarelli

domingo, fevereiro 14, 2021

a arte de começar

«A letra de Deus nem sempre é decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma humana. Às vezes, a gente julga que as palavras chegam para esclarecer a vida mas, hoje estou certo de que muitas coisas permanecem por detrás de palavras que ainda não foram feitas e outras, por detrás de palavras de que perdemos o uso.»

António Alçada Baptista (1924-2008), O Riso de Deus (1994)

Ludwig van Beethoven (1770-1827), CRISTO NO MONTE DAS OLIVEIRAS, Op. 85: - 2. Jehova, du mein Vater




sábado, fevereiro 13, 2021

«Meu amigo:

Pergunta-me o que penso de João de Deus e da sua festa. Vou dizer-lho em meia dúzia de palavras.»

Fialho de Almeida,  um extirpar de escrófulas com incisão de bisturi sem anestésico, uma violência inaudita, que nem em Camilo ou Raul Proença, um desencanto feroz. Um texto sobre e a propósito de João de Deus, para ler aqui.

Isaac Albéniz (1860-1909) Ibéria (1909) Suíte para Orquestra #4. El Puerto




Borrell foi à Rússia fazer figura de urso

 É preciso lata, topete, e uma grande dose de paciência por parte dos russos para aturarem as impertinências de alguns líderes políticos europeus.

Então não é que Borrell, espanhol e até catalão, procede de um estado, a Espanha, com presos de consciência e exilados políticos, de Oriol Junqueras a Carles Puigdemont, este, aliás, eleito deputado europeu e impedido de tomar posse e de regressar ao seu país? E o Borrell vai fazer figura de palhaço em nome da União Europeia, por causa do Navalny -- que francamente tanto pode ser um herói liberal como um agente americano?  E ainda há  81 idiotas no Parlamento Europeu -- provavelmente da mesma família de atrasos de vida que votou a resolução de equiparar comunismo e nazismo -- que acham que Borrell fez má figura. Talvez quisessem que o homem pusesse o Lavrov e o Putin em sentido... Não são só os russos que precisam de paciência, nós também. De resto, parece que já estão a perdê-la.

sexta-feira, fevereiro 12, 2021

quadrinhos


Marjane Satrapi, Frango com Ameixas (2004)
 

a arte de começar mais depressa

«A aliança inglesa». «A sua vaidade de mulher bonita lisonjeava-se com a convicção de ter fixado o coração volúvel e a imaginação impressionável do noivo; a consciência da própria superioridade dava-lhe a certeza de ter definitivamente tomado posse do espírito do marido, fortaleza tantas vezes atacada, e outras tantas espontaneamente rendida, nas batalhas alegres de uma mocidade jovial.» [Sabugosa]

«Um pequeno romance». «A quem logo de manhã cedo em Vizela vai para o banho, não pode passar despercebida uma rapariga dos seus dezoito anos mal contados, que ali adiante à esquina da botica, sentada no granito do passeio, vende chapéus de palha, que ela própria, num labor incessante continuamente fabrica.» [Arnoso]

«A Cabrita». «Ao ver os seus grandes olhos negros, sublinhados pelo esmalte suavemente esbatido das olheiras, a boca de beiços palpitantes, finos e sensuais, a pureza extraordinária dos contornos do seu corpo, fácil seria adivinhar que Maria, por alcunha -- a Cabrita -- não era irmã de Manuel Torrão, nem filha da Sr.ª Engrácia, rendeira do casal do Arneiro, situado à borda da estrada que conduz de Sintra a Mafra.» [Sabugosa]

«A viagem». «Uma noite, em Kobe, em lugar de ir percorrer os bairros pitorescos da cidade, deixei-me ficar na banal casa de jantar do Hôtel des Colonies, comodamente sentado à beira do lume, conversando com uma senhora inglesa, viúva e já idosa, que sozinha viera da Austrália passar os meses de inverno ao Japão.»  [Arnoso]

«Balões». «Uma aragem tão leve como sopro de criança, balouçava docemente acima da multidão, que saía do missa do Loreto, um cacho de balões de cautchouc duma transparência suave, e a que o plenissol daquela manhã de Abril, dava o aspecto dos maravilhosos frutos de Aladim.» [Sabugosa] 

«No mar». «Noite escura.» [Arnoso]

«O filho do maioral». «A poucas léguas de Lisboa, na margem direita do Tejo, e não muito longe de uma das estações do caminho-de-ferro, estendem-se as vastas propriedades do marquês de ***, possuidor de um nome antigo e de uma fortuna avultada, que tem atravessado com rara felicidade o temporal desfeito que arrastou para sempre a maior parte das suas iguais.» [Sabugosa]

«Inconfidência». «Trouxe-nos hoje o correio novas do extremo oriente.» [Arnoso]

«O fadista». «Também se transformou!» [Sabugosa]

«Mater Dolorosa». «Aquela filha, filha única, era a menina dos seus olhos.» [Arnoso]

«A nora -- o moinho». «Saindo das portas de Lisboa e tomando por algumas azinhagas que do Campo Grande levam à estrada de Sacavém, ou visitando as hortas que se espalham pelo vale de Chelas, não é raro ainda ouvir pelas compridas tardes de verão o gemer arrastado, a melancólica e plangente cantilena das noras.» [Sabugosa]

«Um sonho». «Vi-me num bosque sentado sobre uma pedra que o musgo viçoso amaciava.» [Arnoso]

«Na goela do leão». «Quando o leão de púrpura dos Silvas perder a sua língua negra acabará a família a que vai pertencer, profetizara o Roque a uma das suas netas, na véspera do casamento, por uma noite de luar coado a custo pelas abóbodas do espesso arvoredo numa das avenidas da quinta de Belas.» [Sabugosa]

Conde de Sabugosa (1851-1923) e B. de Pindela [Conde de Arnoso, 1855-1911], De Braço Dado (1894)

1959:«Come Dance With Me» - Frank Sinatra with Billy May, COME DANCE WITH ME #1




quinta-feira, fevereiro 11, 2021

espírito e carne - «A Catedral» (3)


Continuar: «Entretanto iniciavam-se na Sé as obras de restauração.» Início do cap. III, pp. 41-78 da minha edição.

As obras põem a Sé em polvorosa, desagradam aos mais velhos e a própria Helena de Monforte fica angustiada ao ver a capela de família intervencionada. Em defesa daquele «ateu», daquele «doido», daquele «Átila de camartelo» vem o padre Anselmo, o jovem musicólogo. Num domingo, durante a missa, a condessinha tem uma espécie de revelação, que a leva a questionar a sua desconfiança ou má-vontade para com o trabalho de Luciano: 

«Nesse domingo, porém, uma surpresa durante a missa causara-lhe estranha emoção. Tinham acabado de aparelhar a rosácea do cruzilhão norte. Desarmado o andaime e o tapume envolvente, a admirável rosa de pedra reabria, inteiramente nova, no fino talhe românico, com o desabrochamento radial das nervuras emoldurando pétalas de luz. Maria Helena erguera os olhos e ficara em êxtase deslumbrada. Como aquilo fora não sabia. Donde a linda rosa viera, ignorava-o. Como ela abrira lá no alto, mistério. mas lá estava, a mágica túlipa esplendorosa, fresca e vicejante, reverberando na sombra doce da nave as palpitações multicores do seu coração incendiado.»

Será quando visita furtivamente, na companhia do padre Anselmo, que fala demais, a sua capela, consagrada a Santa Cecília, já objecto de restauro, porém inacabado, estando por isso o acesso vedado a todos -- será nessa ocasião que, ainda sem o saber (nem o leitor, de resto), Helena de Monforte se apaixona por Luciano. O narrador de Manuel Ribeiro dá-nos isso muito bem:

«Polvilham o recinto camadas de poeira branca e detritos finos de calcário. Na restauração fora refeita toda a ábside da capela. [...] A delicadeza alígera da  fenestragem sobressaía no fino talhe arredondado de molduras e nessa beleza inenarrável, verdadeiramente religiosa, do arco que foge à curva rígida e se quebra para a tocar furtivamente, na graça dum beijo casto trocado a medo por dois amantes. / O rubor incendiara o rosto de Maria Helena. Aquilo era por ela e para ela...»

É interessantíssima a forma tão estilisticamente dúctil com que o narrador discorre  sobre os pormenores técnicos e decorativos do edifício, tornando uma matéria árida, porque técnica, num discurso fluente; e também a erudição e o deleite nas referências à patrística e à história monástica. Não é de admirar que a conversão estivesse a germinar e a desenvolver-se em Manuel Ribeiro, um ano antes de ser um dos cofundadores do PCP.

O único senão deste capítulo para o leitor comum é a longa explanação da história do monaquismo e dentro dela da Ordem de São Bento, pelo simpática tagarelice do padre Anselmo, levando-o a perder as Completas. Capítulo que termina um pouco precipitadamente com a descrição física de Helena e uma flechada cupidinosa bem desferida:

«Luciano viu-a marchar no lajedo, alta e tenra, espiritual e fina, numa harmonia de linhas que traía a raça. O busto evasava-se-lhe em curva harmoniosa de ânfora a que dava deliciosa frescura o corpete de cetim claro dobrando-se em gola no colo, sob o casaco tailleur, numa graça vegetal de gamopétala. E, despedindo-se dos seus amigos, a fidalga já no trem, sublinhou um último cumprimento a Luciano, num tão eloquente sorriso, que o artista sentiu a alma fundir-se-lhe de ventura...»

(leitura em progresso, aqui)

1958: «Mood Indigo» - Nina Simone, LITTLE GIRL BLUE #1




quarta-feira, fevereiro 10, 2021

a arte de começar mais depressa

 «Agade e Nimur». «Havia em Agade uma porta imemorial e no frontão tinha escrito: "Porta em frente da qual se não colhe o trigo."»

«Do deus memória e notícia». «Quando os povos do Oriente vieram em levadas sucessivas e plantaram tendas multicores nos vales e planaltos por onde sopravam os ventos, os magistrados de Ghard tiveram de declarar a guerra para recuperar a rota das caravanas.»

«A simetria». «O rei Jeherdal era gordo, enfermiço, mas tinha reputação de sagaz e prudente.»

«O bólide». «Só quando muito recentemente foi deposto por uma insurreição o ditador Raymond Arenas, da República Central Americana de San Pelayo, se soube ao certo, por documentos encontrados no palácio saqueado, o que realmente aconteceu ao navio britânico Caliban, enigmaticamente desaparecido em 12 de Julho de 1960 ao largo da Costa Rica.»

«O desafio». «Perto da mesquita grande do Cairo havia um velho que se acocorava no chão, sobre o turbante estendido, e recitava as Suratas  do Corão perante uma pequena multidão em círculo, que lhe retribuía com algumas moedas ou alguns géneros.»

«Almocreves, publicanos, ricos-homens e ciganos». «Acautelados das tropas de Massena que, batidas por Beresford, demandavam caminhos de Castela, atravancando as estradas de carros, gente e canhões, num pandemónio de tropa solta e perdida em que ninguém tinha mão, os dois almocreves saíram de Alcácer noite alta, por carreteiras de poucos sabidas e desviadas da tropelia francesa.»

«Do problema que o capitão Passanha houve de resolver quando, em circunstâncias atribuladas, comandava o Maria Eduarda no estreito de Malaca do bom despacho que lhe deu com a colaboração de todos / ou / O enigma da estátua mutilada encontrada nos fundos de Shandenoor». «Há meses, o navio oceanográfico Scania, pesquisando espécies marinhas entre Samatra e Ceilão, não longe dos baixios a que chamam Shandenoor, trouxe à tona um estranho achado, decerto há muito afundado nas profundas geladas daquelas paragens.»

«Definitiva história do Professor Pfiglzz e seu estranho companheiro». «Quando eu era muito novo, fui comissário de bordo num grande cargueiro misto, o Fernão Ferro, que fazia a demorada carreira entre Leixões, Hadleh e Carvangel, com escala por vários portos secundários.»

«Que todos ficassem bem…» «Nos meus últimos dias de férias no arquipélago de Shandenoor vieram procurar-me dois sujeitos escuros, muito magros, bisonhos, que se diziam enviados pelo rei de Carvangel.»

«As três notícias do Diabo». «À espera de transbordo, um amigo meu atardou-se numa tasca fedorenta de San Pelayo, bebendo tequilla e jogando ao Modelo

«O caminho de Cherokee Pass». «Ao fim de dois meses de buscas infrutíferas nas planícies de Oklahoma, um jovem pesquisador chamado Barton regressava desiludido, esfomeado, coberto de vermina, arrenegando dos velhos mapas comprados a batoteiros ociosos no bar fétido de Cherokee Pass.»

«O contrato». «Quis-me desenfastiar a procurar emprego em Londres.»

«A pele do judeu». «Intrigado por um dito melancólico de Aberramão III, que em quarenta anos de reinado tinha contado catorze dias de paz, o universitário Rui Telmo meteu-se a pesquisar a vida dos Árabes na Península.»

«A transmutação». «No final do batuque, o jovem cuanhama, muito bebido de cerveja de palma, vergou o arco e disparou uma flecha para as alturas.»

«Desdobramento». «Ele atribuía aquele grande cansaço e quebranto nos plenilúnios a um acontecimento da sua infância distante.»

«A espada japonesa». «O frade Góis, o mais antigo manuseador de manuscritos do convento, um dia recebeu uma espada japonesa, afiada e comprida.»

«A autora». «A advogada Helena Telo teve de ficar em Lisboa, no início de Agosto, por causa de uma petição complicada que a lei mandava interpor em férias.»

«O circuito». «Foi com dificuldade que aluguei um quarto em Coimbra, perto da Couraça dos Apóstolos.»

«A passagem». «Um amigo meu, amigo antigo a quem não é preciso ver muitas vezes, telefonou-me um dia destes, para termos uma conversa muito séria.»

«Coleccionadores». «Isto de coleccionar antiguidades vai e volta.»

«O sonho». «Tenho tido imenso tempo para pensar em tudo isto, olhos fixados nestes azulejos pardos, ainda mais sujos da luz vinda da janela, , depois de ter feito um percurso de impurezas que não deixa iluminar forte seja o que for.»

«O fim». «Como combinado, André e Burka passaram nessa tarde pela loja onde se empregara a filha.»

«O emprego». «Os três, na cidade de ..., estavam sentados e, do muito calor, abanavam-se com folhas de jornal, enquanto esperavam.»

Mário de Carvalho (1944), Contos da Sétima Esfera (1981)

«Leitor de BD»

 



Lucky Luke -- Um Cowboy no Negócio do Algodão,

por Achdé e Jul

(aqui)

1957: «Move» - Miles Davis, BIRTH OF THE COOL #1




terça-feira, fevereiro 09, 2021

Garrett, o desgosto burguês e a pureza do povo

«Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre de Deus e o Beato e Xabregas e Marvila e as hortas de Chelas. A um lado, a imensa majestade do Tejo em sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar mediterrâneo; do outro, a frescura das hortas e a sombra das árvores, palácios, mosteiros, sítios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.»

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1846)

Desgosto por desagrado e por estética também. O povo é são, a burguesia (e quem a apoiar) é escumalha. O povo não está degradado, a burguesia (e quem a apoiar) é degradada por natureza: veja-se o sentido de harmonia desse mesmo povo, sobre quem as excelências cavalgam ou pisam.

É bonito? É... É falso? É pelo menos forçado; mas em estética tudo se permite.

1956: «St. Thomas» - Sonny Rollins, SAXOPHONE COLOSSUS #1




segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Kropótkin (1842-1921)



Anarquista, geógrafo emérito, príncipe, revolucionário preso e exilado, Piotr Kropótkin (9.XII.1942-21-II-1921) é uma das grandes vozes históricas das doutrinas acratas. O seu comunismo libertário, desde sempre oposto ao comunismo autoritário (ou totalitário), baseia-se na livre cooperação, ciente, como todos os anarquistas, de que tal só é possível à escala comunitária e na supressão do Estado e dos seus mecanismos de repressão. Kropótkin representa e encara o ser humano no melhor que ele tem, por isso os fundamentos da sua doutrina são não apenas a liberdade anti-autoritária e a cooperação mútua, mas também o amor.
Com influência notória nos círculos anarquistas portugueses, incluindo o talvez mais importante doutrinário, Neno Vasco (1878-1920), A Conquista do Pão (1892) foi traduzida por Manuel Ribeiro (1878-1941), o romancista de A Catedral; porém, na nossa literatura, o escritor em cujos romances essas mundividência teve maior alcance foi Ferreira de Castro (1898-1974).

Em tempo: uma editora das Astúrias apresanta hoje uma tradução da última obra de Kropótkin, póstuma e inacabada: Ética: origem e Desenvolvimento
(daqui) 

 

1954: «St. Louis Blues» - LOUIS ARMSTRONG PLAYS W. C. HANDY #1




Edward Elgar (1857-1934), Concerto para violoncelo em mi menor, Op.85 (1919) - I. Adagio - Moderato






domingo, fevereiro 07, 2021

quadrinhos

Émile Bravo, Fighters -- Operação Peenemünde, 1988 (texto J. Sorg) 

 

quinta-feira, fevereiro 04, 2021

«A quem logo de manhã cedo em Vizela vai para o banho,

  não pode passar despercebida uma rapariga dos seus dezoito anos mal contados, que ali adiante à esquina da botica, sentada no granito do passeio, vende chapéus de palha, que ela própria, num labor incessante continuamente fabrica. 

Conde de Arnoso (1855-1911), «Um pequeno romance», para ler na íntegra aqui.

50 discos: 31. FURA FURA (1979) - #9 «De Sal de Linguagem Feita»




quarta-feira, fevereiro 03, 2021

a 'condessinha' -- «A Catedral» (2)


 Continuar: «D. Francisco Diogo de Pina Coutinho, 3.º marquês de Pombeiro e 5.º conde de Linhares, cujas genealogias entroncavam na mais antiga nobreza do reino, fora um dos grandes fidalgos portugueses que entraram, em 1640, na conjuração nacional contra o jugo de Castela.»  Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) Início do cap. II, pp. 29-39 da minha edição.   


Capítulo que mostra as origens familiares de Maria Helena de Monforte, a condessinha. Os antepassados estiveram na Restauração, na Guerra da Sucessão de Espanha, contra os franceses nas Invasões, contra D. Pedro e com D. Miguel na Guerra Civil, cujo destino de expatriação partilharam. «Toda a história da sua casa era um pouco a história de Portugal.» É o pai de Maria Helena, D. Álvaro de Ataíde, que se retira de Paris, quando a República é implantada -- a primeira referência que permite situar no tempo a acção do romance. Morta a mãe, Eulália Zarco, filha dos condes de Borba, ainda jovem, deixando o pai na apatia, embora estremecendo a filha criança, esta será educada pelo capelão da casa materna, Monsenhor Santana, um tradicionalista, e por uma tia freira, madre Maria Peregrina, superiora de um colégio religioso entretanto encerrado pelo governo.

Uma educação para o exercício da autoridade e sentimento de superioridade dado pela estirpe, colide com o temperamento afável e bondoso da condessinha, que, fruto também da educação é dotada de um expressivo sentimento religioso, que pratica na capela de família, situada na charola da Sé de Lisboa. 

«Ela não era inteiramente como monsenhor pretendia. Maria Helena sentia-se realmente superior, não porque fizesse pedestal de alguém, mas porque pairava em um mundo de idealidades. Sua soberania não se alimentava de humilhações. Monsenhor fora talvez ludibriado. Em vez dos graves princípios brotando das sementes dos seus conceitos, irrompia da alma da condessinha uma flora tenra, suave, como seara de linho que se estrelava de flores azuis do sonho. A história aparecia-lhe sobre refrangências de lenda e os heróis sobressaíam nimbados em fundos de religiosidade. Ser vassalo da Igreja era prestar fidelidade ao bem.»

50 discos: 30. GERM FREE ADOLESCENTS (1978) - #9 «I Am a Poseur»




terça-feira, fevereiro 02, 2021

segunda-feira, fevereiro 01, 2021

a arte de começar

 «Minha intenção, minha única intenção, acreditem!, é apenas restabelecer a verdade. A verdade completa, de tal maneira que nenhuma dúvida persista em torno do comandante Vasco Moscoso de Aragão e de suas extraordinárias aventuras.»

Jorge Amado (1912-2001), Os Velhos Marinheiros (1961)